Ricardo Antunes: “Pandemia desnuda perversidades do capital contra trabalhadores”


Os altos índices de informalidade e ausência de direitos trabalhistas que atingem os trabalhadores em todo o mundo, com destaque para o Brasil, não são resultados da pandemia da covid-19

Segundo o sociólogo Ricardo Antunes, as graves consequências do novo coronavírus são resultados da combinação letal entre a crise estrutural do capitalismo, que destrói sistematicamente a legislação social protetora do trabalho, e uma crise sociopolítica sem precedentes. 

Em entrevista ao Brasil de Fato, o autor do e-book Coronavírus: O trabalho sob fogo cruzadolançado recentemente pela Boitempo, define o atual cenário vivido pelo trabalhador brasileiro como “o celeiro da tragédia”. 

Além dos 12,8 milhões de desempregados, o país conta com um contingente massivo da população sem acesso à renda e sobrevivendo sob a ameaça da fome. De acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o número de trabalhadores que ficaram sem remuneração durante a pandemia em maio chegou a 9,7 milhões.

Antunes destaca que quando o coronavírus eclodiu, a informalidade já atingia 40% da classe trabalhadora. Hoje, com a necessária paralisação das atividades econômicas e sem apoio do Estado, grande parte deste contingente está desempregado. 

“Um trabalhador ou trabalhadora na informalidade, se vai pra casa fazer isolamento, não recebe. Inclusive a maioria sofreu com o desemprego imediato. Se vai pra casa, morre de fome. Se vai para a rua, seu emprego desapareceu. A pandemia do capital mostrou o flagelo, a virulência, a devastação, que o capitalismo dos nossos dias pratica em relação à classe trabalhadora”, declara o especialista.


E-book pode ser encontrado nas principais livrarias digitais do país / Foto: Divulgação/Boitempo

Com o crescimento e inovações do chamado “processo de uberização” durante a quarentena, que impôs a informalidade para diferentes categorias, o sociólogo avalia “que os capitais estão usando laboratórios de experimentação para que, no imediato pós-pandemia, ele sejam implementados”. 

Esse processo só não irá se expandir, segundo Antunes – que também é professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) –, se houver um processo de luta, e confrontação da classe trabalhadora.

paralisação convocada pelos entregadores de aplicativos para a próxima quarta-feira (1º), para o sociólogo, será um grande exemplo dessa resistência.

“Não foi a pandemia que trouxe a tragédia. Ela é o resultado de uma tragédia de um sistema de metabolismo social destrutivo. Por isso falo em capitalismo pandêmico e virótico. Estamos vivendo um capitalismo letal, destrutivo, pandêmico e virótico”, ressalta o sociólogo.

Confira a entrevista na íntegra.

Brasil de Fato: Quais impactos a covid-19 trouxe ao mundo do trabalho e que já são sentidos pela população?

Ricardo Antunes: Os impactos da pandemia do capital, como eu costumo chamar, são profundos. Embora não tenha sido a pandemia que causou a tragédia do mundo do trabalho, ela pôs a nu, desvendou, desnudou, a forma pela qual o capitalismo já vinha desenvolvendo, desde 1973, mais especialmente no século 21, a partir da crise de 2008 e 2009, uma forma de trabalho pautada pela combinação complexa e nefasta entre alto índice de digitalização das tecnologias de informação e comunicação.

Hoje temos os Ipads, smartphones, internet 5g, inteligência artificial. Porém, esse maquinário informacional digital tem avançado e se desenvolvido empurrando a classe trabalhadora, ou seja, o trabalho vivo, para a flexibilização, a terceirização, e mais acentuadamente nesse período, a informalidade e a intermitência. Todos eles, aspectos profundamente nefastos.

O que venho trazendo nos meus livros anteriores e também nesse, eu enfatizo como sendo uma corrosão, um processo de devastação da força de trabalho em escala global. A pandemia eclode em um momento em que temos 40% de informalidade no Brasil. Naquele momento… fevereiro, comecinho de março. Cerca de 40 milhões de homens e mulheres na informalidade, 12,9 milhões de trabalhadores e trabalhadoras desempregados, quase 13 milhões. Quase 5 milhões em desalento. Mais uma massa de subutilizados e sub-ocupados.

A pandemia vem e devasta. Só para dar um exemplo. A primeira recomendação que tivemos como importante é fazer o isolamento das categorias que não trabalhavam em atividades essenciais como médicos, enfermeiros, entre outros. 

Se o trabalhador ou trabalhadora, e falo sempre os dois gêneros porque há uma divisão social, de gênero e raça no trabalho, veremos isso ao longo do livro, desenvolvo essa ideia. O que acontece nesse processo? Um trabalhador ou trabalhadora na informalidade, se vai pra casa fazer isolamento, não recebe. Inclusive a maioria sofreu com o desemprego imediato. Não tem nem a chance de redução da jornada e de salário, que já são negativas, que as empresas grandes fizeram. O informal é imediatamente mandado embora.

Se ele vai pra casa fazer isolamento, ele morre de fome. Se ele vai para a rua, seu emprego desapareceu. Hoje, o nível de informal desempregado aumentou. Algumas pesquisas mostram que diminuiu a informalidade nesses meses. E é verdade. Porque o informal virou desempregado. Temos o desempregado que tinha o emprego formal e temos um crescimento desses 40 milhões de informais, e teremos um percentual deles, significativo, que é um informal desempregado. 

Ou seja, a pandemia do capital mostrou o flagelo, a virulência, a devastação, que o capitalismo dos nossos dias pratica em relação à classe trabalhadora. E ele é diferenciado. Prejudica mais a classe trabalhadora feminina do que a masculina. Mais a classe trabalhadora negra, do que a branca. Mais a trabalhadora negra do que a mulher branca. Mais a trabalhadora indígena em relação à mulher branca. Mais o trabalhador e trabalhadora imigrante do que o trabalhador nativo. 

É o celeiro da tragédia, se eu pudesse usar uma síntese provocativa. O capital virótico oferece o celeiro da tragédia. É isso que estamos vivendo hoje. 

Já vinhamos discutindo o processo de uberização. A pandemia trouxe novas modalidades de precarização? Essas “adaptações” vieram para ficar?

Fundamentalmente, o que é a uberização do trabalho? Ainda que a palavra remeta ao trabalhador da Uber, o conceito é mais amplo. Hoje, em qualquer país do mundo que se vá, você fala de trabalho uberizado, as pessoas sabem o que é. A empresa Uber se expandiu, junto com ela a Amazon, o Cabify, 99, Lift, Ifood, Rappi. Uma infinidade. Algumas específicas em certos país e outras globais.

O trabalho uberizado é um trabalho que padece de condições de informalidade, está excluído da legislação social protetora do trabalho, salvo nos países onde está havendo regulamentação. Como no estado da Califórnia, nos Estados Unidos. Há avanços da legislação na Espanha, na França e na Inglaterra, porque os trabalhadores estão se manifestando.

Veja, vamos ter a greve agora no dia primeiro de julho. Eu chamo no meu livro, Privilégio da Servidão, de “escravos digitais”. É assim que os capitais os tratam. Eles trabalham com jornadas extenuantes, em um ritmo intenso, controlado por um algoritmo. Sem nenhum direito e ainda, essa é a alquimia mais nefasta, as empresas os tratam como prestadores de serviços.

Se eu sou um prestador ou uma prestadora de serviço, eu não sou assalariada. Se não sou assalariado, estou fora da legislação protetora do trabalho. Eu venho dizendo, e isso eu digo no Coronavírus: o trabalho sob fogo cruzado, que os capitais estão usando laboratórios de experimentação para que, no imediado pós-pandemia, ele sejam implementados. 

Você me pergunta: É o novo ou é o mesmo? São os dois. É o monstrengo do trabalho sem direito, gerando um novo monstrengo que carrega parte do anterior. O trabalhador e a trabalhadora, quando realizam jornadas fixas, intensas, ele é assalariado. Enquanto tal, tem que ter direitos. Não pode ser chamado de prestador de serviços. 

Estamos vendo agora a realidade. Se não tem serviço, não tem trabalho, se não tem trabalho, morre de fome. As empresas estão crescendo. Basicamente as empresas que entregam alimentos, os motoboys, estão trabalhando muito, sofrendo os padecimentos de não terem os direitos do trabalho, estão se acidentando, se contaminando, e não têm nenhuma legislação protetora do trabalho para eles.

Recentemente, por uma ação importante do Ministério Público do Trabalho da Região de Campinas, junto com pesquisas e trabalhos feitos nas universidades, inclusive na Unicamp, houve uma determinação que a secretaria de saúde de São Paulo acatou, que é a da obrigatoriedade mínima de dar equipamentos, como álcool e máscaras pros trabalhadores. 

Ouvi hoje o depoimento de um trabalhador que as empresas dizem que há caminhões esparramados com álcool sendo distribuídos. E ele diz: “Eu não vi nenhum”. “Rodei São Paulo inteira e não vi nenhum”.

Esse tipo de trabalho uberizado, esse protótipo, é o que está sendo maquinado. Já há médicos uberizados, advogados uberizados, jornalistas uberizados, professores uberizados, trabalhadoras dos cuidados uberizadas. Se precisar de uma trabalhadora doméstica, por exemplo, eu posso acessar uma plataforma de trabalho doméstico, contratar pra ela vir trabalhar amanhã 2h por dia. A trabalhadora vai ter uma remuneração, que se muito, será de um salário mínimo, ao passo que a empresa vai ganhar por horas de trabalho dela, muito mais.

Esse é o desenho que está sendo concebido pelo capital. E ele só não vai se expandir e se tornar dominante se houver luta, resistência e confrontação como está havendo no mundo e no Brasil.  

Conseguimos traçar paralelos dos efeitos socioeconômicos dessa crise, dessas mudanças que estamos passando hoje, com outro momento da história do trabalho?

Traçar paralelo, conseguimos, mas vou provocar com as palavras. É um paralelo sem paralelo. A última situação parecida com essa foi a 102 anos atrás, na Gripe Espanhola. Era outro mundo. Não havia essa globalização, ao contrário. Estava havendo um redesenho do mundo, os países imperialistas e capitalistas mais avançados estavam disputando. A Alemanha de um lado, a Inglaterra, Estados Unidos e Japão estavam redesenhando o mundo. “Chega do controle do capitalismo inglês ou o norte-americano em expansão”. 

Mas a Gripe Espanhola pegou um mundo que, primeiro, tinha uma população muito menor do que a nossa. E o capitalismo não tinha chegado ao nível de destrutividade que chegou hoje. É um ponto que desenvolvo muito no e-book que estou lançando.

O sistema de metabolismo anti-social do capital, seu funcionamento orgânico, significa o seguinte: o capitalismo só pode crescer destruindo. Um exemplo muito simples: hoje olhamos os celulares, os automóveis e computadores com uma alta tecnologia, fazem tudo. Agora, curiosamente, quanto mais tecnologicamente desenvolvido eles são, menos tempos de uso eles podem ter. Menor é o tempo de duração. Por quê?

É uma questão óbvia. Se uma coisa tem uma grande qualidade, ela deve durar muito. Se comprar um carro dos anos 60, ele durava 20, 30 anos. Hoje um automóvel é programado pra durar muito menos. Tem o seguro de perda total e aí se acha que ganha um carro novo. Na verdade, algumas peças foram afetadas e como as peças custam caríssimo, jogamos um carro no lixo inteiro, às vezes com uma peça quebrada, porque é cara.

Essa é a chamada produção destrutiva. Se o capitalismo só pode crescer destruindo, ele destrói o trabalho em proporção impressionantes. A OIT [Organização Internacional do Trabalho] disse algumas semanas atrás que há havia 1,6 bilhão de trabalhadores e trabalhadoras no mundo na informalidade, que estavam em um vídeo maior de pobreza do que no ano anterior. É a destruição do trabalho humano.

O capitalismo do nosso tempo está devastando a natureza. O aquecimento global, as geleiras derretem, isso altera os mares. Altera a reprodução dos vírus. Se muda o ambiente da terra e se tem um aquecimento, muitos infectologistas apontam que os vírus encontram situações mais propícias para se expandirem. E os vírus se expandindo, afetam a população que come comida com agrotóxico, com transgênico, industrializada, que respira um ar poluído e o quadro é caótico.

Leia mais: Cientistas debatem a relação entre o capitalismo, a crise ambiental e a pandemia

Estamos vendo uma espetacular luta mundial do movimento negro, e veja, é o movimento negro trabalhador e de classe trabalhadora. Não é uma camada restrita de negros da alta burguesia americana, por mais que eles também apoiem, porque são negros e sofrem com o racismo.

É o negro pobre. É aquele que a polícia bate. É a negra trabalhadora pobre que é vilipendiada. No Brasil, todo dia tem uma tragédia nova. Esse é o cenário do mundo que estamos vivendo.

Então, não foi a pandemia que trouxe a tragédia. Ela é o resultado de uma tragédia de um sistema de metabolismo social destrutivo. Por isso falo em capitalismo pandêmico e virótico. Estamos vivendo um capitalismo letal, destrutivo, pandêmico e virótico.

É evidente que na medida que o capitalismo oferece uma pandemia, ela nos afunda ainda mais social, econômica e politicamente. 

A pandemia potencializa a possibilidade de questionamento do discurso do empreendedorismo? As pessoas conseguiram notificar as falhas e a desproteção trabalhistas desse sistema?

Decididamente e no mundo inteiro. Toda a humanidade está se perguntando, primeiro: “Por que eu sou pobre e morro e os ricos estão em suas casas, bem guardados? Por que faltam hospitais para os pobres e têm leitos para os ricos?”. 

É um mundo em que hospitais viram shoppings e pobres não têm leitos. Eles estão se perguntando. O uberizado, a trabalhador ou a trabalhadora, por exemplo. Quando se fica desempregado por dois anos e consegue um emprego, começa-se viver uma lua de mel com esse novo emprego. “Agora é bom. Eu que faço meu horário. Estava cansado, vou começar a trabalhar às 10h, mas vou até meia noite. Não faz mal”. 

Só que a pandemia desnudou todo isso. Os trabalhadores percebem que embora o vírus não escolham a classe… Até porque começou com os ricos. Por que começou no norte mais avançado da Itália ao sair da China? Porque havia um espaço daquela região, que eu conheço bem porque tenho sido professor convidado na Universidade Ca’ Foscari Venezi, ali tem núcleos de empresários chineses com verdadeiros polos de investimento.

Então as burguesias transferiram o vírus da China para outros países e as classes médias fazendo turismo. Só que quando o vírus atinge a periferia, o vírus de letalidade é muito maior. A classe trabalhadora empobrecida do campo, da cidade, da agroindustria, dos serviços, se alimenta pior. O trabalhador pobre não tem seguro saúde digno, depende do Sistema Único de Saúde (SUS). Ainda que ele seja muito importante, nós sabemos que ele está sendo destruído há muito tempo. Fundamentalmente no governo Temer e Bolsonaro a destruição foi completa.

Uma previdência pública destruída pelo governo Bolsonaro, muito embora já tivesse medidas contra a previdência pública em governos anteriores, agora veio a tacada final. 

Quando o vírus chega na periferia, ele não ataca um. Ataca centenas. As populações das periferias, não só das grandes mas também de pequenas e médias cidades, em muitos lugares não têm hospitais. Quanto tem hospital, não tem leito. Quando tem leito, não tem respirador. E quando tem respirador e leito, o médico ou a enfermeira adoeceu. 

Tem uma coisa que é muito importante, que é o papel decisivo dos movimentos sociais, dos sindicatos de classe, dos partidos de esquerda. O papel decisivo das lutas feminista, negra, da juventude. Todos esses movimentos, e muitos já estão fazendo, devem denunciar esse sistema

Veja o caso das comunidades indígenas. Elas têm plena consciência que o mundo capitalista dos brancos não lhes traz felicidade mas devastação. E elas dizem: Nós não queremos extração de minério nas nossas terras. Vai poluir nossos rios, trazer dores. É o que estamos vendo agora, o abandono dessas populações. Uma verdadeira política genocida de tal modo que o coronavírus está se esparramando no meio indígena. Os brancos entraram, a mineração e os madeireiros, houve transmissão do vírus. Saem os brancos e o vírus devasta.

Temos muitas questões que são imediatas. Uma renda emergencial para toda a população e não de R$600. Isso é uma piada. Eu até entendo que para quem está sem nada, R$600 dá pra comprar arroz, feijão, um sabonete e segurar umas duas ou três semanas. Mas estamos falando em um nível de sobrevivência indigna e desumana. Uma sobrevivência dotada do mínimo de humanidade, suporia pelo menos uma renda de três salários mínimos. Para comer, habitar e ter remédios. ]

Assim como taxação do lucro das grandes empresas, taxação das grandes fortunas, do capital financeiro. Mas os movimentos sociais, partidos de esquerda, sindicato de classe, movimentos feministas, negro, indígena, estamos obrigados a reinventar outro modo de vida. Esse modo de vida atual é destrutivo. 

Nesse momento de falhas de Estado, há um ganho de consciência da classe trabalhadora? Queria aproveitar para fazer um link com a greve do próximo 1º de julho, dos entregadores de aplicativos. Haverá uma nova forma de mobilização?

A população trabalhadora percebe que está sofrendo. Agora, a consciência de classe não nasce do nada. Há um movimento evangélico de extrema direita que se utiliza desse momento para desenvolver um pensamento que aprofunda a alienação e aprofunda a desumanização. 

Do tipo: “O coronavírus não existe. Se você tiver Deus, Deus impede o coronavírus”.  Aliás, um presidente de um desses grandes grupos religiosos foi internado, mas tinha muito dinheiro para pagar por um bom tratamento. Nessa hora Deus não ajudou e ele teve que ir pro hospital. Se ele fosse tão crente em Deus ele ficaria em casa. 

Já Bolsonaro ganhou uma eleição dizendo que era contra o sistema. Não dizia que ia defender e arrumar, dizia que era contra. Ele que era uma criação nefasta do sistema dizia que era contra. É um momento propício para a humanidade refletir. É ai que entra a importância dos movimentos sociais, dos partidos de esquerda, dos sindicatos, do pensamento crítico.

É nesse momento que tem que ajudar a população. É muito complexo nesse meio todo. Ai tem alguém que diz que há um milagre que é a cloroquina e muitos acreditam, por mais que estejam morrendo. Ai vem outro e diz que não adianta ficar parado em casa. É muito confuso. 

Nós temos hoje um fenômeno complicadíssimo que é a internet, as mídias sociais, o Whatsapp. Estamos vendo grandes gangues de Whatsapp que robotizaram o sistema de modo que uma informação falsa é “bombada” 50 milhões de vezes. É muito importante que possamos debater. 

O mundo inteiro está se perguntando: Faz sentido? Não é só o Brasil. Por que agora estamos no meio dessa tragédia e estamos pagando? A população percebe que os ricos se salvam e que os pobres morrer. Se você pegar a tabela e ver quem está morrendo, são os pobres e negros. Quem está se safando mais? Os ricos. 

As pessoas percebem mas debater essas questões é vital. 

E em relação a forma de organização? Temos como saber as perspectivas?

O que os uberizados, os trabalhadores que fazem entrega, perceberam é que o período de lua de mel que falei agora pouco acabou. Agora é a lua de fel. O fel é uma coisa azeda, áspera. Os trabalhadores percebem: “Estou trabalhando 10h, 12h 14h por dia entregando comida e ganhando menos.”

Dizem que é o algorítimo. Mas o que é o algorítimo? Um programa que é feito. O segredo é quem programa. Posso ter um algoritmo mais humanizado, onde o trabalhador pode trabalhar com mais tranquilidade, receba mais, não vai ser cobrado pelo tempo de entrega.

Agora, os algorítimos dos capitais é o algorítimo da necroatividade. Da atividade letal. Sabe por que? Se morre um, tem 10 para o lugar dele. Tem cem.

E uma coisa que vale para os movimentos sociais, partidos, não podemos aceitar trabalho informal. Você conhece empresa informal? Funciona, não funciona. Ganha, não ganha. Temos uma epidemia da terceirização há décadas no Brasil. A terceirização é um vilipendio. Temos que reinventar um mundo onde isso não seja mais aceitável.

Os trabalhadores uberizados perceberam que só tem um jeito. Assim como eles estão conectados por algoritmos com a empresa, podem se conectar entre eles. Perguntar se houve redução de salário, o porque tal pessoa foi demitida.

Eu indico aqui para quem puder assistir o filme do Ken Loach, um grande cineasta inglês. “Sorry, we missed you”. Vai dar para ver bem. O trabalhador demorou para encontrar “um emprego maravilhoso” onde ele é o patrão dele próprio. Alguns meses depois, sua família e ele estão destroçados. Isso é ser o patrão de si mesmo.

E os empreendedores perceberam o mito. Cadê a renda deles, se não tem consumidor? Se não tem consumidor, não tem renda. Se não tem renda, eles mão produzem. E aquele dinheiro investido, tudo o que tinham para fazer o empreendimento? Virou pó. E o governo, que muito deles elegeram? Não está nem aí. O governo está garantindo para os grandes bancos e grandes empresas. O resto que se exploda.

Qual o cenário dos próximos anos? Uma convulsão social? Movimentação dos trabalhadores contra as ofensivas no mundo do trabalho? O que esperar para a próxima década, principalmente aqui no Brasil?

Se os capitais continuarem seus laboratórios e experimentações para jogar toda a crise pós-pandêmica no ombro das classes trabalhadoras, naturalmente sim. Lembra-se que até cinco, seis meses atrás, dizia-se que o Chile era o maior exemplo de neoliberalismo na América Latina?

Se pegasse a imprensa em setembro do ano passado e perguntasse qual país deu certo, diriam: Chile. Entrou em um processo de lutas que só abrandou agora por causa da pandemia.

Mas é evidente que chega uma hora que a panela de pressão não se sustenta. A questão é: Vamos pensar em recuperar dimensões de dignidade no trabalho, direitos do trabalho, para todos e todas, renda que permita sair dessa miséria? Nós temos dois países no Brasil. Existe um Grand Canion que divide os ricos e as classes trabalhadores. É brutal essa diferença. Não é aceitável.

Todo mundo sabe que cinco, seis empresários no país, os mais ricos, que ganham o que produzem 100 milhões de trabalhadores e trabalhadoras. Então você pode imaginar que tão poucas pessoas ganham o que produzem 100 milhões? Sendo que desses, dezenas de milhões recebem menos que um salário mínimo por mês? Está tudo errado.

O neoliberalismo se caracterizou por destruir o Estado. A sociedade do futuro não será uma sociedade do Estado ou não deveria ser. Mas em uma sociedade que ainda é capitalista, um papel do Estado pressionado pelas lutas sociais é fundamental.

O que segura esse país é aquilo que conseguimos preservar de público. Acontece que o neoliberalismo usa o público para garantir os interesses dos capitais. Exemplo: o que o Guedes faz. Porque ele é a expressão do neoliberalismo dos mais primitivos. Ele assusta os neoliberais menos primitivos e devo dizer que neoliberal primitivo ou sofisticado, não sei qual o pior, porque o sofisticado é mais qualificado na dominação. Ambos são nefastos.

Mas isso para mostrar que o capitalismo que temos aqui é primitivo. Mesmo Boris Johnson, claramente conservador e primitivo, quando foi pro hospital e quase morreu, saiu dizendo que devia a vida a dois imigrantes. E ele que vivia dizendo que ia fechar a Inglaterra pros imigrantes. Claro que muita fala e pouca concretude. 

A mesma coisa o Trump. Ele vai perder a eleição. E se o Trump perder a eleição, e não estou nem falando que a alternativa a ele é boa, não é isso. Mas seria o fascismo levando uma derrota muito importante. E se o fascismo trumpista for derrotado nos EUA, os fascistas tropicais, do leste europeu e do mundo asiático vão sofrer. 

A vitória do Trump deu muita força pra eles. A derrota do Trump será o início de um novo ciclo da nossa humanidade. E é imprescindível que para esse novo ciclo, não adianta imaginar que teremos convulsões sociais espontâneas. A burguesia e seus governos irão soltar a força bruta e o exército e vão matar, até eliminar. E não queremos isso.

Queremos mudanças profundas e que no caso brasileiro comece com a mudança imediata do governo. Impeachment do Bolsonaro. Vamos criar alternativas para que se possa ter eleições ou um processo de vivacidade popular.

Eu não tenho a menor dúvida que a hora que, imprevisível por enquanto, estivermos sem grande risco de contaminação como temos hoje, vamos ter centenas de milhares nas ruas. A população percebeu, inclusive muitos que votaram no Bolsonaro, que esse governo que disse: “É um problema da humanidade viver. Todos morrem mesmo“. 

Queria ver se morresse alguém da família dele e ele próprio, se ele teria esse pensamento.

Esses são os desafios que nós temos. E o futuro será mais generoso para humanidade se conseguirmos conscientizar. Está havendo um processo de auto-organização e autoconsciência da população, que sabe que na favela o Estado só entra para reprimir.

E quando vai reprimir o narcotráfico mata crianças e pessoas absolutamente inocentes como tantos que vêm morrendo nas favelas em São Paulo e no Rio. A população sabe. A auto-organização é também a auto-consciência. É o embrião de uma sociedade diferente da nossa. 

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