Por Ana Liési Thurler *
O 28 de setembro, dia latino-americano e caribenho pela legalização do aborto, foi instituído em 1990, no V Encontro Feminista da América Latina e Caribe, na Argentina, no horizonte da luta por igualdade, dignidade e autonomia das mulheres. No México e na Argentina, a proposta contida no 28 de setembro vem avançando. No Brasil, permanece estagnada. Pior: com risco de graves retrocessos.
Por que no Brasil, após passados oitenta anos de admitido no Código Penal, mesmo o aborto legal está permanentemente sob ameaça? Por que a enorme resistência à aprovação do aborto como exercício de autonomia da mulher, como exercício da livre decisão diante de uma gravidez não desejada?
Temos um poder legislativo com desigualdade extrema de gênero, significando dominação masculina em um Parlamento, com maioria absoluta de homens. Deliberações e decisões também em questões relativas a direitos reprodutivos estão com quem jamais engravidou, nem nunca engravidará e com quem, tantas vezes, não é solidário com quem engravida. Acompanhando tudo isso, há um intenso processo de naturalização pela sociedade dessa desigualdade. Esse quadro é reforçado por um executivo neo-teocrático, distante da laicidade, comprometido com o patriarcado racista e um sistema de justiça violador dos direitos da mulher, regido pela lógica de que a mulher é sempre suspeita – a vítima sempre mente, é culpada e é tornada ré.
Esse tema esteve sempre em nossas pautas. No contexto do processo constituinte, por exemplo, 26 de agosto de 1987 foi o dia das Emendas Populares e nos interessa aqui, a apresentação da Emenda da Saúde da Mulher, demandando o direito a conceber, o direito a evitar a concepção, o direito a interromper a gravidez não-desejada até 90 dias, o direito à assistência integral nos hospitais da rede pública, o direito à saúde integral. Essa emenda foi defendida por Maria Amélia de Almeida Telles, que invocou estudos indicando então haver no país, para cada 100 nascimentos, 50 abortos. Contraponto à Emenda da Saúde foi apresentada proposta incluindo a expressão direito à vida desde a concepção, para criminalizar a interrupção da gravidez em qualquer tempo. Há exatos 33 anos, em 28 de setembro daquele ano, essa proposta foi à votação e foi derrubada por 71 votos contra e 17 a favor. Contra estavam, entre outros, Cristina Tavares, Abigail Feitosa, José Genoíno. Nenhuma proposta foi acolhida, predominando a posição de não ser o aborto matéria constitucional.
Ainda hoje, entretanto – mais de três décadas após a Constituinte e oito décadas após a aprovação do Código Penal – setores do Estado brasileiro patriarcal, no século XXI, ainda se mantêm inconformados, insistindo na busca da revogação da decisão do Estado brasileiro… em 1940. Iniciativas como o abandono de Normas Técnicas sobre abortamento inseguro e a portaria 2282 não têm o objetivo de aprimorar os serviços de aborto legal no âmbito do SUS, mas destruí-los e criminalizar a mulher fragilizada, que buscou os serviços de saúde. Essas iniciativas são violências institucionais e expressões da cultura do estupro, que alimenta a incredulidade misógina na palavra da mulher. A cultura do estupro e a misoginia pretendem levar a mulher vítima de violência sexual a perder sua autonomia e a torná-la ré.
Mais um ano e continuamos atentas, insistindo com nossa resistência, clamando com nossa insubmissão a leis patriarcais. A vida das mulheres jovens, pobres, em idade reprodutiva, periféricas, negras importam. A vida de todas as mulheres importa.
#PelaVidaDasMulheres
* Ana Liési Thurler é socióloga, feminista.