De baixo para cima

Por Selvino Heck *

Os tempos são de cólera, seja por causa da doença, o coronavírus, seja pelo ódio e intolerância reinantes. Os tempos são também de solidariedade. A pandemia está levando as pessoas e a sociedade a olharem para os lados, a (re)descobrirem a fome e o desemprego, especialmente nas periferias das grandes cidades.  Fome e desemprego muito agravados com a inépcia dos diferentes governos e o fim de quase todas as políticas públicas e sociais.

Os tempos estão trazendo de volta a velha e boa solidariedade e compaixão, fazendo na base popular o que os movimentos populares e as CEBs (Comunidades Eclesiais de Base), entre outros, sempre souberam e fizeram acontecer no seu trabalho com os mais pobres entre os pobres.

Por todos os lados, grupos de solidariedade, voluntárias e voluntários, jovens, professoras, professores, militantes, gente de todas as profissões organizam-se para entregar cestas básicas, ranchos aos que passam fome, aos que estão desempregados, visitando as famílias, fazendo seu cadastramento e colocando suas mãos e conhecimento a serviço de quem mais precisa. Muitas em necessidade, sempre em maior número. Redescobre-se, revisita-se a pobreza, a fome, a miséria nas periferias de Porto Alegre, nas vilas, na Lomba do Pinheiro, na Restinga, no Campo da Tuca, na Bom Jesus, no Humaitá-Navegantes, nas Ilhas, em Santa Maria, Caxias do Sul, Erexim e dezenas de outras cidades e comunidades de onde se têm notícia que a solidariedade está presente e viva no cotidiano.

Um novo tempo pode estar surgindo no meio da pandemia e da crise econômica e social, mesmo sabendo-se que tudo tende a piorar nos próximos meses. Há um retorno ao final dos anos 1990, início dos anos 2000, quando o governo Lula, diante da fome e da miséria reinantes, propôs o Fome Zero, acompanhado de um conjunto de políticas públicas, que se traduziram em conquistas de direitos e inclusão social.

Além de matar a fome, é preciso saciar a beleza, dizia Frei Betto, nos inícios do Fome Zero. É preciso organizar a população, dizer que ela tem direitos. Não só comida, mas também saída coletiva de sua situação, lutar para que o Estado e governos retomem políticas públicas em diálogo com a sociedade, com participação popular, e que se distribua a renda com igualdade e justiça.

O isolamento social deve dar-se em relação ao coronavírus. O isolamento, contudo, não diz respeito à solidariedade. Aí há calor humano, há respeito, há compromisso de vida. Ninguém solta a mão de ninguém, é a lição dessas-es abnegadas-os que dia e noite colocam-se à disposição de quem precisa e organizam mutirões e todo tipo de apoio e ajuda.

De baixo para cima, como sempre, as coisas acontecem na História.

Continuem a luta, disse o Papa Francisco aos movimentos populares no domingo de Páscoa. “Vocês são para mim, como lhes disse em nossos encontros, verdadeiros poetas sociais, que a partir das periferias esquecidas criam soluções dignas para os problemas mais urgentes dos excluídos. Quero que pensemos no projeto de desenvolvimento humano integral que almejamos, centrado no protagonismo dos Povos em toda sua diversidade e o acesso integral a esses três T que vocês defendem: terra, teto e trabalho. Espero que este momento de perigo nos tire do piloto automático, agite nossas consciências adormecidas e permita uma transformação humanista e ecológica que coloque fim à idolatria do dinheiro e coloque a dignidade e a vida no centro.” 

O mais importante neste momento é garantir pão, renda, trabalho. Todo o resto – planejamentos para 2020, eleições, etc. – é secundário, porque a fome tem pressa, sempre dizia Betinho. Nesta organização de baixo para cima, com formação política, desenha-se o futuro e a esperança, vão sendo criadas as condições do Fora Bolsonaro e do (re)fortalecimento do campo democrático-popular com reformas estruturais mais adiante. O poder popular se constrói na base, a partir das necessidades fundamentais do povo em cada momento histórico.

É preciso denunciar o Gabinete do Ódio ofertando solidariedade. É preciso denunciar os ricos e super-ricos, os bancos, a grande mídia, exigir a taxação das grandes fortunas, ao mesmo tempo que se espalha a solidariedade por todas as vilas e esquinas. ‘A reação já começou com a desobediência civil’, escreve Ignácio de Loyola Brandão.

Paulo Freire nunca esteve tão vivo, a exemplo dos anos 1960, quando propôs uma Campanha Nacional de Alfabetização e milhares de Círculos de Cultura. A Rede de Solidariedade de então, que chegava nos mais pobres entre os pobres, ensinando-os a ler e escrever, está mais uma vez acontecendo hoje, 2020, trazendo comida e esperança a quem passa fome. E dizendo logo em seguida, ou junto, que é preciso resistir, é preciso lutar, exigir direitos, garantir a democracia. É o que começa a acontecer em todos os recantos do país, como pude sentir e ouvir numa conversa por rede social do CEAAL (Conselho de Educação Popular) Brasil.

Nestes ‘tempos de cólera’, eis a tarefa mais urgente de movimentos sociais populares, igrejas e pastorais, ONGs, movimento sindical, Conselhos de todos os tipos, escolas e Universidades e de todas aquelas e todos aqueles de boa vontade que sonham com um outro mundo possível, urgente e necessário. Vai levar tempo e é preciso paciência histórica. Mas é a tarefa revolucionária de 2020.

Selvino Heck * Deputado estadual constituinte do Rio Grande do Sul (1987-1990); membro da Coordenação Nacional do Movimento Fé e Política; membro da direção do CAMP (Centro de Assessoria Multiprofissional); membro da Mesa Diretiva do CONSEA RS; membro da Coordenação do CEAAL Brasil (Conselho de Educação Popular da América Latina e Caribe).


Para o Brasil de Fato

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