Vivemos tempos de isolamento social em decorrência da pandemia da Covid-19. Concomitantemente, governos têm exercido seu autoritarismo por meio de atos e decretos que acentuam ainda mais o abismo social.
O ataque da vez, no Brasil, é sobre o direito à educação acessível e inclusiva para as Pessoas com Deficiência, com a publicação do Decreto nº 10.502/20, denominado nova Política Nacional de Educação Especial – PNEE, no dia 30 de setembro.
O Decreto foi publicado meses após a edição da Portaria nº 525/2020 do MEC, que pretendia mitigar a Lei de Cotas em universidades para negros, indígenas e pessoas com deficiência, mas foi revogada após manifestações populares contrárias. Tal Decreto, que prevê as chamadas classes especiais ou classes da exclusão, merece o mesmo caminho da Portaria: a revogação!
Em primeiro lugar, a PNEE estabelece que as famílias possam escolher em qual instituição de ensino irão matricular seus filhos, entre escolas regulares, especiais ou bilíngues para surdos. Nos “doces” termos do Decreto, há perverso cenário de exclusão: essa escolha está sujeita à decisão das escolas, abrindo margem para recusas à inclusão de estudantes com deficiências. Ela pode significar, na realidade, a falta de opção das famílias. Não basta a literalidade, é preciso ler as entrelinhas e quais as intenções que estão por trás da lei.
Muitos estudantes com deficiência serão afetados pela nova política. Dados do Censo Escolar 2018, divulgados pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep), revelam que o número de matrículas de alunas e alunos com deficiência chegava a 1,2 milhão em 2018, um crescimento de 33,2% em relação a 2014.
Considerando apenas alunas e alunos com idade entre 4 e 17 anos, verifica-se que o percentual de matrículas em classe comum por essas pessoas aumentou de 87,1% em 2014, para 92,1% em 2018.
Mesmo com a garantia de matrícula no ensino regular, os estudantes com deficiência já encontravam dificuldades no acesso. A maioria das famílias optam pelo ensino público, onde encontram maior receptividade e preparação. Diante das necessidades de adaptabilidade e contratação de profissionais habilitados, as escolas privadas, quando não rejeitam as matrículas, o que é proibido por lei, impõem dificuldades e barreiras quanto à permanência da pessoa com deficiência na escola.
A PNEE retoma as escolas especiais como no modelo antigo, que atendiam a qualquer deficiência. E, se por um lado, parece oferecer maior apoio às pessoas com deficiência, na verdade, o governo está cedendo à pressão de instituições privadas de ensino.
A integração das Pessoas com Deficiência no ensino regular foi fruto de muita luta, consolidada pela Lei Brasileira de Inclusão (LBI) de 2015, que tem como escopo implementar investimentos na capacitação de professores, monitores, conscientização dos pais, das crianças e adolescentes para reduzir as barreiras e efetivamente integrar as pessoas com deficiências.
O Brasil adotou, desde a Constituição de 1988 e com reforço da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (Decreto nº 649/2009) e da própria Lei de Inclusão (Lei nº 13.146/2015), um modelo de inclusão e acessibilidade educacional por meio das classes regulares.
Mesmo com os percalços sofridos pelas Pessoas com Deficiência, avanços importantes foram trazidos para que tivéssemos um sistema educacional inclusivo. Destaca-se: 1) a criminalização da cobrança de valores adicionais para recursos de acessibilidade; 2) a criminalização da negativa de matrícula por parte das escolas; 3) a obrigatoriedade de oferta de aulas e materiais inclusivos; 4) medidas individuais e coletivas que proporcionem o desenvolvimento acadêmico e a socialização dos alunos com deficiência em todas as escolas.
O governo propõe flexibilidade aos sistemas de ensino, mas os estudantes com deficiência e suas famílias veem seus direitos serem atingidos por meio de uma política que os segrega.
É importante salientar que esse modelo não rompeu com a existência das escolas especiais, que permaneceram com o atendimento exclusivo às pessoas com deficiência que não foram consideradas aptas à inclusão por uma avaliação escola-família. Por vezes, é a escola especial responsável pela integração da pessoa com deficiência na escola regular.
Além de caminhar na contramão de uma sociedade inclusiva, as novas regras pretendem instituir uma política nacional de educação especial homogênea, que, na verdade, reforça o tratamento discriminatório e segregacionista, em um modelo ultrapassado que relega às pessoas com deficiência o ensino em espaços apartados, em “caixas”, à margem, fora da integração do ambiente escolar regular.
Ao propor uma aparente possibilidade de escolha às famílias, a proposta abre margem ao retrocesso, uma vez que essas crianças e adolescentes poderão perder a garantia de atendimento em salas de aula regulares e poderão ser submetidas à escola especial sobre a falsa ideia de ser uma “opção” mais segura.
A luta para que pessoas com deficiência sejam cada vez mais autônomas passa pelo investimento público com educação e acessibilidade, que deveria acontecer de forma igualitária a todos, ofertando estrutura e condições para a família e para que as pessoas com deficiência desenvolvam as suas características plenamente.
Se hoje a inclusão não é satisfatória é porque faltam políticas públicas eficientes, tanto no ensino público como no privado. Portanto, não podemos acreditar que a solução para o problema será criar novo espaço, que dependerá de outros e novos investimentos e incentivos.
Além do retrocesso para as pessoas com deficiência, há também grande perda para a sociedade, que deixará de ter a oportunidade da convivência com a diversidade. É preciso que nossas diferenças possam habitar os mesmos espaços, que todos e todas estejamos em convívio, que nos mobilizemos e façamos a pressão social necessária para que o cenário se altere.
Os avanços até aqui foram muitos, mas é necessário resistir.
Enquanto sociedade civil, somos responsáveis por tornar acessíveis os espaços físicos, a comunicação, a saúde, a educação e o mercado de trabalho. Para isso, são indispesnáveis ações de inclusão e conscientização de que as pessoas com deficiência são sujeitos de direitos e deveres, como todo e qualquer cidadão.
O modelo praticado até agora não é perfeito. Sabemos que muitas escolas regulares não são capazes de promover as adaptações para efetivamente integrar as mais diferentes condições de pessoas com deficiência.
Por isso, diante dos poucos recursos, nossa única opção é lutar pela ampliação e aperfeiçoamento do modelo com prevalência da escola regular e com a escola especial, cumprindo sua função social com o atendimento às pessoas com deficiência que não foram adequadamente atendidas pela escola regular.
O objetivo da educação vai além do cumprimento do currículo. Exige-se dela a rompimento das barreiras e a criação de condições para que todas e todos possam habitar os mesmos espaços para desenvolver suas potencialidades, considerando as diferenças individuais, desenvolvendo cultura de respeito à diversidade humana.
Lutemos contra a instituição da segregação como política!
Brasília, 5 de outubro de 2020.