Com saúde em colapso, governo do Amazonas usará contêineres frigoríficos para mortos do coronavírus

Sem leitos de UTI, respiradores e recursos humanos, o Governo do Amazonas está equipando as unidades hospitalares do Estado, lotadas com pacientes infectados pelo novo coronavírus, com contêineres frigoríficos para acondicionamento de corpos das vítimas da doença e do colapso do sistema de saúde.

Na quinta-feira, 16, um vídeo vazado por profissionais do plantão do hospital público da rede estadual João Lúcio, zona Leste de Manaus, viralizou nas redes sociais e assustou a população. Nele, pacientes e mortos dividem o mesmo espaço na unidade. A pessoa que filma circula entre os leitos que mostram corpos já empacotados em macas lado a lado com pacientes e funcionários que estavam no plantão. O vídeo mostra pelo menos dez corpos.

Na manhã de sexta-feira, o governador do Amazonas, Wilson Lima (PSC), em entrevista à Rádio Tiradentes, em Manaus, afirmou que todas as unidades hospitalares da cidade passarão a contar com contêineres frigoríficos para abrigar corpos de vítimas da covid-19. Lima declarou que o Governo opera no limite ao se referir às UTIs, que ainda dispõe de leitos clínicos e tenta criar novas vagas na rede para atender à demanda da pandemia.

O governador, no entanto, admitiu que em alguns dias não terá mais como atender às pessoas nem onde colocar cadáveres. Até bombeiros militares foram convocados para atuar em hospitais. 

O chefe do Executivo lembrou também que a orientação feita ao sistema de saúde é que priorizem os pacientes que apresentem quadros de “alta gravidade”. Ele afirmou que pleiteou do Ministério da Saúde 150 respiradores, mas recebeu indicação de que receberá somente 50. Além disso, garantiu que está tentando comprar outros 200 respiradores da China, dos EUA e de “uma empresa brasileira”, sem dar detalhes.

“Eu tenho ainda os respiradores que estão sendo montados. E, na medida em que eu tenho recursos humanos e outros acessórios para montar a UTI, a gente vai montando. Mas hoje a gente está no nosso limite. Nossos leitos estão todos ocupados, nossos leitos de UTI. Ainda tenho espaço em leitos clínicos.”

Wilson Lima deu o tom do malabarismo que o sistema de saúde tem feito. “Estamos atendendo, naturalmente, os pacientes com maior gravidade. Nossa orientação nas unidades é de que, se o paciente não é de alta gravidade, não é caso de internação clínica ou UTI, vá para casa. Nossa situação é muito difícil. Estamos trabalhando no limite. Todos os dias, quando tenho um paciente que agravou, a gente busca um leito daqui, um leito dali. Às vezes um leito desocupa porque um paciente foi desentubado ou outro motivo. Mas hoje a gente está no nosso limite”.

E continua: “Vai chegar o momento em que teremos convulsões e revolta. Em algum momento, nosso sistema de saúde não terá condição de atender todo mundo. Em algum momento, como já estamos vendo em unidades hospitalares, não vou mais ter onde colocar corpos.”

Subnotificação de óbitos por covid-19

Outro problema que Wilson Lima expôs, na entrevista, é a subnotificação de mortes por covid-19 no Amazonas. Ele disse que Manaus tinha uma média de 30 enterros por dia e, só nesta quinta-feira, 16, foram cem. A atualização diária do governo estadual sobre casos confirmados de óbitos pela doença não tem refletido este quadro de enterros. Na quinta-feira, para usar o mesmo exemplo do governador do Amazonas, a FVS (Fundação de Vigilância Sanitária) e a Susam (Secretaria de Estado de Saúde) informaram que o registro foi de 18 mortes pela covid-19 em 24 horas, totalizando 124 óbitos desde o início da pandemia.

Manaus
Um trabalhador do serviço funerário transporta um caixão no hospital Dr. João Lúcio Pereira Machado, em Manaus Foto: Bruno Kelly/REUTERS

“Teremos e já estamos tendo uma quantidade significativa de subnotificação. Ou seja, de pessoas que estão morrendo com covid-19, que a gente não consegue fazer a testagem, que a gente não consegue fazer a comprovação”, disse o governador. “Primeiro, que não temos teste para fazer em todo mundo. Segundo, que já tenho casos aqui no Amazonas de pessoas que estão falecendo em casa, que os parentes ligam para funerária, sem passar pela FVS, e esse corpo é levado direto para o enterro. Tínhamos média de 30 enterros por dia em Manaus, e ontem, por exemplo, tivemos mais de cem enterros na capital”.

O governador afirmou que pretende impor maior rigor ao isolamento social e ao funcionamento do comércio. Citou como exemplo de que a medida dá resultados no município de Parintins, a 360 quilômetros de Manaus, que registrou a primeira morte por covid-19 no Amazonas. A cidade adotou toque de recolher e, segundo ele, tem hoje registrado 11 casos confirmados.

“Estamos estudando a possibilidade de aumentar a restrição (circulação de pessoas) para que a gente possa diminuir a nossa tragédia (…) Esse é um negócio muito sério. A gente está diante de uma catástrofe e o que está por vir é muito assustador. Por isso, a necessidade de que as pessoas fiquem em casa. Não há outro caminho”, destacou.

Ele disse temer um efeito “devastador” da covid-19 quando a doença chegar aos bairros da periferia de Manaus. “Hoje, eu ainda não tenho o vírus com tanta intensidade nas áreas periféricas, mas vai ser devastador quando chegar nestas áreas, onde a gente tem um índice muito pequeno de atendimento da assistência básica de saúde, da rede de esgoto, de saneamento básico. Há muitas pessoas que não têm rotina de ir ao médico, que têm doenças crônicas e nem sabe”, reconheceu.

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Fila na Caixa Econômica Federal na manhã de quinta-feira (16) no bairro Jorge Teixeira, zona norte de Manaus Foto: SANDRO PEREIRA/FOTOARENA

As críticas do governador miram, como em discursos anteriores, a baixa adesão da população em Manaus às medidas de isolamento social e também atingem o setor comercial, como agências bancárias. É comum ver filas de pessoas aglomeradas sem respeitar as recomendações de distanciamento nestes locais. Lima também colocou em evidência esse problema em serviços públicos de competência do município, gerido pelo prefeito Arthur Virgílio Neto (PSDB), com quem, além de não ter se reunido para ações conjuntas durante a pandemia, tem trocado acusações políticas em discursos.

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Trabalhadores da área da saúde ajudam um paciente diagnosticado com a covid-19 no hospital municipal Gilberto Novaes em Manaus Foto: Bruno Kelly/REUTERS

Gestão da pandemia é criticada por médicos e questionada na justiça pelo Ministério Público

Wilson Lima não tratou da crítica que recebe dos profissionais da saúde em relação ao fechamento da entrada de atendimento de pacientes suspeitos pela covid-19 no hospital Delphina Aziz, unidade de referência no Estado para a doença. Em entrevista ao Estado, a vice-presidente do Sindicato dos Médicos do Amazonas (Simeam) e médica do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu), Patrícia Sicchar, declarou que medidas erradas na gestão da epidemia tornaram todas as unidades de saúde de Manaus focos de disseminação da covid-19 para pacientes com outras doenças e profissionais da saúde.

Antes desta ação, o Governo, há cerca de duas semanas, já havia equipado o Delphina Aziz com dois contêineres frigoríficos para acondicionar corpos. Quando pulverizou o atendimento dos pacientes infectados pelo novo coronavírus para outras unidades e fechou a entrada no Delphina, a mesma medida não foi adotada de forma antecipada nos outros hospitais.

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Movimentação no Cemitério Parque Manaus na manhã de quarta-feira (15). Várias covas abertas na quadra 73 para sepultar tanto as pessoas por morte naturais, como pessoas que morreram com suspeita de Covid-19 Foto: SANDRO PEREIRA/FOTOARENA

Outra crítica ao governo é a troca de secretário da saúde, em plena pandemia, e a nomeação da ex-secretária do município de Bertioga, no litoral paulista, para a função. Bertioga tem cerca de 70 mil habitantes e o Amazonas, cerca de 4 milhões de pessoas em municípios, além de comunidades indígenas e ribeirinhas com realidades completamente diferentes das que constam na experiência da biomédica Simone Papaiz, que está à frente da pasta há cerca de duas semanas.

O Governo do Amazonas também enfrenta nos últimos dias questionamentos judiciais do Ministério Público do Estado (MP-AM), do Ministério Público Federal e de uma ação popular apresentada por um advogado sobre a transparência com os dados relacionados à pandemia e ao contrato de unidades particulares para ampliação do leito antes de uso de hospitais como a Beneficente Portuguesa e o Hospital Universitário Getúlio Vargas (HUGV) da Universidade Federal do Amazonas. Na entrevista desta sexta-feira, 17, o governador afirmou que, neste momento, o Amazonas precisa de todos os leitos possíveis e que, mesmo contando com esta estrutura, já planeja um novo hospital de campanha no estacionamento do Delphina Aziz.

Covid-19 no Amazonas

Segundo os dados oficiais do governo, o Amazonas tem 1.719 casos confirmados do novo coronavírus e outros 534 casos suspeitos internados. Mais de 80% dos registros se concentram na capital. O Amazonas é o estado com maior taxa de incidência da doença no País. Segundo dados do Ministério da Saúde, o estado tem 303 casos para cada um milhão de habitantes. O índice é quase três vezes a média nacional de 111 casos confirmados para cada um milhão de habitantes.

Antes de se oficializar sua demissão do Ministério da Saúde, na quinta, 16, o ex-ministro Luiz Henrique Mandetta declarou que Manaus estava com muita dificuldade no combate da pandemia pela covid-19 e apontou “falta de gestão” do sistema de saúde no Amazonas. A declaração foi feita durante uma live com entidades representativas do setor público e privado da Saúde. “Manaus está tendo muita dificuldade. Falta de gestão, falta de organização do sistema. Trocaram o secretário de saúde na semana passada. Só nesse governo, foram quatro. Amazonas teve eleição fora de época. Ali vem vindo turbulência há muito tempo”, disse.

Estadão

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