Depois de duas semanas de férias, o professor Mabalo Lokela voltou à sua velha rotina na pequena Yambuku, região Norte do Congo. Tinha um pouco de febre, dores de cabeça e cãibras pelo corpo. Durante o descanso, não fez nada de excepcional. Aproveitou para visitar a família e amigos em aldeias vizinhas, caçou na mata e entreteve-se com passeios turísticos. Nos dias seguintes à sua volta, seu quadro de saúde se agravou. Teve sangramento nasal, disenteria e mais febre. Lokela procurou o único corpo clínico disponível no vilarejo, formado por freiras católicas belgas que, em missão humanitária, faziam as vezes de enfermeiras. Examinado, recebeu o diagnóstico: reincidência de malária, doença que contraíra meses antes. Tomou cloroquina e foi para casa descansar. Estava se sentindo melhor. Mas, com o passar dos dias, voltou a piorar. Sangue escuro escorria de seus ouvidos, ao mesmo tempo que outras manchas escuras e viscosas se acumulavam sob o nariz e os olhos, atraindo moscas. Também havia sangue no vômito e na diarreia, que a essa altura estavam incontroláveis. “Isso é novo”, disse uma das irmãs belgas, que visitou o professor quando o quadro se agravou. “Isso é definitivamente novo.”
Duas semanas depois dos primeiros sintomas, Lokela morreu. Tinha 44 anos. As pessoas que tiveram contato com ele também começaram a ficar doentes e a exibir os mesmos sintomas. As freiras não sabiam do que se tratava, mas tiveram a intuição certa: era algo novo, definitivamente novo. De setembro até o final daquele ano de 1976, o vírus que matou Lokela infectou 318 pessoas na região de Yambuku e levou 280 à morte, perfazendo um índice estarrecedor de letalidade, em torno de 88%. Os cientistas, para evitar que o novo vírus criasse um estigma em relação ao povoado, preferiram batizá-lo com o nome do rio de 250 km que corta toda a província de Équateur, onde fica Yambuku. O rio chama-se Ebola.
A história vinculou o nome de Mabalo Lokela ao vírus letal, mas, anos depois de sua morte, os cientistas levantaram evidências indicando que ele talvez não tenha sido o paciente zero do ebola. Acredita-se que a doença tenha surgido quando o vírus infectou um caçador local ou, mais provavelmente, quando alguém consumiu carne selvagem infectada, vendida por algum caçador. Os cientistas têm convicção quanto ao caminho que a doença percorreu – a carne de um animal infectado foi consumida por um ser humano – mas, até hoje, não sabem dizer com precisão que animal foi esse nem como o animal se infectou. É um pouco parecido com a infecção do novo coronavírus, cuja origem exata ainda se especula. Começou com um morcego? Com um pangolim? Com os peludos visons?
Em 1999, o escritor norte-americano David Quammen recebeu um convite irrecusável. A equipe de Michael Fay, biólogo graduado pela Universidade do Arizona, faria uma expedição de oito semanas pela densa floresta entre as bacias dos rios Congo e Ogouê, na África Central, e convidou Quammen para narrar a aventura. “O meu objetivo era descrever as pesquisas de campo que Fay estava organizando no hábitat natural do ebolavírus. Por um lado, era assustador. Afinal, lidávamos com uma doença letal sobre a qual se conhecia muito pouco. Por outro, era o tipo de desafio que faz brilhar os olhos dos apaixonados por boas histórias”, conta ele. Sua reportagem, publicada em série na revista National Geographic, começou a transformar Quammen no “biógrafo das epidemias”.
Seu livro Contágio: Infecções de Origem Animal e a Evolução das Pandemias, lançado nos Estados Unidos em 2012 e no Brasil neste ano, tornou-se referência nos estudos sobre a natureza das zoonoses, como se chamam as doenças infecciosas que passam de animais não humanos para humanos. Agora, o livro ganhou mais notoriedade porque prenunciou a pandemia atual. “Não sou um adivinho, como alguns podem crer pelos pedidos de entrevista que recebo. O livro apenas traz bases científicas que permitiam prever, de certa forma e com alguma precisão, o cenário que enfrentamos hoje”, diz.
Na época da missão de Fay, o que fascinou Quammen foi a possibilidade de encontrar a origem do vírus (hoje sabemos não ser apenas uma, mas cinco cepas distintas). “Sabíamos apenas que ele estava lá, mas não sabíamos onde: qual inseto, ave ou mamífero poderia ser seu repositório secreto.” Pela Floresta de Minkébé, entre cipós espinhentos, pântanos lodosos e muitos riachos e lagos, Quammen e a equipe de Fay cruzaram com elefantes-africanos, toda a sorte de insetos, poucos leopardos, muitas rãs e bandos de macacos a passarem apenas como vultos longínquos entre as copas das enormes árvores. Por isso, a equipe ficou intrigada ao deparar no chão da floresta com um macaco-guenon-de-coroa com as narinas ensanguentadas. O temor é que pudesse estar infectado com o ebolavírus. Quammen recorda que Fay ordenou que ninguém servisse carne de animais mortos encontrados no caminho, para decepção dos bantus e pigmeus que trabalhavam como guias para o grupo e já anteviam um ótimo jantar. Naquela noite, a refeição, porém, não foi muito diferente das anteriores: um cozido de carnes secas com molhos enlatados e purê de batata instantâneo. “O macaco quase morto, eu esperava fervorosamente, tinha sido deixado para trás”, anotou Quammen em uma das páginas do seu famoso livro.
O enigma só aumentou à medida que outros símios, entre gorilas e chimpanzés, foram encontrados mortos ao longo da floresta. Não havia certeza de que eles teriam sido mortos pelo ebolavírus (muitos foram), tampouco de que os primatas poderiam ser os reservatórios para o vírus. A série de reportagens escritas por Quammen, bem como os bastidores das pesquisas de Fay apresentados por elas, ajudaram a atiçar a curiosidade de biólogos, veterinários e virologistas, que tentaram cercar ainda mais a doença. Entre 2001 e 2003, incursões à mata lideradas por Eric M. Leroy, diretor-geral do Centro Internacional de Pesquisa Médica de Franceville, no Gabão, coletaram amostras de sangue e de órgãos internos de mais de mil animais, entre aves, morcegos e mamíferos terrestres, como roedores e musaranhos. Entre os 679 morcegos capturados e dissecados, os estudos encontraram material genético do vírus em três espécies, e todas se alimentavam de frutas e eram consumidas comumente como proteína animal na África Central. Também surgiram evidências, até hoje não comprovadas, de que os morcegos poderiam ser o reservatório natural mais provável (e assintomático) da doença.
Na virologia, identificar os reservatórios naturais é decisivo para combater (ou até erradicar) zoonoses. A tarefa é, por vezes, mais difícil do que encontrar o patógeno responsável por ela. No caso da Covid-19, a cepa do coronavírus que causa a doença se tornou logo conhecida, apareceu em testes e ganhou nome próprio: Sars-CoV-2. Mas ainda não sabemos ao certo os animais envolvidos na sua cadeia de transmissão. É cedo para dizer. Doenças zoonóticas são, por natureza, intrincadas. Elas se caracterizam por uma infecção animal que, por meio de uma simples reviravolta do destino – e, vá lá, do ambiente –, se torna transmissível ao homem.
Para que as zoonoses surjam, é necessária uma cadeia de eventos. Primeiro, um animal (um porco ou um morcego, por exemplo) deve ser infectado com um vírus cujas mutações lhe habilitem a infectar outra espécie. No passo seguinte, esse animal portador do vírus, que não necessariamente estará doente, precisa ter algum contato com um ser humano e transmitir o vírus. Assim, a primeira infecção pode ocorrer e o ser humano ficar doente. Ou não.
Tudo piora consideravelmente se um terceiro evento é adicionado à equação: o ser humano infectado transmite o vírus para outro ser humano. A partir daí, não é mais necessário o contato direto com o animal, mas o próprio ser humano passa a ser um transmissor da doença para seus pares. Se essas três condições forem atingidas, o vírus ganhou boa parte da batalha. “O quanto vai se propagar – se vai ser um surto localizado, uma epidemia ou uma pandemia – vai depender do vírus, da imunidade prévia da população, da carga viral necessária para infectar um novo ser humano e das medidas de contenção. Tudo pode ficar muito imprevisível”, explica o virologista Felipe Naveca, do Instituto Leônidas e Maria Deane, da Fiocruz Amazônia.
Os vírus não são os únicos tipos de patógenos com potencial de causar zoonoses. Além deles, há bactérias, fungos, protozoários, príons e vermes. A doença da vaca louca é causada por príons. A cisticercose, doença causada pela ingestão de carne de porco ou de boi contaminada, é provocada por vermes. A tripanossomíase, conhecida como doença do sono, resulta de um protozoário. A leptospirose é causada por bactérias. A diferença é que, no caso dos vírus, as zoonoses são mais problemáticas. Elas evoluem rápido, não respondem a tratamentos específicos, como antibióticos, e podem ter altas taxas de letalidade. Alguns vírus, como o da influenza, também têm grande capacidade de saltar a barreira de espécies e infectar diferentes animais, de porcos a cavalos, em busca de novos hospedeiros. E, com isso, fica muito mais difícil fechar o ciclo para combater a doença.
“Nos últimos sessenta anos, vêm surgindo mais doenças, com novos patógenos emergindo de animais e infectando humanos. Em alguns casos, são doenças terríveis e surtos. Às vezes, esses surtos se transformam em epidemias. Às vezes, as epidemias se transformam em pandemias. Depende do quanto o patógeno é transmissível, mas essa tendência vem crescendo, e eu posso listá-las”, diz Quammen, durante uma conversa com a piauí por videoconferência. Do vírus Machupo, em 1959, que emergiu de roedores na Bolívia, à epidemia do zika vírus em 2015, Quammen citou doze surtos num fôlego só, sem desviar seus olhos azul-esverdeados da tela.
Quammen tem bigode, cabelos grisalhos e uma fala mansa, pausada, como quem dá alguns segundos para seu interlocutor processar as muitas informações que dispara a cada frase. Graduado em letras pela Universidade Yale, começou sua carreira escrevendo romances de espionagem, mas aos poucos se voltou para textos de não ficção, que publicava em revistas como National Geographic e The New York Review of Books. “Me transformei em escritor de revistas, especializado em história natural. Mas, por favor, não escreva na sua reportagem que eu sou um ‘escritor de natureza’”, brinca ele, que vive com a mulher, também escritora e conservacionista, os dois cachorros, um gato e uma cobra píton em Bozeman, no estado norte-americano de Montana. “Essa é a nossa família”, orgulha-se.
Ao longo dos anos, Quammen publicou vários títulos científicos, mas ganhou projeção maior ao escrever sobre vírus e zoonoses como quem narra uma trama policial intrincada. No mestrado em Oxford, sua tese versou sobre os aspectos estruturais dos principais romances do escritor norte-americano William Faulkner, um gênio cuja literatura alguns consideram pouco amistosa. “Esses estudos me ajudaram muito na estruturação, de maneira complexa mas orgânica, dos meus próprios livros”, diz ele, que é fã confesso de Absalão, Absalão!. “Um ou dois críticos se queixaram de que meus livros são longos e complexos, especialmente Contágio. Francamente, acho que esses críticos é que tinham expectativas muito simples a respeito da estrutura de um livro sobre biologia. É preciso dar às histórias a complexidade que elas têm”, argumenta.
Ahistória das doenças zoonóticas na sociedade moderna é uma trama que vai se tornando cada vez mais intrincada ao se expandir por paisagens continuamente transformadas. Em um comunicado divulgado no início do ano, o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma) alertou que “as doenças transmitidas de animais para seres humanos estão em ascensão e pioram à medida que hábitats selvagens são destruídos pela atividade humana”. Dos pangolins amontoados em jaulas junto a outros animais em mercados populares como o de Wuhan às galinhas poedeiras mantidas em gaiolas pelas granjas entre fezes, sangue e vírus ansiosos por sobreviverem num hospedeiro, a humanidade está cozinhando um tremendo caldeirão de patógenos que, de outra forma, não chegariam ao homem. Os cientistas estão descobrindo que a agressão humana ao mundo natural cria de dois a quatro novos vírus a cada ano. Qualquer um desses vírus pode se transformar em uma pandemia. Mais de 70% das doenças zoonóticas emergentes recentes se originaram de animais selvagens, especialmente mamíferos e aves, com potencial para gerar pandemias devastadoras. E muitas passam, direta ou indiretamente, pelo nosso prato.
O consumo de carne selvagem é tão antigo quanto o próprio homem, mas os mercados de animais silvestres são um fenômeno novo, que remonta à década de 1980. No mundo natural, essas espécies de diferentes países ou continentes nunca se encontrariam. Nas bancas das feiras e mercados, elas são colocadas próximas umas das outras, e do próprio homem, aumentando o risco de transmissão. Para engrossar esse caldo, as doenças, as lesões e o estresse provocados pelo cativeiro enfraquecem o sistema imunológico dos animais e criam um ambiente mais propício para que um vírus mutante salte de uma espécie para outra. Quando um animal é caçado e enviado aos mercados, rompem-se os ecossistemas e liberam-se patógenos de seu hospedeiro natural. Nessa situação, os vírus precisam de um novo organismo. E, muitas vezes, o novo organismo somos nós.
Com o crescimento desses mercados e do comércio ilegal de animais selvagens, era previsível que estourasse uma pandemia como a atual. Em abril, a Proceedings of the Royal Society B, revista da Royal Society britânica dedicada à divulgação de artigos de biologia, publicou um estudo dizendo que a causa subjacente da atual pandemia é o aumento do contato humano com a vida animal. “Era apenas uma questão de tempo até que algo assim acontecesse”, disse o biólogo Thomas Lovejoy, em entrevista recente ao jornal britânico The Guardian. Pesquisador sênior da Fundação das Nações Unidas e professor do Departamento de Ciência e Política Ambiental da Universidade George Mason, Lovejoy é uma autoridade no assunto. Ele cunhou o termo “diversidade biológica”, que abriu um novo horizonte para o entendimento da relação entre as espécies.
Os especialistas e estudiosos, no entanto, dizem que o problema não está nos mercados de animais selvagens em si. “A questão é a comercialização irrestrita de vida selvagem que eles abrigam”, explica o neerlandês Rikkert Reijnen, que dirige um programa de combate aos crimes contra a vida selvagem do Fundo Internacional para o Bem-Estar Animal, uma organização que protege animais em quase meia centena de países. Para Reijnen, é preciso acabar com o estigma dessas feiras de venda de carnes, verduras e peixes tão populares em toda a Ásia e focar no problema do consumo de animais selvagens em centros urbanos, onde as oportunidades de transmissão entre espécies são mais amplas. “Um vírus não salta facilmente de um morcego, pangolim, macaco ou civeta para um ser humano. Isso só acontece quando invadimos os hábitats desses animais ou os aproximamos de outras espécies com as quais eles normalmente não teriam contato, incluindo seres humanos”, completa.
Uma alternativa é reduzir drasticamente a remoção de animais selvagens de seus hábitats naturais, com a eliminação progressiva do comércio, sobretudo em mercados urbanos. “Dada a experiência do surto da Covid-19, não podemos recuar mais ao nosso status quo. Em vez disso, devemos começar uma rígida prevenção do comércio de animais selvagens, com limitadas exceções”, defende Reijnen. Quais limitações seriam essas e como regulá-las é uma questão em aberto, que divide especialistas, entre biólogos e sociólogos. A proibição indiscriminada de comércio de animais silvestres causaria prejuízos às pessoas mais vulneráveis no mundo, muitas das quais dependem desse mercado para a sobrevivência.
Um grupo de representantes de 250 entidades de apoio a comunidades africanas encaminhou uma carta aberta à Organização Mundial da Saúde (OMS) e ao Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente pedindo atenção especial ao tema, ao justificar que a atual pandemia está aumentando os custos sociais e econômicos para países e localidades mais pobres e vulneráveis. Em muitas delas, o consumo de carnes selvagens é uma das únicas maneiras de se obter proteína animal. “Existe um julgamento enviesado das pessoas sobre a realidade dessas comunidades, como se a culpa da pandemia que vivemos fosse de quem come carnes de animais silvestres na África, dos chineses que frequentam esses mercados”, diz Quammen.
Nossos hábitos alimentares, nossas viagens, nossas compras, tudo tem impacto no mundo natural. “Nós invadimos os mais diversos ecossistemas do mundo ou contratamos pessoas para fazer isso por nós, consumidores”, afirma Quammen. “Deixe eu te dar um exemplo específico: toda pessoa que possui um telefone celular tem uma parte dessa responsabilidade. Os celulares requerem tantalita, um tipo de minério escasso e de alto valor usado para a produção de placas-mãe, que é obtido a partir do coltan (mistura de columbita e tantalita), encontrado apenas em alguns lugares do planeta. Um deles é o Sudeste do Congo [outro é na Amazônia], em uma área adjacente à rica floresta, onde vivem muitas espécies de macacos primatas, roedores e morcegos. Então, quando compramos um celular, indiretamente estamos pedindo a mineradores que entrem nessas áreas para nós, e eles vão lá e, por dias, vivem em acampamentos. O que eles vão comer? Existe uma proteína disponível para eles? Haverá tofu? Carne de porco e galinhas? Provavelmente, não. Frequentemente, eles se alimentam de carne de caça, com o nosso aval”, salienta.
As carnes que cotidianamente cozinhamos, fritamos, assamos ou grelhamos também são focos potenciais de infecções zoonóticas. Estudos mostram que as granjas e sistemas de confinamento de onde vêm as coxas de frango e as picanhas do churrasco de domingo reúnem a maior frequência de vírus com mutações antigênicas, ou seja, vírus que se tornam capazes de passar de uma espécie para outra. Em 2018, um estudo publicado na revista Frontiers in Veterinary Science analisou 39 mudanças antigênicas em aves, que têm papel central no surgimento de novos vírus da influenza aviária altamente patogênicos. “Todos esses 39 eventos, exceto dois, ocorreram em sistemas comerciais de produção de aves”, concluiu o estudo, que pesquisou cepas desde 1959 e em diferentes partes do mundo.
Os influenzavírus são, como comprovam as epidemias da gripe espanhola (1918-19) e da gripe suína (2009-10), grandes competidores dos coronavírus e, se sofrerem mutações como as que já vêm sendo percebidas em aves selvagens e domésticas, podem ter um efeito ainda mais devastador do que a atual pandemia. A OMS, normalmente conservadora em suas estimativas, prevê que, se a gripe aviária pular para os humanos, teremos entre 2 e 7,4 milhões de mortes no mundo. A comunidade científica não tem dúvidas de que novos vírus e bactérias, que transitam entre animais de fazenda e seres humanos, serão uma grande ameaça à saúde mundial nos próximos anos – talvez maior até do que a Covid-19.
Do contato com animais de fazenda vieram doenças como o sarampo e a varíola, que, antes de ser erradicada, pode ter matado 300 milhões de pessoas só no século XX. O crescimento populacional acelerou a interação entre homens e animais, gerando novas zoonoses. “Estamos agora no que os cientistas chamam de ‘terceira transição epidemiológica’, caracterizada tanto pela ressurgência de doenças infecciosas conhecidas [a volta do sarampo, por exemplo], como pelo aparecimento de novas doenças”, explica Cynthia Schuck Paim, doutora em zoologia pela Universidade de Oxford e coautora do livro Pandemias, Saúde Global e Escolhas Pessoais.
É um ciclo que se retroalimenta: a população cresce e, em decorrência disso, é preciso aumentar a produção de comida. A Organização das Nações Unidas calcula que, para alimentar os quase 10 bilhões de habitantes que o planeta terá até 2050, será necessário expandir em 70% a produção de alimentos, inclusive de carne. A demanda crescente é o que levou à superlotação de aves em galpões do tamanho de campos de futebol, onde é comum o uso intensivo de amônia (que evita processos de decomposição, mas também acaba por queimar os pulmões dos animais) e de antibióticos (que resultam em bactérias cada vez mais resistentes). A própria seleção de genes específicos para produzir frangos com maior valor de mercado, com peitos mais robustos ou carnes menos gordurosas, também tem um efeito deletério: torna as aves quase idênticas geneticamente, de modo que um vírus pode se espalhar facilmente de animal para animal sem encontrar variantes genéticas capazes de deter seu avanço. Em doenças zoonóticas, frigoríficos são como um fósforo aceso perto de um barril de pólvora.
Quando se trata de pandemias, não há saúde animal e saúde humana. “Para reduzir o risco de pandemia para nós mesmos, nosso olhar precisa se voltar para a saúde dos animais”, pondera o espanhol Santiago Mas-Coma, presidente da Federação Mundial de Medicina Tropical, a entidade que reúne 33 sociedades de parasitologia de todos os continentes. Trabalhadores confinados para abater e preparar animais em frigoríficos tornaram-se focos de surtos da Covid-19 em todo o mundo, da Alemanha ao Canadá. No estado de Dakota do Sul, nos Estados Unidos, as instalações da Smithfield Foods, que produz 5% de todo o porco consumido no mercado norte-americano, viraram ponto crítico de infecções. No estado de Iowa, no Meio-Oeste do país, a Tyson Foods, um dos frigoríficos mais conhecidos dos Estados Unidos, enfrentou surtos que chegaram a contaminar 60% dos empregados em suas instalações. Em todo o país, matadouros foram fechados devido a alta incidência de trabalhadores doentes e centenas de animais foram sacrificados.
No Brasil, muitos dos frigoríficos e abatedouros não pararam durante a quarentena e, com isso, ajudaram a espalhar a doença nas cidades do interior. O pesquisador Ernesto Galindo, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), fez um estudo sobre a região Sul do país, cruzando números de casos de Covid-19 com a presença de frigoríficos (o Sul concentra em torno de 45% da mão de obra empregada em frigoríficos no país). A conclusão chama a atenção. Em algumas cidades-polo, cuja economia atrai trabalhadores das cidades vizinhas, Galindo encontrou mais casos confirmados entre empregados de frigoríficos do que entre a população residente. O fenômeno ocorreu em municípios como Ipumirim, em Santa Catarina, e Tapejara, no Rio Grande do Sul.
Os abatedouros, no entanto, são apenas um aspecto do problema no Brasil. Há um outro, cujo poder de devastação é desconhecido, mas potencialmente avassalador: o desmatamento desenfreado da Amazônia, a floresta com a maior biodiversidade do mundo. Com seus ecossistemas riquíssimos, com sua infinidade de animais, fungos, bactérias e vírus, um universo que a ciência está longe de conhecer por inteiro, a Amazônia é um patrimônio natural inestimável, mas também um centro de agentes infecciosos – talvez o maior hotspot do mundo, como dizem os cientistas sobre as regiões mais suscetíveis à produção de zoonoses emergentes. Os cientistas já isolaram centenas de novos vírus na região amazônica, mas suspeitam que o total pode chegar a milhares. Hoje, eles estão no meio da floresta, como fazem há milhões de anos, sem causarem qualquer mal ao homem, mas, com a degradação constante do meio ambiente, podem repentinamente saltar de uma espécie para outra e chegar aos humanos. “Estamos cortando árvores, construindo assentamentos, abrindo garimpos, chacoalhando tudo”, diz Mas-Coma. E, essencialmente, estamos criando pastos.
Calcula-se que cerca de 80% das áreas desmatadas da Amazônia são utilizadas para a criação de animais. É um aumento brutal, da ordem de 74%, nos últimos trinta anos, de acordo com dados do ano passado produzidos pelo MapBiomas, uma plataforma que reúne universidades, ONGs e empresas de tecnologia, e produz mapas e imagens sobre o uso da terra no Brasil. A derrubada de árvores e o fogo usado para abrir clareiras no meio da mata acarretam uma irreversível fragmentação das áreas da floresta, obrigando algumas espécies a buscar novos lugares para viver. “Quando realizamos esse tipo de interferência, estamos dando aos patógenos que vivem nesses animais uma oportunidade para que expandam seus horizontes”, comenta Quammen. “Pode ser um caminho mais rápido para chegarem a nós, que somos a mais abrangente espécie deste planeta.”
Entre os benefícios naturais oferecidos por florestas como a Amazônia estão a regulação da temperatura do planeta e a manutenção dos ciclos de chuva, mas um serviço raramente mencionado é justamente o equilíbrio de agentes infecciosos que vivem nos seus reservatórios (os animais) e estão há muito tempo aclimatados naquele ecossistema. “Quando você muda a forma como os patógenos vivem, você altera toda a ecologia natural daquelas doenças encontradas ali”, explica a veterinária e pesquisadora Alessandra Nava, também vinculada ao Instituto Leônidas & Maria Deane, da Fiocruz Amazônia. Ela é uma das responsáveis pelo recolhimento de amostras de agentes infecciosos em animais para identificar (e tentar antecipar) a prevalência de possíveis zoonoses. Seu trabalho abrange regiões de florestas bem preservadas e áreas com maior interferência humana, na forma de caça, mineração, conversão do uso da terra, garimpo, agricultura ou pecuária.
“Monitoramos especialmente primatas, roedores e morcegos, que são reservatórios potenciais de alguns patógenos que podem nos causar doenças infecciosas”, explica Nava. Desde 2014, o Instituto Leônidas & Maria Deane tem o projeto de criar um biobanco robusto para armazenar essas amostras e compartilhá-las com pesquisadores do mundo todo. Será o primeiro banco brasileiro ligado à Organização Mundial da Saúde Animal – “a OMS dos animais”, como diz Nava. O projeto possibilitará que pesquisadores do mundo todo acompanhem o que acontece na Amazônia em termos de patógenos e doenças emergentes. Ajudará no esforço global para conter possíveis epidemias, como aconteceu na Malásia, no final dos anos 1990, com o vírus de Nipah, que saltou dos morcegos para os porcos e dos porcos para o ser humano. “É uma história que se repete. Vem da intensificação da agricultura e da criação de animais que se expande para áreas dos animais silvestres”, relata a pesquisadora. “É um exemplo clássico do que podemos ter aqui a qualquer instante.”
Nava está preocupada com o avanço do desmatamento para abertura de pastos na floresta. “Já há frigoríficos bem instalados no meio da Amazônia.” Apenas no período que vai de 2016 até agora, 27 novos abatedouros foram registrados na Amazônia Legal, elevando o total de frigoríficos na região para 184. De acordo com um levantamento do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), a devastação na Amazônia atingiu 3 069,57 km² no primeiro semestre deste ano, o que representa um aumento de 25% em comparação aos primeiros seis meses de 2019. “Estamos construindo uma bomba-relógio prestes a explodir”, diz ela. O seu trabalho com as amostras é conter ao máximo os possíveis destroços. “Gostaria de dizer que não, mas com esse cenário de degradação crescente, existem grandes chances de uma epidemia surgir daqui.”
Por meio da tela do computador, antes de encerrar a conversa com a piauí, Quammen é indagado se está trabalhando em algum projeto sobre o novo coronavírus. Ele comenta que teve que deixar de lado um livro que trata o câncer como um fenômeno evolutivo. Em vez disso, passou a escrever, mais uma vez, sobre as pandemias. Dentro de dois anos, deve entregar o novo volume à editora norte-americana Simon & Schuster. Ao ouvir que as epidemias não lhe deixam em paz, ele contrapõe. “Elas não deixam ninguém em paz. E a Covid-19 não é a única história”, afirma, como se soubesse de algo a mais. Ele coça a cabeça, arqueia a sobrancelha esquerda e contesta: “As tramas com estruturas ordenadas e muito previsíveis são chatas demais.”
Via revista piauí