Por Júlio Miragaya*
“Para que tanta histeria, trata-se apenas de uma gripezinha!” A inacreditável frase proferida em meados de março pelo despreparado e ilegítimo presidente Bolsonaro, eleito em função de uma escandalosa fraude eleitoral, chocou o país e o mundo. Na verdade, revela todo seu desprezo pela vida do povo, nada surpreendente para quem defende que a polícia deva ter total liberdade para matar nas favelas; que venera o coronel Brilhante Ustra, um notório torturador e que achou que a ditadura militar matou pouco, lamentando que não tivesse matado uns 30.000 brasileiros. Voltaremos a falar de Bolsonaro, falemos agora do coronavírus.
Tendo já infectado cerca de 2,5 milhões em todos os países do planeta, o vírus já matou mais de 170 mil pessoas, sendo mais de 100 mil na Europa e cerca de 42 mil em seu novo epicentro, os Estados Unidos. Só em abril o COVID-19 já matou quase 40 mil nos EUA, e estima-se que feche o mês com mais 1 milhão de infectados e 60 mil vítimas fatais, ou seja, em um mês terá matado mais norte-americanos que 15 anos da Guerra do Vietnã (1960/75) somada às duas Guerras do Golfo em 1990/91 e 2003/04. Ou ainda, terá matado o equivalente a 20 ataques do 11 de setembro (2001). No Brasil, as projeções apontam que até 30 de abril teremos de 60 a 70 mil infectados e cerca de 5 mil mortos, número quase três vezes superior ao que a gripe suína matou no Brasil em 15 meses entre 2009 e 2010. Definitivamente, não se trata de uma gripezinha!
O título cita as três mazelas que aprofundam os efeitos da presente crise. A primeira é o próprio sistema capitalista, que, em sua atual fase senil, leva a desigualdade social à extremos nunca vistos, aprofundando a exclusão social e a pobreza. Dessa forma, as precárias condições de vida da maioria da humanidade, expressa pelos elevados adensamentos populacionais; sobre ocupação das habitações; falta de água potável e esgoto sanitário; precário atendimento médico-hospitalar; trabalho informal e precário; transporte superlotado e baixa renda tornam essa massa absolutamente vulnerável à disseminação do vírus. O caso de Nova Iorque é exemplar, com a grande maioria das 15 mil mortes sendo de negros e migrantes hispânicos. Por sorte o vírus ainda não penetrou mais fortemente nas regiões mais pobres, como a África Subsaariana e a Ásia Meridional.
Uma questão pouco debatida é a absurda concentração da produção de diversos equipamentos, materiais e insumos médico-hospitalares em alguns poucos países, obedecendo à exclusiva lógica de mercado de menor custo/maior lucro, abdicando do interesse estratégico nacional. E o que se vê é a escassez desses produtos e uma corrida para ver quem consegue comprar primeiro da China e alguns poucos países os respiradores, equipamentos de proteção individual, testes para o vírus, etc.
A segunda mazela é o neoliberalismo. Países que adotam e implementam a cartilha neoliberal de redução dos gastos sociais, com a consequente desestruturação dos serviços públicos; desarticulação das políticas sociais; desmonte da proteção social, enfim, o “Estado Mínimo”, vivem uma situação dramática. São os casos dos EUA, Itália, Espanha, França, Reino Unido e, claro, do Brasil. Daí advém a falta de leitos de UTI, de pessoal médico, de material e equipamento médico-hospitalar, etc.
No Brasil, ao invés de se aumentar os recursos para a Saúde Pública, os neoliberais impuseram a Emenda Constitucional 95, que determinou a redução dos gastos públicos, particularmente na Saúde e na Educação, e que apresenta agora sua dramática conta: a) faltam leitos hospitalares e UTIs devidamente equipadas, com respiradores; b) faltam Equipamentos de Proteção Individual (EPIs), com centenas de médicos e enfermeiros sendo infectados e dezenas de mortes; c) faltam testes para confirmação de contágio (entre os 20 países com mais contágios, o Brasil é o que menos testes realizou, com percentual 30 vezes menor que a média dos demais países), levando a uma evidente sub contagem de infectados (estima-se que o país já possa ter mais de 200 mil infectados) e de mortos (podem ser entre 6 e 12 mil); d) acabaram com o Programa Mais Médicos, expulsando 11.000 médicos cubanos sob as mais absurdas acusações (sem formação adequada, incompetentes, terroristas) e agora faltam médicos. Em março o Ministério da Saúde lança Edital para preencher 5.800 vagas em 1.864 municípios e, ironicamente, faz uma chamada especial de médicos cubanos; e) acabaram com o Programa Farmácia Popular, limitando o acesso dos pobres à medicação gratuita, etc.
Por fim, a última das mazelas é uma “jabuticaba”: o desgoverno Bolsonaro. A sua aversão às recomendações de médicos e cientistas, da OMS e do próprio Ministério da Saúde beiram à insanidade, mas é mais grave que isto, pois em momentos de pandemia (como em momentos de guerra), torna-se crucial um comando único e a máxima coordenação, tudo que não tivemos aqui. Há duas diretrizes opostas, uma das autoridades da área de saúde e outra de Bolsonaro.
Um governo comprometido com a maioria do povo deveria adotar ações como: a) uma ampla e maciça campanha educativa; b) a instalação de um representativo gabinete de crise, dotado de poderes concretos, realizando o monitoramento e avaliação diários, evitando as informações desencontradas; c) o financiamento extraordinário do combate à pandemia, baseado em taxação das grandes fortunas e de lucros e dividendos auferidos pelos mais ricos; d) uma estratégia de combate ao vírus em áreas vulneráveis, como as favelas, assim como junto à imensa população de rua, estimada em mais de 150 mil no país.
Nada disso foi feito em nosso país. Pior, a reação do governo foi a de ignorar a pandemia, se associar ao empresariado mais retrógrado e penalizar os trabalhadores, aprovando a MP 936, que permite as grandes empresas reduzirem salários sem passar por negociações com os sindicatos; a tentativa de aprovar, de forma açodada, a nefasta “carteira de trabalho verde-amarela” e, mesmo a transferência de renda para os trabalhadores informais, para a qual o desgoverno Bolsonaro propôs pífios R$ 200,00/mensais (depois o Congresso Nacional aprovou o valor de R$ 600,00), fez “corpo mole” para sua liberação. Neste triste rol de ações pode ser mencionado os ataques da “famiglia” Bolsonaro à China, fazendo coro às agressões de Trump. Para um país que depende da China para realizar 70% de seu superávit comercial (crucial para evitar um colapso nas contas externas) e para seu suprimento de materiais e equipamentos médico-hospitalares, trata-se de um verdadeiro “tiro no pé”, um ataque aos interesses nacionais.
Tudo isso nos permite tirar uma definitiva lição: a inépcia do “deus mercado” para enfrentar a gravidade do problema e a importância do Estado nesses momentos. Não é mera coincidência o fato dos países melhor sucedidos no combate à pandemia serem os que têm algum grau de planificação econômica (China, Cuba) ou os que, mesmo sendo países de sistema capitalista, tem o Estado desempenhando um papel ativo, subordinando em bo medida os interesses imediatos do mercado (Cingapura, Coréia, Taiwan e Alemanha). Controle e/ou direcionamento de crédito subsidiado às pequenas e médias empresas atingidas; controle e/ou direcionamento da produção de equipamentos e materiais essenciais para o combate à doença; rápida liberação de recursos adicionais para garantir o atendimento adequado à população, são ações que só um Estado forte pode assumir. E claro, que no comando deste Estado estejam dirigentes políticos efetivamente identificados com os interesses da maioria da população.
Júlio Miragaya, economista, membro do Diretório Regional do PT/DF, doutor em desenvolvimento econômico sustentável e ex-presidente do Conselho Federal de Economia
Arte/Charge by Quinho