Região de Santa Luzia, comunidade na Estrutural, abriga trabalhadores que dependem de doações após serem afastados da coleta de lixo por medidas de prevenção contra o coronavírus (Sars-CoV-2), que causa a doença Covid-19.
A pandemia do novo coronavírus (Sars-Cov-2) afastou os catadores de materiais recicláveis do trabalho no Distrito Federal. A coleta seletiva está suspensa desde 20 de março para evitar a exposição ao risco de contágio. Com três semanas sem renda, um grupo de trabalhadores que mora em Santa Luzia, na Estrutural, enfrenta o isolamento social, como recomendado por governos e autoridades de saúde, sem água, esgoto e dependendo de doações.
“Eu nem durmo direito nem almoço direito”, é como Márcia da Silva Pinheiro, de 32 anos, resume a rotina. Ela é responsável pela creche que cuida dos filhos de catadores. A instituição precisou suspender as atividades também por prevenção contra a Covid-19, doença causada pelo novo coronavírus. Para continuar ajudando as famílias, ela passou a arrecadar doações de cestas básicas e materiais de limpeza.
“Eu dava alimento, banho, carinho. Todos são voluntários. Nós vivemos de doações. Roupa, calçado, comida, tudo é doação. Mas tivemos que fechar”, diz Márcia. Segundo ela, desde que a coleta seletiva foi suspensa, a creche passou a ser procurada pelas famílias. Atualmente, ela atende 42 crianças.
“É tanta gente batendo na minha porta com pedido de alimento, fralda, leite… Tudo que envolve sustentar uma família. Até gás de cozinha eu tenho que correr atrás para poder ajudar as pessoas da comunidade”, disse.
Santa Luzia é uma região de construções irregulares na região do Distrito Federal conhecida como Estrutural. Ela existe há 20 anos, com maior expansão desde 2014, segundo o governo do DF. Vivem no local cerca de 4.000 famílias.
Custo para se alimentar
O gás, que antes era encontrado a R$ 65, agora chega a R$ 90 em algumas distribuidoras da região de Santa Luzia, segundo Márcia.
De acordo com o diretor do sindicato que representa as revendedoras de gás credenciadas no DF, Sérgio Vargas, o preço subiu devido ao “oportunismo de alguns vendedores clandestinos”.
“A ANP [Agência Nacional do Petróleo] já confirmou que teve um aumento de 23% do consumo devido ao isolamento das pessoas em casa. Há quem esteja se aproveitando dessa fragilidade”, disse Vargas.
Casa de Todos
Márcia conta que a creche é “praticamente uma segunda casa” para as crianças. Ela mesma fundou a Casa de Apoio Artes e Sonhos, há mais de 12 anos. A iniciativa começou quando ela ainda era catadora, função que cumpriu por 20 anos.
“Eu cedi a minha própria casa para cuidar das crianças”, conta Márcia. Aos poucos, a creche foi tomando forma, com área para lazer, merenda e dormitório (assista acima). Hoje, a Casa atende 20 famílias e presta apoio com doações a outros 43 catadores (saiba como ajudar abaixo).
Segundo Márcia, a creche sempre dependeu de doações e agora, mais ainda. “Tem muita gente com medo de sair de casa para doar, mas eu tenho feito campanhas. Demora um pouco, mas algumas pessoas estão ajudando”, conta.
O contato para doação à Casa de Apoio Artes e Sonhos é o telefone (61) 9 9939-5346.
Casa de Apoio Artes e Sonhos cuida de crianças de catadores em Santa Luzia, na Estrutural, no DF — Foto: Arquivo pessoal
Sem saneamento
Além de depender de doações para alimento e materiais de limpeza, a comunidade em Santa Luzia convive com outro obstáculo: a falta de saneamento básico.
“A gente usa água de poço, a gente abre a própria fossa”, conta Márcia.
Santa Luzia é uma região fora das estatísticas da Companhia de Planejamento do Distrito Federal (Codeplan), que analisa a situação da população da capital. O último levantamento da Pesquisa Distrital por Amostra de Domicílios (PDAD), em 2018, aponta apenas que o local contava com 3.793 domicílios, sem recorte sobre o acesso aos serviços básicos como água e esgoto.
A Companhia de Saneamento Ambiental do Distrito Federal (Caesb), responsável pelo tratamento de água na capital, informou ao G1 que há um reservatório na região de Santa Luzia, com capacidade de oferecer 40 mil litros por dia.
A quantia equivale a uma média de apenas 10,5 litros para cada casa, que precisa ser racionada pelas famílias para banho, limpeza, hidratação e cozinhar alimentos.
Segundo a Caesb, os próprios moradores denunciam casos de uso irregular da água por vizinhos. A companhia afirma que tem disponibilizado caminhões-pipa para complementar o abastecimento da população.
Sem coleta seletiva
O morador de Santa Luzia, Roque Moreira de Almeida Filho, de 38 anos, garante que a situação de falta de estrutura é a mesma há 12 anos, desde que começou a morar na comunidade. Ele se mudou para ficar mais perto do trabalho, quando o lixão ainda era na Estrutural.
Hoje, Roque lidera a associação de catadores Recicla Brasília, uma das cadastradas para triagem do lixo no novo aterro do DF, inaugurado em 2017 na região de Samambaia.
Atualmente, catadores recebem o lixo da coleta seletiva em galpões afastados dos aterros. De lá, fazem a venda a empresas. São cinco galpões ao total, segundo o Serviço de Limpeza Urbana (SLU), em três regiões do DF (saiba mais abaixo).
31 de março de 2020 – Comunidade Santa Luzia, no Distrito Federal — Foto: TV Globo/Reprodução
A Recicla Brasília, associação de Roque, reúne 43 catadores que trabalham no Setor de Indústria e Abastecimento (SIA). Todos eles contam com apoio da creche da Márcia, segundo ele. O governo do Distrito Federal anunciou um auxílio social aos catadores durante o período de pandemia, mas segundo Roque, “até agora nada”.
”Estamos pedindo apoio para o pessoal que ajuda a gente pela creche. É assim que estamos sobrevivendo até a data de hoje”.
O GDF afirmou ao G1 que prevê o início do pagamento do auxílio aos catadores “na próxima semana”. O valor será de R$ 408, distribuído para “cerca de 900 catadores de cooperativas do DF”, com “possibilidade de ampliar essa abrangência”.
Aterro Sanitário de Brasília, em Samambaia — Foto: Gabriel Jabur/Agência Brasília
Casa cheia
Roque mora com a esposa e cinco filhos — o mais velho tem 16 anos e o caçula quase dois anos. A casa tem cinco cômodos. Duas meninas dividem um quarto e dois meninos o outro. O bebê dorme com o casal. “Viver com criança é complicado, precisa de mais atenção”, afirmou.
Segundo Roque, a prevenção é feita “dentro do possível”. Higienização com álcool em gel e materiais de limpeza desinfetantes não é uma garantia diária, segundo ele.
“Quando a gente consegue arrumar através de doação ou tem dinheiro para comprar, a gente faz, quando não tem é sabão e água mesmo”, disse.
Coronavírus na periferia
Até o último domingo (12), a região da Estrutural não registrou nenhum caso de coronavírus nos boletins da Secretaria de Saúde. A região que concentra os principais registros é o Plano Piloto, que compõe o grupo de alta renda do DF.
Na última semana, o G1 questionou a Secretaria de Saúde sobre as medidas adotadas para prevenção contra o coronavírus nas regiões de baixa renda e com restrições no saneamento básico. Em resposta, a pasta informou que “medidas poderão ser adotadas de acordo com o acionamento de cada fase da pandemia”.
A Secretaria de Justiça e Cidadania informou na última quarta-feira (8) que prepara hospedagens em hotéis para idosos que moram em residências consideradas “inadequadas” para o isolamento social. As datas e regras, no entanto, não foram divulgadas até a última atualização desta reportagem.
Chácara Santa Luzia
- Santa Luzia é uma região de construções irregulares na Estrutural, que existe há 20 anos, com maior expansão desde 2014, segundo o governo do Distrito Federal;
- a Estrutural surgiu na década de 1960. Catadores instalaram moradias ao redor do primeiro aterro do DF, que ficou conhecido como “Lixão da Estrutural”. Apenas em 2004 a área foi regulamentada como uma Região Administrativa;
- em 2017, o “Lixão da Estrutural” foi fechado para lixo comum. Catadores foram direcionados a galpões para triagem da coleta seletiva. Atualmente são cinco, eles estão na Ceilândia Sul, Estrutural, Setor de Armazenagem e Abastecimento Norte (SAAN) e dois no Setor de Indústria e Abastecimento (SIA);
- o setor Santa Luzia tinha 3.793 domicílios, conforme o mais recente levantamento do GDF, em 2018. Vivem no local cerca de 16 mil pessoas.