Entre a primeira semana do mês de março e a última de julho, a cidade do Rio de Janeiro esteve submetida a três padrões distintos de pandemia do novo coronavírus, segundo estudo inédito de pesquisadores brasileiros ligados à Universidade de São Paulo, à Universidade de Barcelona e à Universidade Católica de Brasília. A forma de cada uma dessas três curvas foi determinada não apenas pelo vírus, mas também por quem mandava em cada bairro, por quem tinha poder de fato sobre a vida das pessoas que passaram a fazer parte das estatísticas da doença.
Houve um padrão específico para as áreas controladas pelo tráfico (onde se verificou o menor incremento médio de hospitalizações e mortes, ou seja, uma curva mais achatada), outro para aquelas dominadas por milicianos (locais em que o crescimento de mortes e hospitalizações foi o maior das três regiões, com número explosivo de casos) e um terceiro padrão para os bairros mais ricos da capital fluminense, onde o Estado não é desafiado por poderes paralelos (com aumento do número de hospitalizações e mortes num ritmo intermediário ao das outras duas áreas).
Em todos os bairros da cidade, os casos de hospitalizações e mortes por Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG) deram um salto a partir de fevereiro deste ano. Mas a pesquisa revela que a velocidade de crescimento foi radicalmente diferente nas áreas controladas por milicianos, de um lado, e naquelas controladas por traficantes, de outro. Enquanto nos bairros sob controle das facções ligadas à venda de drogas o número de hospitalizações por SRAG cresceu 46% a menos do que nas áreas com presença efetiva do poder público, nas localidades controladas pelas forças paramilitares, as hospitalizações cresceram 34% a mais do que o observado nos bairros sem poder paralelo. Nos dois casos, os números que representam as inclinações distintas das curvas (46% a menos ou 34% a mais do que na cidade “oficial”) refletem diferenças provocadas pelo comando de traficantes ou milicianos sobre a vida das pessoas, já descontadas outras causas de incremento dos números de hospitalizações, como a densidade populacional local e fatores socioeconômicos.
Os efeitos também se fizeram notar no número de mortes por Síndrome Respiratória Aguda Grave. Enquanto nas áreas dos milicianos elas aumentaram 29% a mais do que nos bairros com presença estatal, os óbitos sofreram um incremento 43% menor nas áreas do tráfico, também em relação à cidade “oficial”, ou seja, aos locais sem controle de qualquer tipo de crime organizado.
comportamentos em relação à pandemia dos dois grupos criminosos que controlam territórios no Rio – comportamentos que já vinham sendo noticiados em relatos na imprensa, mas cujos efeitos ainda não haviam sido testados de maneira rigorosa. “Mostramos que as diferentes formas de controle territorial impostas pelo crime organizado afetaram a dinâmica da epidemia de Covid-19 no Rio de Janeiro”, eles escrevem no trabalho, que ainda não foi publicado.
Apesar de as diferenças epidemiológicas por áreas da cidade flagradas pelo estudo serem claras, os mecanismos que podem ter levado a esses comportamentos distintos das curvas de hospitalizações e mortes ainda são tratados pelos pesquisadores como hipóteses. O custo para os milicianos em impor normas de distanciamento social seria muito alto, supõem os economistas, uma vez que essas forças paramilitares exploram o comércio local cobrando taxas dos pequenos empresários. Esse custo é muito menor para os traficantes, eles dizem.
No dia 17 de abril, o site G1 noticiava: “Milícia obriga reabertura de comércio na Zona Oeste e Região Metropolitana do Rio para manter cobrança de taxas.” Na reportagem, sem se identificar, um comerciante afirma: “Os milicianos daqui, cara, ficam oprimindo a gente, entendeu? Mandando ficar com o bar aberto, que nós ‘tem’ que ficar para fazer dinheiro para pagar eles, para eles ‘poder’ pagar os caras da cobertura da PM.”
Em contraste, há relatos de que o tráfico impôs toques de recolher e a obediência a normas de distanciamento social durante os piores meses da pandemia na capital fluminense. “Um benefício imediato desse tipo de atitude para os traficantes é o de não ficarem, eles próprios, doentes”, explicou Raphael Bruce, em entrevista à piauí. “Parece simples, mas, por não terem laços tão próximos com o Estado quanto a milícia, há o temor de serem detectados ao procurarem socorro médico.”
Para evitar problemas de subnotificação – que poderia ser distinta dependendo do tipo de controle local imposto às populações –, os pesquisadores utilizaram dados de Síndrome Respiratória Aguda Grave, disponibilizados pelo Ministério da Saúde, em vez de estatísticas sobre casos confirmados de Covid-19. Há, de toda forma, enorme correlação entre casos de SRAG e de Covid-19 neste ano. “É difícil imaginar que uma outra epidemia, simultânea à do coronavírus, estivesse provocando esse salto nos casos de SRAG”, explicou Alexsandros Cavgias.
Os três pesquisadores notaram que as médias de casos desse tipo de doença a cada semana, em cada bairro da cidade, vinham se mantendo relativamente constantes entre 2013 e o início deste ano. As diferenças nas taxas de evolução da doença só aparecem depois de fevereiro de 2020. Embora as médias já fossem um pouco mais altas nas áreas controladas pelas milícias, o salto foi de toda forma muito maior nessas localidades. Entre 2013 e o início deste ano, havia em média 0,08 caso de hospitalização por semana, por SRAG, nos bairros com presença eficaz do poder público; 0,06 hospitalização por semana nas áreas do tráfico; e 0,13 caso nos bairros controlados pela milícia. Esses números passaram, entre março e julho, para médias de 7,07 hospitalizações por semana no primeiro tipo de área, 4,45 hospitalizações nas regiões controladas pelo tráfico, e 11,61 casos de hospitalização por semana nas regiões sob o poder das milícias. “Antes da pandemia, as tendências eram parecidas”, afirmou Luis Meloni, da USP. “Não vinha aumentando mais em bairros da milícia do que em outros lugares da cidade.”
O estudo realizado pelos economistas incluiu o acompanhamento de outros fatores que poderiam ter afetado o número de casos depois da eclosão da doença, como a densidade populacional e as condições socioeconômicas em cada bairro. “Adicionamos controles que poderiam ‘matar’ todo o efeito constatado”, explicou Cavgias. “Mesmo assim o efeito explicado apenas pelo grupo que controla o bairro permaneceu nos resultados, e permaneceu grande”, completou.
Por RAFAEL CARIELLO – reevista Piauí