Na Nota Técnica 233, sobre o avanço da Covid-19 e as medidas para a flexibilização do regime estatutário no setor público, o DIEESE aborda projeto para reduzir salário dos servidores durante a crise do coronavírus, além de outras proposituras que ameaçam as garantias do trabalho no funcionalismo. A entidade alerta: em vez de penalizar trabalhadores, governo deveria reduzir austeridade e as taxas de juros, realizar a reforma tributária e acelerar e ampliar renda básica.
Leia a Nota na íntegra:
O avanço da Covid-19 e as medidas para a flexibilização do regime estatutário no setor público O governo federal vem adotando um conjunto de medidas econômicas com o propósito de estimular a economia brasileira, que já vinha estagnada antes mesmo da chegada da Covid-19. A intenção é manter o nível de consumo e renda da população, em meio à crise sanitária que o país atravessa. Uma das propostas, de autoria do deputado Carlos Sampaio (PSDB-SP), é o projeto de lei (PL) 1144/2020 que trata da redução nos vencimentos dos servidores públicos federais. Tal projeto foi defendido, publicamente, pelo presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, e teria como principal tese o princípio da “equidade”. Segundo ele, todos deveriam “sacrificar” seus salários – tanto os trabalhadores privados como os servidores públicos – para pagar a conta da crise sanitária. O recurso economizado seria enviado ao Ministério da Saúde para combater a pandemia. Na verdade, a pretensão maior consistiria na articulação dos partidos para elaboração dessa proposta, que prevê a redução dos vencimentos durante o período da crise do coronavírus no país. O alcance desta medida seria extensivo aos três poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário) no âmbito federal, exceção feita aos servidores que atuam nas áreas da saúde e da segurança pública, ou ainda, aos que estão trabalhando diretamente no combate à pandemia. O projeto de lei, citado anteriormente, trata da redução escalonada, temporária e excepcional da remuneração dos servidores que recebem quantias mensais superiores a R$ 5 mil e que não exerçam atividades essenciais no combate à Covid-19. O texto menciona que a queda na remuneração ou subsídio teria duração de três meses, podendo ser prorrogada por mais três. O projeto prevê, inclusive, quais os critérios para redução das remunerações e os respectivos percentuais; apesar de não explicitar, de maneira clara, os critérios para os que percebam acima de R$ 10 mil, conforme abaixo: I – de 10%, para os agentes que percebam remuneração ou subsídio superior a R$ 5.000,00 (cinco mil reais) e inferior a R$ 10.000,00 (dez mil reais); II – o mínimo de 20% e o máximo de 50%, para os agentes que percebam remuneração ou subsídio superior a R$ 10.000,00 (dez mil reais), observando-se, na fixação concreta O avanço da Covid-19 e as medidas para a flexibilização do regime estatutário no setor público 3 do percentual, os arts.51, inciso VI; 52, inciso XIII; 76; 96, inciso II, alínea “b”; 128, § 1.º, todos da Constituição Federal, assim como os demais dispositivos constitucionais de regência. § 1.º Ficam excluídos da redução remuneratória prevista no caput os servidores públicos com atuação nas áreas de saúde e de segurança pública que estejam prestando serviço efetivo durante o estado de calamidade pública. § 2.º O disposto no caput tem validade inicial de 3 (três) meses, podendo ser prorrogado por até igual período, estando sua aplicação, de qualquer forma, limitada ao prazo de duração do estado de calamidade pública. § 3.º Os recursos públicos que deixarem de ser empregados no pagamento dos agentes públicos mencionados no caput, em decorrência da redução nele prevista, serão integralmente repassados ao Ministério da Saúde, para utilização em ações e serviços públicos de saúde relacionados ao combate à pandemia internacional ocasionada pela infecção humana pelo coronavírus SARS-CoV-2 (Covid-19). Flexibilização do regime estatutário no setor público No entanto, é válido reforçar que tramitam no Congresso Nacional algumas propostas para flexibilizar o regime estatutário do setor público, conforme o que já vinha ocorrendo com os trabalhadores do setor privado, desde 2017. Um exemplo é a busca para atenuar ou anular, sobretudo, o princípio da irredutibilidade de subsídios e vencimentos dos servidores públicos, que consta na CF/88; e, assim, viabilizar a redução da despesa com pessoal entre os servidores públicos federais e os demais entes da Federação. A fundamentação tem como pressuposto critérios da “lógica empresarial”: os recursos são escassos e o corte de despesas é a saída para diminuir o patamar da dívida pública. Nesse sentido, a demissão por insuficiência de desempenho do servidor público (PLS 116/17 e PLP 248/98), destacando que a estabilidade é obstáculo para a produtividade, ou mesmo, a regulamentação sobre o direito de greve no serviço público (PLS 375/18), com o intuito de dificultar a manifestação das categorias, são algumas medidas que ampliam a flexibilização do trabalho no setor público. Poderíamos ainda lembrar da aprovação, pelo Congresso do PL 3831/15, que estabelecia normas gerais para O avanço da Covid-19 e as medidas para a flexibilização do regime estatutário no setor público 4 a negociação coletiva para os municípios, estados e União, mas que foi vetada pelo governo Temer. A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) de nº 186/2019, conhecida como a PEC Emergencial, também vislumbra essa possibilidade. Ela congrega um conjunto de mecanismos de ajuste fiscal que objetiva buscar a sustentabilidade da dívida pública. Toda vez que as operações de crédito excederem às despesas de capital, seriam acionados automaticamente mecanismos de ajustes fiscais, entre eles, a redução de jornada de trabalho e da remuneração do servidor em até 25%. No Senado, já tramitam outras PECs, como é o caso da de nº 187/2019, conhecida como PEC dos fundos públicos, que busca transferir mais recursos para amortizar a dívida pública com o dinheiro dos fundos públicos infraconstitucionais e, ainda, a PEC nº 188/2019, do pacto federativo. O objetivo dessas medidas é a redução do patamar de despesa, tendo em vista o superávit primário. Esse pacote de PECs, conhecido como “Plano Mais Brasil”, consistiria, segundo vários analistas, em alternativas estratégicas preparatórias da “Reforma Administrativa”, que ainda não foi enviada ao Congresso Nacional, mas que pretende desenhar um “amplo” Plano de Carreira, Cargos e Vencimentos para os servidores, diminuindo o número de cargos e funções e também, reduzindo os vencimentos. Portanto, para além da Covid-19, as medidas de redução da remuneração dos servidores já estavam sendo pautadas como solução para “organizar” as finanças do Estado. Diante dessas medidas, a Confederação Nacional dos Servidores Públicos divulgou estudo recente sobre a proposta de confisco de até 25% dos vencimentos dos servidores ativos da União para honrar a Regra de Ouro1 , como meio de financiar a crise sanitária. Ao confiscar parte da remuneração dos servidores públicos federais para financiar as despesas públicas, a proposta vai de encontro ao princípio constitucional da não confiscatoriedade2 , que impede o Estado de tomar recursos (patrimônio e renda). 1 A Regra de Ouro é um mecanismo que proíbe o governo de fazer dívidas para pagar as despesas correntes, como as despesas com pessoal e encargos correntes, contas de luz, entre outras. 2 A Seção II da Constituição Federal de 1988, que trata das limitações do poder de tributar, estabelece no Art. 150 item IV que, sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, utilizar tributo com efeito de confisco. O avanço da Covid-19 e as medidas para a flexibilização do regime estatutário no setor público 5 Considerando que a medida avance, qual seria a participação dos sindicatos na negociação? Qual seria o acréscimo de recursos encaminhado para o Ministério da Saúde? O montante desses recursos parece ser mais um “gesto simbólico” do que um volume expressivo para combater a Covid-19. De acordo com o Portal da Transparência, o maior número de vínculos de servidores ativos está alocado no Ministério da Educação (34%) e no Ministério da Defesa (33%); se consideramos que o segundo atua na área de segurança pública, o maior número de servidores afetado pela redução de vencimentos estará entre os profissionais da educação. Evidentemente que os efeitos seriam imediatos sobre a economia do país, tendo em vista que, num primeiro momento, a suspensão ou redução de salários dos servidores atenua as despesas públicas. No entanto, contribui para reprimir a demanda de consumo das famílias, o que além de baixar o nível de arrecadação, pode criar o efeito “manada” para os estados e municípios, que, ao adotarem a mesma medida, contribuirão ainda mais para a redução da demanda. A participação das despesas de consumo das famílias no Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro é da ordem de 64%, o que mostra o peso do consumo na dinâmica da economia brasileira. Abandono da austeridade fiscal Daí a necessidade, sob o ponto de vista macroeconômico, de uma ação fiscal contracíclica mais incisiva, que coloque as regras de disciplina orçamentária “de lado”, dado o caráter excepcional desta conjuntura, como mecanismo compensatório à forte queda na demanda privada. Ou seja, antes de idealizar um projeto que intensifique a flexibilização do regime estatuário do servidor, como a proposta de redução dos vencimentos dos servidores públicos – medida que não foi adotada por nenhum país afetado pela Covid-19, o governo brasileiro poderia construir políticas públicas ativas compatíveis com o contexto e a realidade brasileira, e, ainda, adaptar iniciativas como as tomadas por outros governos3 (como maior repasse de recursos aos trabalhadores, criação de fundos, suspensão de impostos e garantias para o pagamento de salários), que estimulem a demanda e não o seu contrário. 3 Ver Nota Técnica nº 224 – Medidas adotadas por vários países para conter os efeitos econômicos da pandemia do coronavírus. DIEESE, 23 de março de 2020. O avanço da Covid-19 e as medidas para a flexibilização do regime estatutário no setor público 6 O ministro do Supremo Tribunal Federal, Alexandre de Moraes, acatou a solicitação da AGU (Advocacia-Geral da União) e permitiu colocar “de lado” as regras da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) e da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO). Essa medida permite que o governo aumente seus gastos para conter a pandemia e não prejudique a garantia, principalmente, do direito à saúde. Há iniciativas, por parte dos governos britânico e alemão, por exemplo, de pagar temporariamente parte dos salários dos trabalhadores do setor privado, o que contribui para reduzir a queda na receita das empresas, mecanismo mais eficaz para amenizar a redução do emprego no país. Nesta estratégia, a sustentação do crescimento, a longo prazo, deve ocorrer por meio de um programa de investimentos públicos em infraestrutura econômica e urbana, que tem fortes impactos para a economia. No caso brasileiro, no curto prazo, a intervenção do Estado poderia ser ampliada a partir da iniciativa do Congresso Nacional, que aprovou o Decreto Legislativo nº 6, de 2020, no qual reconhece, para os fins do art. 65 da Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000 (Lei de Responsabilidade Fiscal), a ocorrência do estado de calamidade pública, nos termos da solicitação do Presidente da República, encaminhada por meio da Mensagem nº 93, de 18 de março de 20204 . Sendo assim, é urgente abandonar a atual política de austeridade que, desde 2015, resultou em baixo crescimento econômico, colocando barreiras para o Estado brasileiro conduzir alternativas econômicas para enfrentar a atual crise. Essa política reduziu os recursos e o número de servidores. Entre 2014 e 2018, houve diminuição expressiva de 81 mil servidores no poder público federal, de acordo com os dados da Rais. Os recursos autorizados para a saúde, importantes nesse momento de pandemia, foram reduzidos em 5,7%, entre 2014 e 2020, um montante de R$ 10,9 bilhões5 . 4 O Congresso Nacional, a partir de tal iniciativa decretou: “Art. 1º Fica reconhecida, exclusivamente para os fins do art. 65 da Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000, notadamente para as dispensas do atingimento dos resultados fiscais previstos no art. 2º da Lei nº 13.898, de 11 de novembro de 2019, e da limitação de empenho de que trata o art. 9º da Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000, a ocorrência do estado de calamidade pública, com efeitos até 31 de dezembro de 2020, nos termos da solicitação do Presidente da República encaminhada por meio da Mensagem nº 93, de 18 de março de 2020.” (grifo nosso) 5 Dados disponíveis no SIAFI – Tesouro Nacional. O montante foi calculado conforme o IPCA, a preços de 01/2020. O avanço da Covid-19 e as medidas para a flexibilização do regime estatutário no setor público 7 O próprio Ministério da Economia ao decretar estado de calamidade pública, criou “espaço fiscal”, como a suspensão da meta superávit primário para este ano, para aumentar os recursos públicos sem necessidade de cortar salários. Ao colocar de lado o “mantra” da austeridade fiscal, as ações do governo no enfrentamento à crise econômica e sanitária podem indicar outros caminhos alternativos, práticos e eficientes, fundamentais no debate para encontrar soluções que atendam todos os brasileiros. É oportuno e necessário aprofundar o debate sobre as seguintes alternativas: 1. Revogação da Emenda Constitucional 95/2016 (Teto dos Gastos), que congelou os investimentos públicos por 20 anos, inclusive em saúde e educação, áreas essenciais para o tratamento da pandemia e para a descoberta novos medicamentos. Desde que foi aprovada, a emenda retirou bilhões de recursos do Sistema Único de Saúde (SUS). Também foram cortadas milhares de bolsas de pesquisa científica. Ao restringir o investimento público, a medida não promove o emprego e a renda, quadro este agravado pelo negativo cenário internacional. Nesta conjuntura, a ampliação de gastos pelo Estado é urgente e essencial. 2. Redução nas taxas de juros para as famílias e empresas: a queda na taxa de juros Selic, a despeito de melhorar o orçamento público quando reduz seus efeitos sobre a dívida pública, não atinge as taxas de juros na ponta, como por exemplo, aquelas cobradas no cartão de crédito rotativo (taxa média de juros de 322,63% a.a. para pessoa física e de 226,91% para pessoa jurídica, em fevereiro de 2020), no cheque especial (taxa média de juros de 130% a.a, para pessoa física, em fevereiro de 2020) e no crédito ao consumidor, entre outras. 3. Renda Básica para todos os cidadãos: os trabalhadores com menor renda possuem uma maior propensão a consumir, o que pode estimular o crescimento econômico no curto prazo. 4. Reforma tributária com a finalidade de melhorar a distribuição de renda: a taxação das grandes fortunas é uma possibilidade de ampliação de financiamento para as despesas com a saúde; no entanto, a progressividade torna-se fundamental para reduzir os impostos sobre a classe trabalhadora com O avanço da Covid-19 e as medidas para a flexibilização do regime estatutário no setor público 8 menor renda, o que possibilita a melhoria na distribuição de renda, ampliação do consumo e o fortalecimento da atividade econômica. 5. Utilização das reservas cambiais: em fevereiro de 2020, o país registrou cerca de US$ 362 bilhões (algo em torno de R$ 1,8 trilhão), em reservas internacionais, volume de poupança muito acima do recomendado pelo Fundo Monetário Internacional (FMI). Considerações finais Por fim, cabe reforçar que, neste momento de crise, precisamos mais do que nunca de um Estado forte, atuante na prestação do serviço público (saúde, educação, assistência social, tecnologia, entre outros) e isto se faz com investimento e não desinvestimento na carreira do serviço público. Neste cenário de pandemia, ninguém (trabalhadores do setor privado, governo, empresários e servidores públicos) deve deixar de dar sua contribuição para sairmos mais rápido e mais fortes desta crise. Entretanto, cada qual deve contribuir de acordo com suas possibilidades e meios; espera-se que o trabalhador do setor público, neste momento crítico para o país, coloque em movimento, com ainda mais qualidade e presteza, o servir ao público.
Referência bibliográficas Projeto de Lei 1144/2020. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1871099&fil ename=PL+1144/2020. Acesso em: 01/04/2020. Nota Técnica Nº 001/AUD-TCU/2020 – Propostas de confisco de até 25% da remuneração dos membros e servidores ativos da União para cobrir o descumprimento da Regra de Ouro e para custear a crise sanitária em razão do novo coronavírus.