As portas fechadas da Cinemateca impedem que os antigos funcionários, mesmo que de forma voluntária, façam a mínima manutenção no acervo. Cercado de policiais armados, o governo federal tomou as chaves e desfez os vínculos com todos os colaboradores. Restam para cuidar de toda a memória fílmica do país dois bombeiros, abandonados à própria sorte, sem saber o que fazer diante de um acervo de mais de 250 mil rolos de filmes. Salvo engano, pela primeira vez há uma interrupção total das atividades dessa instituição desde que ela foi criada, nos anos 1940.
Com essa atitude, o atual governo demonstra que não pretende interromper apenas o passado, mas também o presente. Junto com a Cinemateca, todas as estruturas de financiamento e regulação do cinema brasileiro foram paralisadas. A tática é doentia: mantêm-se as instituições, não mais para fomentar, mas para perseguir e destruir os patrimônios pelos quais deviam zelar. É o que hoje faz o Ministério do Meio Ambiente com a Amazônia, a Funai com os índios, o Ministério da Educação com as universidades e o Ministério da Saúde com toda a população na pandemia. Com o cinema não seria diferente.
Esse projeto destrutivo é calcado nas ideologias dos setores mais reacionários do Brasil, principalmente de militares, que defendem que o maior “erro da ditadura” foi, além de não ter exterminado seus inimigos (uns 30 mil, segundo o atual presidente), não perceber que a esquerda conseguiu hegemonizar o pensamento na arte e na educação, mesmo com a repressão. A ideia é sufocar qualquer pensamento contrário àqueles que hoje estão no poder.
Diante desse quadro, o que pode propor o cinema? Como resistir a esse panorama de terra arrasada? Estamos à altura dos desafios que se apresentam? E, não menos importante: que erros cometemos para que o cinema fosse destruído sem causar nenhuma comoção na maioria dos brasileiros?
Ao pensarmos este momento, é natural procurar paralelo em outro golpe autoritário, o de 1964. Entre outros motivos, porque o atual presidente reivindica ser fruto do que havia de pior na tradição castrense que controlou o país por mais de vinte anos. Mas talvez nos seja útil pensar essa relação a contrapelo: o golpe interrompeu um processo constante de mudanças iniciado com a Revolução de 1930, que trouxe avanços enormes ao país: pela primeira vez a classe trabalhadora ganhou representação, direitos básicos foram garantidos e um projeto de Brasil, que envolvia uma mudança radical na educação e na cultura, foi apresentado. O cinema brasileiro moderno nasceu desse novo paradigma: evidenciava a exploração sofrida pelas classes populares e ao mesmo tempo sua generosidade e criatividade, apostando em um porvir. A transformação prometida, porém, faltou ao encontro. O que surgiu foi seu contrário: uma contrarrevolução “preventiva” que apagaria a chama da liberdade e criaria um novo paradigma de país, até hoje vigente.
Nos primeiros anos após o golpe, artistas e intelectuais seguiam com certa liberdade seus trabalhos.1 A ditadura rompera o elo entre essa produção e as classes “perigosas”, camponeses e operários, que tiveram suas lideranças duramente perseguidas (e mortas) a partir de 1964. Se em um primeiro momento o ímpeto do pré-golpe não arrefeceu, aos poucos a euforia deu lugar à autocrítica e ao pessimismo. O Cinema Novo Brasileiro, movimento revolucionário que surgiu nesse processo radical de mudanças, foi duramente abalado pelo golpe. Uma das discussões centrais que davam sentido a esse cinema era a superação do subdesenvolvimento. Seus instrumentos eram a liberdade formal e autoral, profundamente comprometidas com as mudanças estruturais necessárias para superar a desigualdade no país.
Sufocados entre a censura oficial, a censura econômica (com o golpe tornou-se ainda mais difícil o apoio financeiro para filmes críticos) e o medo da repressão física (pois a tortura e o desaparecimento eram um fantasma crescente, rondando o imaginário e a vida prática de muitos criadores), muitos artistas aceitaram negociar com a ditadura. Alguns inclusive ajudaram a pensar e gerir a Embrafilme, uma empresa de cinema estatal, criada pela ditadura. Vale ressaltar que a Embrafilme foi criada oficialmente poucos meses depois do AI-5. Houve então uma mudança sutil no léxico até então em uso: a questão do subdesenvolvimento (que envolvia esferas de superação políticas, sociais, estéticas, culturais e econômicas) foi substituída pela questão do combate à ocupação imperialista. A estratégia foi a abertura de canais de financiamento e diálogo e a construção de um discurso anti-imperialista, acompanhada de leis protecionistas dentro da lógica política de substituição das importações vigente. Um exemplo dessa mudança de rumo do cinema está no texto do crítico e realizador Gustavo Dahl, “Mercado é Cultura” (1977). Egresso do Cinema Novo e um de seus ideólogos, ele se tornou um quadro importante na Embrafilme a partir do governo Geisel. Dahl defendia que, “para que o país tenha um cinema que fale a sua língua, é indispensável que ele conheça o terreno onde essa linguagem vai-se exercitar. Esse terreno é realmente o seu mercado. Nesse sentido explícito, é válido dizer que ‘mercado é cultura’, ou seja, que o mercado cinematográfico brasileiro é, objetivamente, a forma mais simples da cultura cinematográfica brasileira”. Ao que parece, houve uma grande transformação no ideólogo do Cinema Novo que defendia o papel central do artista. Não havia mais o paraíso da revolução e da emancipação das consciências a ser alcançado. O mercado passou a ser o horizonte. Treze anos de ditadura e sua modernização conservadora convenceram Dahl e muitos realizadores de sua geração que era hora de abandonar suas antigas ideias.2
Por outro lado, havia o desenvolvimento acelerado das telecomunicações, construindo um novo paradigma cultural, que rapidamente se tornaria hegemônico. E, como sabemos, a ditadura cuidou para que seus aliados monopolizassem esses meios. Os grandes canais de televisão incorporaram grande parte dos criadores de esquerda em seus quadros. Muitos artistas acreditaram, em um primeiro momento de boa-fé, que poderiam trazer um toque pessoal para essa estrutura, trabalhando sutilmente em suas dramaturgias os problemas cotidianos da classe trabalhadora. Os traumas do golpe fizeram alguns vislumbrar na televisão uma possibilidade de falar às massas, que aceitaram indiferentes a ditadura (ao menos essa foi a leitura de grande parte dos intelectuais da época). Com o tempo, essas aspirações mostraram-se ilusões. Na prática, as TVs se apropriaram de uma forma sofisticada, fruto de um acúmulo estético e político do teatro brasileiro, diluindo, no entanto, seu conteúdo. Essa forma (tendo como produto principal as telenovelas) acabou por servir como instrumento de conciliação da ditadura com a classe trabalhadora, que, até a ruptura de 1964, sustentara politicamente os projetos emancipatórios.3
A chegada da redemocratização não arrefeceu a ideia de que mercado é cultura. Ao contrário, esse se tornou o pensamento hegemônico que perdura até hoje. Após a destruição, no governo Collor, da Embrafilme e de toda a estrutura que sustentava o cinema brasileiro, as políticas e discussões públicas apontavam para esse caminho. Não à toa, o Ministério da Cultura de FHC defendia que a “cultura é um grande negócio”, com suas leis de incentivo calcadas na decisão das empresas de reverter parte dos impostos devidos ao Estado em investimento cultural.
Os anos Lula trariam um modelo híbrido:4 se no atacado investia nas grandes produções, no varejo possibilitava que outras formas também se manifestassem. O Ministério da Cultura, com Gilberto Gil à frente, criou diversos projetos inovadores que permitiram novos olhares sobre o Brasil. A busca de descentralização dos investimentos em produções de cinema foi um elemento catalisador para uma explosão criativa que tomou conta do país. O fortalecimento da Ancine e a criação do Fundo Setorial resultariam, na década seguinte, em uma expansão da produção brasileira sem precedentes (comparável em número de filmes somente ao ápice dos anos 1970).
Essa expansão da produção, no entanto, não foi acompanhada de um projeto que efetivamente fizesse esses filmes chegar à população brasileira. Não se enfrentou o mercado de exibição e, quando o governo buscou enfrentar os monopólios do sistema de telecomunicações, sofreu uma fragorosa derrota.
Em todo esse processo, contestou-se pouquíssimo a concentração das salas de exibição, em grande parte dominadas por empresas norte-americanas. A euforia dos realizadores, vivendo um período inédito de grande fluxo de capital para a produção, nos fez perder de vista o fundamental: a criação de uma grande cadeia de exibição que visasse à maioria de nosso povo. Na prática, nos mantivemos submissos às ordens do mercado, produzindo para um nicho elitizado, com poder aquisitivo suficiente para frequentar salas de cinema. O preço desse descaso é pago agora com o silêncio da maioria da população diante da morte anunciada do cinema brasileiro.
Vence o capital internacional e seus aliados locais, somados ao neofundamentalismo cristão, que aos poucos hegemonizam os espaços, apagando culturas, transformando tudo em mero produto de consumo e eliminando o que não está sob seu domínio. Perde o cinema brasileiro, que luta como pode para se manter em pé, visando um futuro em que as muitas vozes potentes de nossa cultura possam viver e sobreviver participando na construção de nossas múltiplas identidades e modos de vida.
O que a história nos mostra é que mercado e ditaduras andam juntos quando lhes é conveniente. Sabemos aonde isso pode nos levar: censura, precarização do trabalho, aniquilação das diferenças. Estamos diante do perigo real de extinção do passado, presente e futuro de nossa arte cinematográfica. Lembremo-nos de nossas lutas pretéritas como um alerta para o presente. Olhemos para nossa história, atentos às pistas que podem abrir os caminhos, conscientes dos erros que não podemos voltar a cometer. Escutemos aqueles que nos precederam e lutaram a luta justa: Zózimo Bulbul, Glauber Rocha, Ozualdo Candeias, Raquel Gerber, Andrea Tonacci, Helena Solberg, Nelson Pereira dos Santos, entre tantos outros. Cineastas que souberam inventar e realizar um cinema do futuro, sonhar um país que caiba a todos nós.
Thiago B. Mendonça, Adirley Queirós, Affonso Uchoa, Cristina Amaral, Ewerton Belico e Luiz Pretti são realizadorxs do cinema brasileiro.
1 Partimos para essa reflexão do seminal texto de Roberto Schwarz, “Cultura e política 1964-1969”, parte do livro O pai de família e outros estudos.
2 Uma nota importante: não se trata de usar Gustavo Dahl como um bode expiatório. Pelo contrário, mencionamos suas ideias aqui por considerá-lo um dos mais importantes pensadores de cinema de sua geração. As escolhas que ele fez só podem ser compreendidas no contexto de um grupo de cineastas que buscava sobreviver e produzir no contexto difícil de uma ditadura que perdurou no tempo. Seria um anacronismo descabido fazer qualquer julgamento moral ou pessoal sobre isso.
3 Este parágrafo parte de textos e reflexões fundamentais de Paulo Bio Toledo, Rafael Villas Bôas e Iná Camargo Costa. As eventuais impropriedades, no entanto, se devem exclusivamente aos autores.
4 Vale ressaltar que esse modelo é mais próximo do que era defendido por Gustavo Dahl em seu texto já citado de 1977. Não seria incorreto dizer que as políticas públicas de cinema na era Lula, com seus erros e acertos, devem muito às suas reflexões.