Sair do isolamento agora é querer voltar a mundo que não existe mais, diz virologista

Interromper agora as medidas de isolamento contra o novo coronavírus é querer voltar a uma realidade que não existe mais, alerta é o biólogo e divulgador científico Atila Iamarino.

O mundo (e o Brasil) mudaram com a disseminação do novo coronavírus, e a preocupação de governos e empresas agora deveria ser a de se preparar para esta nova realidade, diz ele em entrevista à BBC News Brasil.

Nos últimos dias, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) e alguns empresários têm insistido na necessidade de restabelecer o funcionamento do comércio e de outros serviços.

Carreatas com essa bandeira foram organizadas em diversas cidades brasileiras. O argumento é de que os danos econômicos serão irreversíveis caso o país continue parado por muito tempo.

O consenso entre cientistas da área, no entanto, é de que é fundamental manter medidas de isolamento social por enquanto, diz Atila — inclusive para ganhar tempo a fim de trabalhar em alternativas.

“Manter as medidas que a gente tem agora é o que vai fazer dar tempo para buscarmos outras medidas lá na frente. Na verdade, parar agora é ganhar o tempo para fazer escolhas”, diz ele.PROPAGANDA

Doutor em microbiologia pela Universidade de São Paulo (USP), Atila concluiu dois pós-doutorados estudando a disseminação (ele prefere o termo “espalhamento”) dos vírus e a forma como esses organismos evoluem. Um desses pós-doutorados foi na própria USP, e o outro na Universidade Yale, nos Estados Unidos.

Em sua carreira, o pesquisador de 36 anos estudou vírus como ebola e HIV. A ideia desse tipo de pesquisa, explica ele, é analisar o material genético dos vírus para entender como eles se propagam entre os humanos.

Atila se tornou conhecido por sua participação no canal de YouTube do Nerdologia, um dos maiores do país. Nos últimos dias, tem feito transmissões ao vivo sobre o novo coronavírus.

Uma delas atingiu a marca de 5,2 milhões de visualizações em menos de uma semana e fez com que o nome do biólogo chegasse à lista de assuntos mais comentados pelos brasileiros no Twitter.

Atila conversou com a BBC News Brasil por telefone, na última quarta-feira (25/02). Confirma a seguir alguns dos principais trechos da entrevista.

BBC News Brasil – À luz do que já se sabe sobre a pandemia, o que você acha das últimas intervenções presidente da República, Jair Bolsonaro, dizendo que o país precisa “voltar à normalidade”?

Atila Iamarino – Eu acho que não importa (o discurso do presidente). Felizmente, isso vai contra o que todos os países estão fazendo. Quase que sem exceção. Todos os países sobre os quais estou informado estão tomando medidas na direção contrária, de fechar em diferentes graus, e até de deixar a população em casa, como a Índia acabou de fazer com mais de 1 bilhão de pessoas.

Então, em relação às políticas internacionais, não faz sentido (o discurso de Bolsonaro).

E, aqui dentro do país, não nos importa, porque os Estados e as cidades estão tomando medidas para fechar em diferentes graus. Todos os Estados adotaram medidas para restringir o comércio não essencial, e restringir a circulação das pessoas. Estão de acordo com a orientação internacional.

Portanto, em última análise, tanto faz o que o presidente falar, desde que as cidades e os Estados continuem agindo como estão agindo.

A esta altura, dado o pouco tempo que a gente tem, a gente precisa focar, na verdade, em atitudes. O país, os Estados e as cidades estão tomando atitudes que vão proteger as pessoas? Estão. Então, tá ótimo, tanto faz o que estão falando.

A gente tem três, quatro meses para agir, dado qualquer estudo sobre como é o espalhamento desse vírus.

Atila Iamarino
Para Atila, tanto faz o que o presidente fala, desde que as cidades e os Estados continuem agindo como estão

BBC News Brasil – A exemplo do presidente da República, outras pessoas se mostram preocupadas com o efeito econômico do isolamento. Nesta semana você disse ao podcast Xadrez Verbal que essa perspectiva é um tanto “inocente”. Por quê?

Iamarino – Existe uma preocupação séria com a economia, claro. E uma preocupação legítima seria a de como adequar a economia a essa nova realidade (imposta pelo vírus). O que a gente pode fazer para que os comércios consigam vender online e fazer entregas da melhor maneira possível; o que a gente pode fazer para que as pessoas consigam trabalhar à distância da melhor maneira possível.

Que medidas econômicas a gente pode tomar para que as pessoas continuem em casa e continuem com uma vida produtiva, e tenham condições de se manter, porque nem todo mundo pode continuar trabalhando de casa.

Existe um problema econômico, muitos países estão cientes e tomando medidas sérias para saná-lo.

Isso é diferente de ter uma preocupação econômica de não deixar a situação mudar. Isso pra mim é muito mais um luto do que uma preocupação séria. E não acho que seja uma decisão deliberada das pessoas fazer isso.

Mas quem ainda está pensando em não deixar a economia atual desandar, na verdade, está tentando resgatar um mundo que não existe mais. Que é o mundo de janeiro de 2020.

O mundo mudou, e aquele mundo (de antes do coronavírus) não existe mais. A nossa vida vai mudar muito daqui para a frente, e alguém que tenta manter o status quo de 2019 é alguém que ainda não aceitou essa nova realidade.

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