O prêmio Nobel da Paz de 2020 foi concedido ao combate à fome e os vencedores – o Programa Mundial de Alimentação da ONU – mereciam. Mas não teria sido uma surpresa se o prêmio neste ano fosse para Jacinda Ardern, que acaba de ser eleita para mais um mandato na Nova Zelândia como chefe do governo. Sua campanha é tão urgente como universal: o ódio precisa ser combatido e apenas o diálogo e a aceitação da diversidade podem trazer a paz social.
Tão óbvio quanto revolucionário, seu programa é uma antítese de tudo o que governos populistas, como o de Jair Bolsonaro, representam. Ardern, a primeira-ministra da Nova Zelândia, tomou medidas consideradas como “corajosas” diante da morte de 50 pessoas em seu país por conta de um ataque da extrema-direita em 2019. Em 2020, sua luta para unir o país contra a covid-19 também foi um marco no combate à pandemia.
Sua estratégia, porém, colocou em xeque a forma pela qual governos vinham respondendo a crises semelhantes. Se seu país foi alvo de um ataque terrorista, Ardern não usou o evento para prometer vingança. Ela não fez um sinal de armas com a mão, ela não usou os enterros como palanque, ela não fez um sinal de vitória. Ela até mesmo se recusou a dizer em público o nome do terrorista, num ato calculado para jamais dar a ele o que o assassino queria: visibilidade.
Sem medo, ela qualificou o ato daquele homem branco e cristão como “terrorismo”. Ela não usou bandeiras nacionais, não abusou de seu hino nacional, não deu qualquer demonstração de que considera sua cultura como superior e, acima de tudo, não tocou na palavra “patriotismo”. A chefe-de-governo fez exatamente o contrário: usou o véu islâmico para ir ao encontro das famílias das vítimas. Seu gesto foi replicado por mulheres cristãs em todo o país.
Dias depois, ela não sugeriu que armas fossem distribuídas à população para que tais crimes não se repetissem. Muito pelo contrário: em menos de uma semana, leis foram aprovadas para endurecer o acesso às armas. O país registrou uma onda de devolução de armas por parte de seus proprietários e Ardern ainda prometeu destinar mais de US$ 100 milhões para comprar armas que estejam nas mãos de cidadãos, justamente para desarmar o país.
No caso da covid-19, ela rapidamente estabeleceu um grupo de cientistas que orientaram cada uma das ações do governo. Ardern não perdeu tempo, não questionou a ciência, não rompeu com as recomendações da OMS e evitou choques com a oposição para garantir a proteção da população. Num mundo em que fronteiras são fechadas com base em religião, em que o ódio tem em líderes políticos seus principais promotores, e que a ciência é questionada por políticos em busca de votos, as frases e gestos de Ardern são verdadeiras revoluções.
Ela ainda deu início a uma campanha global contra o racismo e prometeu examinar o papel das redes sociais na disseminação do ódio e desinformação. Seu exemplo levou empresas a seguir o mesmo caminho, enquanto sinais de solidariedade explodiram de diferentes formas e grupos pela Nova Zelândia. A líder neozelandesa já havia chamado a atenção ao sugerir um “orçamento de bem-estar”, baseado em medidas que pudessem ter um impacto real na vida das pessoas. No orçamento, os dados da pobreza, de doenças infantis e de desigualdade seriam explicitados.
Caberia aos ministros dar soluções, com propostas, dinheiro e metas. Assim, as contas do país não estariam apenas baseada em superávit ou déficit. Em obras ou arrecadação. Mas num projeto de nação. Seu argumento para a escolha de sair ao resgate dos mais pobres era claro: o populismo, a xenofobia e a intolerância estão ganhando espaço porque cidadãos não têm visto que seus interesses tem sido atendidos por partidos tradicionais. Diante dessa situação, elegeram Trump, Bolsonaro e tantos outros – em uma espécie de guerra por procuração contra uma elite no poder que fracassou.
Em casa, ela aumentou o período de licença paternidade, congelou salários de políticos e ampliou a cota para receber refugiados. A primeira-ministra se transformou até mesmo em verbo. “To Ardern Up” passou a ser usado para falar de um gesto de solidariedade real, acompanhado de medidas concretas e de empatia às vítimas. A melhor tradução talvez fosse “ardernizar”, como se fosse uma espécie de vacina contra populistas. Neste fim de semana, o combate ao ódio, desinformação e populismo se consolidou como sendo parte central da agenda internacional. Ardern sai recompensada.
Já governos como o de Trump ou Bolsonaro recebem mais um alerta: seus inimigos imaginários apenas aprofundarão as tensões em uma sociedade que precisa de paz. Não de armas, mentiras e divisões. Aqui na Europa, minha vizinha é neozelandesa. Hoje, do balcão de sua casa, me fez um sinal com um copo de champagne para comemorar o novo mandato de Jacinda. Confesso que fui tomado por instantes por um sopro tímido de inveja. Mas o sentimento foi logo substituído por uma esperança de que aquele vento dos confins do mundo não respeitaria fronteiras.
Coluna do Jamil Chade no UOL