Daniel Mota, Luiz Fernando Toledo, José Brito e Vital Neto, da CNN, em São Paulo15 de setembro de 2020 às 18:18 | Atualizado 15 de setembro de 2020 às 18:45 Compartilhar https://audio.audima.co/iframe-later-cnn-audima.html?skin=cnn&statistic=true&clientAlias=cnnVolume 50%
Uma empresa de Minas Gerais vendeu ao laboratório do Exército Brasileiro (LQFEx) ao menos dois lotes de insumos importados para a fabricação de cloroquina por um valor 167% mais alto do que ela mesma tinha cobrado em venda à mesma instituição dois meses antes. O custo total desses contratos mais caros foi de R$ 782,4 mil aos cofres públicos.
Documentos obtidos com exclusividade pela CNN revelam que o laboratório do Exército não contestou formalmente esse aumento no preço e só cobrou explicações por escrito à empresa depois de a compra, já finalizada, ter virado alvo de uma investigação no Tribunal de Contas da União (TCU).
Na semana passada, a Procuradoria-Geral da República também recebeu uma denúncia sobre a compra e analisa se vai instaurar inquérito. Para especialistas, a falta de justificativa para o aumento de preço dentro de um processo de compra pública pode configurar improbidade administrativa.
O Laboratório Químico e Farmacêutico do Exército já fabrica a cloroquina há anos para tratamento de malária, mas entrou em evidência em 2020 ao ampliar a produção para atender às demandas de distribuição do Ministério da Saúde de tratamento para a Covid-19. O remédio não tem eficácia comprovada contra a doença.
O grupo Sul Minas, representado pelas empresas Sul Minas Suplementos e Nutrição e Sul de Minas Ingredientes, forneceu ao Exército 300 kg de difosfato de cloroquina, a base do remédio, por R$ 488/kg no mês de março de 2020, mesmo preço de um registro licitado em 2019. Dois meses depois, em maio, a mesma empresa vendeu 600 kg do produto ao governo por R$ 1.304/kg, sob a alegação de que os custos internacionais subiram, já que ela não fabrica o insumo, mas somente o importa da Índia.
Marcelo Luis Mazzaro, um dos responsáveis pela empresa, alegou em carta ao laboratório no dia 21 de julho, depois da venda, que a fabricante e fornecedora do produto, a IPCA, teria elevado seu preço em 300% em março de 2020 e em 600% em abril, somado ao aumento de 300% no custo do frete internacional e a variação cambial de 45%.
Isso justificaria a diferença de preços. Os valores absolutos resultantes dessas variações não são apresentados. A primeira venda ao Exército, com valor ainda de R$ 488/kg, teria acontecido somente porque a empresa optou por não repassar esses aumentos à instituição à época, escreveu Mazzaro.
Mas a própria Sul Minas admitiu, tanto na carta enviada após a venda quanto em e-mails trocados com o Exército durante as negociações, que ela tinha estoque do material desde março, mesmo mês em que aceitou negociar o produto pelo valor mais barato. A informação era de conhecimento do governo e estava nos orçamentos. Além disso, uma parte dos insumos (100kg) não foi importada, mas sim comprada pela Sul Minas no mercado interno em data e valores não divulgados, segundo informação fornecida pela própria empresa. Todos os documentos foram obtidos pela reportagem por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI).
A negociação dos 600 kg ao preço mais caro se desenrolou em duas etapas, explicou a empresa. Na primeira, em 13 de abril de 2020, depois de ser procurada pelo Exército, a Sul Minas alegou inicialmente que não possuía nenhum estoque e ofereceu um preço de R$ 2,2 mil/kg para importar os insumos, mas o valor foi recusado. Na segunda vez, no dia 30, a empresa melhorou a oferta para R$ 1.304/kg.
A justificativa para a redução repentina no preço foi de que eles passaram a ter um estoque sobrando de 500 kg do material depois de o Instituto de Tecnologia em Fármacos (Farmanguinhos) ter cancelado uma licitação deste produto da qual a Sul Minas participaria. A CNN tentou obter esclarecimentos com a Farmanguinhos sobre o cancelamento, mas o laboratório disse apenas que a aquisição de cloroquina está sendo “reavaliada.”
Os 600 kg do insumo foram vendidos ao Exército em duas partes: os primeiros 100 kg, adquiridos pela empresa no mercado interno, no dia 13 de maio, e os outros 500 kg, da licitação cancelada com a Farmanguinhos, no dia 20. Em nenhuma dessas negociações o laboratório do Exército cobrou que a Sul Minas fornecesse notas de entrada do material no Brasil que comprovassem quanto a empresa pagou pelo produto ou a data em que fez essas importações e compras no mercado interno. Também não consultou os fabricantes na Índia para verificar qual foi a variação de preços do insumo que teriam afetado os custos cobrados pela empresa brasileira.
Profissional de saúde com comprimido de cloroquina em hospital de Porto Alegre
Foto: Diego Vara – 23.abr.2020/Reuters
Os primeiros questionamentos formais do laboratório do Exército à empresa mineira só aconteceram em julho, depois que o certame virou alvo de questionamentos do TCU, cuja tramitação corre em sigilo, em resposta a um pedido formalizado pela CNN por meio da Lei de Acesso à Informação. Também há uma denúncia em análise pela Procuradoria-Geral da República (PGR) protocolada pela deputada federal Natália Bonavides (PT-RN), que pede a responsabilização dos ministros da Saúde e da Defesa pela compra dos insumos e fabricação do medicamento.
O e-mail do laboratório do Exército que pediu esclarecimentos à Sul Minas foi enviado no dia 20 de julho e a empresa respondeu no dia seguinte, dois meses depois de ter vendido o material ao governo. As tratativas, segundo o laboratório, teriam acontecido antes por telefone. A Sul Minas admitiu na resposta ao e-mail que efetuou as compras em março com a IPCA – informação que já havia sido dada durante o processo de venda -mas defendeu que já naquele mês os custos internacionais teriam subido. Não foi apresentada nenhuma prova sobre a alegação de aumento dos custos com a fabricante da Índia, com o argumento de que tais informações são um segredo comercial. O Exército não contestou a resposta e nem fez novas perguntas.
A CNN esteve nas sedes da empresa, na pequena cidade de Campanha, no sul do Estado de Minas Gerais, mas seus representantes não quiseram gravar entrevista. A empresa afirmou que houve um grande aumento nos preços do produto na Índia, que teria variado de US$90 em 2019 para US$ 250 em 2020, além do aumento do frete e variação do dólar. Disse ainda que procurou oferecer a melhor proposta ao Exército dentro das condições de mercado. O grupo afirmou ainda que teve um ganho pequeno com a negociação, de cerca de 10% do valor total, e que quem é responsável pela gestão do dinheiro público é o Exército, caso haja qualquer indício de irregularidade na compra.
À CNN, o diretor de compliance da fabricante IPCA Harish Kamath disse que não pode responder por variações de preços no Brasil e que não tinha informações específicas, mas confirmou as alegações da Sul Minas de que houve variações no mercado por causa dos custos com frete aéreo e elevação de custos em geral. Afirmou ainda que a IPCA sofreu com dificuldades para comprar matéria-prima e que seus fornecedores chineses estão cobrando mais caro. O representante disse que não informaria os preços das transações com a Sul Minas ou qualquer cliente pois são informações protegidas por acordos de confidencialidade.
‘Inexequível’
Por causa da pandemia da Covid-19, o processo de compra na administração pública no Brasil passou a permitir a dispensa de licitações na “aquisição de bens, serviços e insumos de saúde destinados ao enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus.”
Para adquirir os insumos da cloroquina, o Exército fez uma consulta de preços que avalia possibilidades como o painel de preços do governo federal, contratações similares, pesquisa em mídia especializada e pesquisa com fornecedores.
A única concorrente da Sul Minas que foi considerada no certame, procurada em 27 de abril pelo laboratório do Exército, foi a empresa MCassab, que fez uma oferta mais cara, de R$ 1,8 mil por quilo. A empresa concorrente da Sul Minas não tinha material em estoque para vender e disse, em sua proposta, que a venda estava sujeita à importação e aos prazos da fornecedora IPCA, na Índia. Procurada, a MCassab não quis comentar.
Já a pesquisa de preços no sistema do governo resultou em um registro de preço da própria Sul Minas, do ano anterior, de R$ 488, e foi descartada automaticamente pelo órgão público por considerar o valor “inexequível” diante da realidade do mercado, embora não haja, no processo, consulta aos preços praticados pelas empresas que fabricavam o material à época.
O processo das compras incluiu ainda uma imagem de tela (printscreen) de um site chamado Made-in-China, que se descreve como fornecedor de “informações mais completas, precisas e atualizadas sobre produtos chineses e fornecedores chineses disponíveis de qualquer lugar em web”, com preço do insumo a US$ 300, valor mais alto que o negociado com a Sul Minas.
Para especialistas consultados pela reportagem, o Exército deveria pedir esclarecimentos por escrito à empresa do porquê desse aumento de preço ainda durante as negociações. Para a professora de direito administrativo da Damásio Educacional Patrícia Carla de Farias Teixeira, as variações deveriam ter sido justificadas por escrito no processo. “Em um contrato administrativo você pode até fazer contato por telefone, o que é normal. Mas tudo deve ser justificado, até para que não haja a responsabilidade do gestor por possíveis irregularidades. A administração pública é diferente da privada. É preciso justificar o porquê do aumento do preço. Todas as compras precisam ter vantajosidade”. Se comprovada irregularidade, segundo a especialista, o servidor responsável pela compra poderia responder por improbidade administrativa.
“Sem conhecer detalhes do processo, me parece que o Exército teria de ter negociado. Dizer que a mercadoria já estava no estoque da empresa desde março e tentar obter um preço melhor. Também poderiam fazer uma pesquisa mais ampla, procurar com outros fornecedores. Se eles só tomaram as providências de questionar os preços depois de o TCU apontar irregularidade, me parece um procedimento equivocado”, diz o professor de direito administrativo do Mackenzie Alexandre Levin. “A falta de economicidade na compra pública pode gerar responsabilização administrativa. A administração tem de comprar pelo menor preço possível O Exército é um órgão público como qualquer outro e tem de cumprir a legislação.” Ele reforça que a negociação está prevista na Lei 13.979, aprovada em fevereiro com medidas de enfrentamento à pandemia da Covid-19.
Para o advogado Ulisses Penachio, advogado especialista em direito público, o estoque de material não permitiria que o preço fosse mais caro.
“Não pode, inclusive porque se há coerência com o que está no portal (de registo de preços do governo federal) e o que está na proposta de menor valor, é impossível falar em inexequibilidade. Ainda mais, se o que você vende o que já está aqui, em estoque”. Ele também contesta o fato de o Exército utilizar a justificativa da Sul Minas para o aumento de preços, mesmo sem nenhum detalhamento dos valores das importações que a empresa fez. “Se é com base apenas em declarações, você tem um processo administrativo de compra frágil. No direito administrativo, tudo tem que ter uma fundamentação técnica. Você não pode simplesmente dizer ‘é assim porque é assim’, não, é assim com base em elementos técnicos e em documentação probatória. Se não você fez o procedimento administrativo de compras, mas ele é frágil. Você não tem como sustentar se não tiver demonstração técnica disso”.
Um especialista que trabalha contratos do setor público e pediu para não ser identificado disse que, diante da alta de preços e da suspeita de superfaturamento, o Exército deveria ter cobrado que a empresa abrisse os custos de importação. “Se há qualquer indício de que a empresa está superfaturando, deveriam pedir acesso à nota fiscal de compra do contratado para comparar com o valor que foi vendido”, disse.