O autor de ‘O capital no século XXI’ discute os efeitos da pandemia nas economias, nas sociedades e na globalização
As mais pessimistas estimativas acerca do eventual número de mortes dessa pandemia – excluindo qualquer intervenção – são de cerca de 40 milhões de pessoas em todo o mundo. Isso corresponde, em termos proporcionais, a mais ou menos um terço do número de mortes da gripe espanhola de 1918. O que falta nos modelos, porém, é a desigualdade: o fato de que nem todos os grupos sociais – nem os países ricos e pobres, o que é mais importante – são atingidos da mesma forma.
Isso foi revelado pela gripe espanhola, quando 0,5% a 1% da população pereceu nos Estados Unidos e na Europa, em comparação com 6% na Índia. O que é chocante nessa pandemia são os altíssimos níveis de desigualdade que ela está revelando. Também estamos sendo confrontados com a violência dessa desigualdade, já que o lockdown em um apartamento grande não é a mesma coisa que um lockdown se você é um sem-teto.
É verdade que os níveis de desigualdade hoje são muito inferiores aos de um século atrás. A história que conto em meus livros é uma história de aprendizado, de progresso no longo prazo. Esse progresso aconteceu por conta dos movimentos políticos e intelectuais que se propuseram a construir sistemas de seguridade social e de taxação progressiva, e a transformar nosso sistema de propriedade.
A propriedade era algo sagrado no século XIX, mas foi gradualmente dessacralizada. Hoje, temos um equilíbrio muito melhor dos direitos dos proprietários, dos trabalhadores, dos consumidores e do governo local. Isso representa uma completa transformação em nossa concepção de propriedade, e foi acompanhado de um crescente acesso a saúde e à educação.
Em meu novo livro, Capital e ideologia (Seuil), argumento que as duas guerras mundiais foram em grande parte o resultado da extrema desigualdade existente nas sociedades europeias antes da Primeira Guerra – tanto no interior dessas sociedades quanto internacionalmente, devido ao seu acúmulo de bens coloniais. Essa desigualdade não era sustentável e levou essas sociedades a entrarem em erupção, mas elas o fizeram de modos distintos – a Primeira Guerra, as revoluções russas, a pandemia de 1918. A pandemia assolou os setores mais pobres da sociedade, com seu parco acesso a cuidados de saúde, e foi exacerbada pela guerra. O resultado destes abalos cumulativos foi uma redução da desigualdade no meio século seguinte.
Há muito tempo existe uma teoria de que o fim da servidão foi mais ou menos uma consequência da Peste Negra. A ideia era que, com até 50% da população dizimada em algumas regiões, o trabalho se tornou escasso e os trabalhadores conseguiram, portanto, assegurar melhores direitos e status para si mesmos, mas as coisas acabaram sendo mais complicadas do que isso. Em alguns lugares, a Peste Negra, na verdade, reforçou a servidão. Justamente porque o trabalho era escasso, tornou-se mais valioso para os proprietários de terras, que estavam, portanto, mais motivados a coagi-lo.
O ponto principal, que também é relevante hoje, é que abalos poderosos como guerras, pandemias ou colapsos financeiros têm um impacto na sociedade, mas a natureza desse impacto depende das concepções que as pessoas sustentam acerca da história, da sociedade, do equilíbrio de poder – em uma palavra, da ideologia –, o que varia de um lugar para outro. Uma grande mobilização social e política sempre se faz necessária para conduzir as sociedades na direção da igualdade.
A União Europeia começou a se fragmentar com o Brexit. Dizer que os pobres são nacionalistas explica muito pouco o Brexit. O problema é que, se você tem livre comércio e uma moeda única sem objetivos sociais, você acaba em uma situação em que a livre mobilidade de capital beneficia os cidadãos mais ricos e versáteis, e exclui as classes médias e baixas. Se você deseja manter a livre circulação, é preciso que ela venha acompanhada de tributação e políticas sociais comuns, o que poderia incluir investimentos conjuntos em saúde e educação.
Aqui também, a história é instrutiva. Construir um Estado de Bem-Estar dentro de um Estado-Nação já era um enorme desafio. Exigia que ricos e pobres chegassem a um acordo e decorria de uma enorme luta política. Fazê-lo no âmbito transnacional é possível, creio, mas provavelmente isso terá que ser feito em um pequeno número de países primeiro. Outros podem aderir mais tarde, se comprarem a ideia. Eu espero que isso possa ser feito sem desmantelar a atual União Europeia e que a Grã-Bretanha possa voltar futuramente.
A globalização será menor em algumas áreas estratégicas, como a de suprimentos médicos, apenas porque precisamos estar mais bem preparados para a próxima pandemia. Há muito trabalho a ser feito para que isso aconteça de forma generalizada. No momento, nossa decisão ideológica é ter zero de tarifas no comércio internacional, pois o medo é que se começarmos a aumentar as tarifas não se sabe aonde isso irá parar.
Isso é semelhante à discussão do século XIX sobre a redistribuição da propriedade. As pessoas preferiram defender desigualdades extremas na posse de propriedades – até mesmo a propriedade de escravos – em vez de aceitar alguma redistribuição, porque temiam que, uma vez desencadeada, acabasse na expropriação de toda e qualquer propriedade. Trata-se do argumento do “caminho perigoso” – o argumento clássico dos conservadores ao longo da história.
Hoje, eu acho que temos que nos livrar dessa “mentalidade de tarifa zero”, nem que seja para pagar por ameaças globais como as mudanças climáticas e as pandemias, mas isso significa inventar uma nova narrativa sobre onde vamos parar com as tarifas. E mais uma vez, como a história nos mostra, nunca há apenas uma solução.
A correta reação a esta crise seria revitalizar o Estado social no Norte global e acelerar seu desenvolvimento no Sul global. Este novo Estado social exigiria um sistema tributário justo e criaria um registro financeiro internacional que lhe possibilitaria incorporar as maiores e mais ricas empresas nesse sistema. O atual regime de livre circulação de capitais, erigido nas décadas de 1980 e 1990 sob a influência dos países mais ricos – especialmente na Europa – incentiva a evasão fiscal por parte de milionários e multinacionais. Isso impede que os países pobres desenvolvam um sistema tributário justo, o que, por sua vez, mina sua capacidade de construir um Estado social.
As pandemias, porém, podem ter efeitos muito contraditórios na mobilização e no pensamento político. Eu creio que, no mínimo, ela reforçará a legitimidade do investimento público nos sistemas de saúde. Mas também ela poderia ter um tipo de impacto completamente diferente. Historicamente, por exemplo, as pandemias estimularam a xenofobia e fizeram com que as nações se fechassem. Na França, a política de extrema-direita Marine Le Pen está dizendo que não deveríamos voltar muito rapidamente para a livre circulação na União Europeia. Sobretudo se o número final de mortos for muito alto na Europa em comparação com outras regiões, há o risco de que a narrativa antieuropeia de Trump e Le Pen venha a ganhar força.
Quando se atinge um nível muito alto de dívida pública, como acontece com as nações europeias e os Estados Unidos, você precisa encontrar soluções pouco ortodoxas, uma vez que o pagamento é simplesmente muito lento e sufocante. A história nos oferece exemplos suficientes disso. No século XIX, quando a Grã-Bretanha teve que pagar suas dívidas do período napoleônico, ela essencialmente tributou as classes baixas e médias para pagar os detentores de títulos da classe alta. Isso funcionou porque, pelo menos no início do século XIX, apenas os ricos podiam votar.
Hoje, dificilmente funcionaria… Por outro lado, após a Segunda Guerra a Alemanha e o Japão encontraram uma solução diferente e – na minha opinião – melhor. Eles tributaram temporariamente os mais ricos. Isso funcionou muito bem, permitindo-lhes, a partir de meados dos anos 1950, começar a reconstrução sem nenhum endividamento público. A necessidade faz você ser criativo. Pode ser que, para salvar a zona do euro, por exemplo, o Banco Central Europeu precise assumir a responsabilidade por uma parcela maior da dívida dos Estados membros.
Thomas Piketty é professor na Paris School of Economics. Autor, entre outros livros, de A economia da desigualdade (Intrinseca)
*Publicado originalmente em ‘The Guardian’ | Tradução de André Campos Rocha publicada originalmente em ‘A Terra é Redonda‘