O desmonte da máquina pública em curso

Teoria e Debate EDIÇÃO 194 – 10/03/2020 – Antônio Augusto de Queiroz

A reforma administrativa de Bolsonaro destina-se a cortar gasto com pessoal e com a máquina pública, além de eliminar direitos e reduzir a presença dos mais pobres no orçamento

O governo Bolsonaro, que aparece perante a opinião pública com um presidente refratário à reforma administrativa, na prática tem agido para o desmonte da administração pública, tanto pela negação de recursos e desativação de áreas vitais, quanto pela via de proposições legislativas.

O modo simplista e contraditório com que o governo trata desse tema já antecipa o fracasso que a mudança representará. Não existe, por parte do governo, uma preocupação real em melhorar a eficiência (fazer mais com menos), a eficácia (atingir as metas) e a efetividade (fazer a coisa certa ou atingir objetivos relevantes) na perspectiva da formulação e implementação de políticas públicas em favor de populações e territórios vulneráveis e desassistidos, ou no combate às desigualdades regionais e de renda.

O que existe são narrativas difusas e contraditórias entre as autoridades que tomam as decisões políticas, o presidente da República e o ministro da Economia, e os formuladores das proposições legislativas, no caso os técnicos ou funcionários encarregados da formulação. Os primeiros expondo suas visões ideológicas, fiscais e comportamentais preconceituosas em relação ao serviço público, e o segundo buscando apresentar diagnósticos razoáveis para justificar a mudança.

Entre as duas visões, a que tem prevalecido é a primeira, que sintetiza as reais motivações do governo em relação à reforma da administração pública. A visão das autoridades está expressa nos discursos e nas proposições de iniciativa do presidente e do ministro da Economia, conforme segue.

Na dimensão ideológica, o governo enxerga os servidores como adversários, que estão “aparelhando” o Estado, capturados e fazendo uso político da máquina supostamente em favor das esquerdas e, por isso, devem ser vistos como inimigos do projeto do presidente, marcadamente de direita. Medidas pretensamente voltadas a reduzir o aparelhamento político-partidário são desmascaradas quando o governo demite servidores em órgãos e entidades importantes, como a Casa de Rui Barbosa, a Fundação Palmares e outras com o claro propósito de “ideologizar” com a nomeação de “conservadores” esses espaços.

Na dimensão fiscal, as alegações são as mesmas da reforma da Previdência, de que os gastos com servidores são elevados e que poderiam ser canalizados para melhorar serviços púbicos, especialmente nas áreas de educação, saúde e segurança, como se esses serviços pudessem ser prestados sem o concurso de servidores públicos. É uma falácia que, no âmbito federal, não resiste ao exame correto dos números, pois a despesa com pessoal e encargos do governo – nos três Poderes – está muito abaixo dos limites da Lei de Responsabilidade Fiscal, em relação à Receita Corrente Líquida.

Na dimensão comportamental, expressa no preconceito das autoridades, os servidores são vistos como “parasitas”, preguiçosos, ineficientes, que ganham muito, trabalham pouco. E o que produzem ou fazem seria comprado ou contratado no setor privado. Se há servidores desidiosos, caberia ao governo adotar as medidas já previstas em lei para o seu afastamento, mediante processos administrativos. Mas o discurso visa, sobretudo, legitimar o desmonte da máquina pública e sua privatização.

Os formuladores, por sua vez, utilizam teorias ou argumentos técnicos para justificar a reforma, passando a impressão de que se trata realmente de um diagnóstico preciso, para a solução do qual dispõem de alternativas adequadas.

O principal argumento para justificar as reformas é que a máquina pública entrou em colapso, especialmente em decorrência de: 1) suposto elevado custo; 2) suposta ineficiência; e 3) suposta incapacidade de garantir boa gestão de pessoas.

Esse colapso, decorrente da combinação de uma suposta baixa qualidade, gastos elevados e baixa produtividade – segundo a lógica desses tecnocratas – seria o responsável não apenas pela má qualidade dos serviços públicos e a suposta ineficiência da máquina pública, mas também pelo desequilíbrio das contas públicas.

Uma vez mais, se trata de um discurso catastrofista, que não resiste, no governo federal, ao confronto com os números. Nos estados, dada a crise econômica e o elevado peso da dívida pública, há alguns com sérios problemas, mas demitir gente, no atual quadro de crise, só irá agravá-los.

Para enfrentar esses problemas, ainda na visão desses formuladores, seriam necessárias mudanças na máquina pública para: 1) retomar ferramentas de gestão de pessoas; 2) resgatar o conceito de meritocracia; 3) valorizar ações públicas voltadas para resultados; e 4) deslocar o foco da máquina estatal para o cidadão.

Entretanto, contrariando a retórica e os argumentos de aperfeiçoamento da máquina pública, as propostas elaboradas por esses técnicos governamentais – especialmente as Propostas de Emenda à Constituição (PEC) 186, 188 e a Medida Provisória (MPV) 922 – vão no sentido do desmonte e não do fortalecimento da administração pública ou da melhoria do serviço público prestado ao cidadão. Essas proposições, elaboradas com fundamento na teoria do equilíbrio fiscal intergeracional, buscam impedir que os custos de benefícios em gozo por uma geração sejam transferidos para futuras gerações, rompendo o pacto entre gerações.

A PEC 186, sob o argumento de dificultar o aumento da dívida pública, propõe medidas emergenciais que na prática engessam o gasto público, ao determinar a suspensão de direitos e obrigações do Estado, em três hipóteses: se houver descumprimento do teto de gastos; se for extrapolado o limite da regra de ouro; e se forem ultrapassados os limites de gasto com pessoal, previsto na Lei de Responsabilidade Fiscal.

A PEC 188, além de restringir a autonomia do Poder Judiciário e propor a extinção de municípios, chega ao absurdo de condicionar o cumprimento do artigo 6º da Constituição (educação, saúde, alimentação, o trabalho, moradia, transporte, lazer, segurança, Previdência social, proteção à maternidade e à infância, assistência aos desamparados) ao “direito ao equilíbrio fiscal intergeracional”.

A MPV 922, por sua vez, editada para resolver uma situação emergencial – a fila de pedidos de aposentadoria do INSS e do Bolsa Família – promove, na prática, uma minirreforma administrativa, permitindo que o Poder Executivo, bem como outros poderes e órgãos, possam fazer uso dela para contratar pessoal sem concurso e sem estabilidade. Como os entes subnacionais costumam replicar a legislação federal, o efeito disso será uma leva sem precedentes de contratações temporárias, em todo o país.

Por todo o exposto, o objetivo da reforma administrativa do governo Bolsonaro não se limita ao funcionamento da máquina pública, pretende rever o papel Estado, tanto na sua dimensão econômica, quanto na dimensão de provedor de políticas públicas na área social. Portanto, destina-se a cortar gasto com pessoal e com a máquina pública, além de eliminar direitos e reduzir a presença dos mais pobres no orçamento. E, ao final, permitir que um quadro de pessoal, selecionado sem concurso e sem estabilidade, seja ainda mais alinhado e dócil ao governo de turno, “radicalmente conservador”.

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