Moradores da comunidade do Sol Nascente esperam a chegada do coronavírus sem ter como se proteger
As horas ininterruptas de reportagens sobre o novo coronavírus passam pela tela do celular de Elciclea Baima Viana, moradora da comunidade do Sol Nascente, em Brasília. Informação não falta. Na televisão, ela também aprende sobre os cuidados necessários para se afastar da doença, as fragilidades dos idosos frente ao vírus e o hábito mais básico para sua autodefesa: lavar as mãos. Mas, para isso, é preciso ter água.
Moradora da segunda maior comunidade do Brasil, só atrás da Rocinha, no Rio de Janeiro, Elciclea vive a 1,2 mil quilômetros do mar. Ela não pode contar com o apoio de moradias improvisadas em navios atracados no litoral do Rio. Sua dificuldade em lidar com o avanço da covid-19 passa pela torneira seca, uma situação frequente para quem vive nesses locais que se espalha pelo Planalto Central, localizada a apenas 32 quilômetros do Palácio do Planalto ocupado pelo presidente Jair Bolsonaro.
Álcool gel virou item raro e caro, um luxo para quem não tem nem sequer o básico. “Aqui na minha casa e de todos que moram nesta região, a ligação da água é clandestina. Nós mesmos que fizemos, não tinha outro jeito. Estamos esperando há anos uma encanação, que não existe”, diz Elciclea.
A exposição de Elcicleia ao avanço do novo coronavírus reflete a situação de boa parte dos mais de 100 mil moradores do Sol Nascente, com suas ruas enlameadas, à espera de uma estrutura mínima de saneamento que já virou mito.
Com 39 anos, gari, desempregada, ela tem passado os dias em casa, cuidando do filho Walace Eduardo, de 7 anos, e da mãe, Eralda Baima Viana, de 57 anos, que está doente e enfrenta problemas de locomoção. Dona Eralda está frágil, mas não é boba. Sabe que é alvo do coronavírus.
Quando perguntada sobre a covid-19, ela bota aos mãos para o céu e parece falar para si mesmo. “Se Deus quiser, não chega aqui. Não chega.”
Dentro ou fora da comunidade, o fato é que a falta de abastecimento de água é problema crônico no Brasil, uma endemia que corrói a infraestrutura nacional de um país onde mais de 35 milhões de pessoas vivem sem água encanada pelas periferias.
Para alguns moradores, a contaminação que assola o mundo tem viés religioso, uma praga para castigar os mais abastados. Como os primeiros casos de coronavírus estão ligados a pessoas que viajaram a outros países, há quem acredite que a propagação local, a chamada “transmissão comunitária”, seja uma coisa de outro mundo.
Sem água em sua casa durante vários dias da semana, o cozinheiro José Antônio de Souza, 47 anos, diz que ele, sua mulher Crisdiane Silva Araújo, de 26 anos, e a filha Esther Araújo, de 2 anos, têm vivido normalmente e não temem o vírus. Porque são pobres. “Isso é doença de rico. Não pega na gente. Pode ver os casos. Quem está morrendo é rico. Aqui, no meio desse lixo todo, a gente não pega mais nada”, diz Souza, enquanto mostra o rio de esgoto que corta a frente de sua casa.
Com dificuldade, a comunidade se vira como pode. Guarda água em tanques e caixas. Quem pode tenta comprar seus potes de álcool em gel. E se recolhem dentro de casa. Dilza Aparecida, de 51 anos, dona de um mercadinho no Sol Nascente, comprou uma caixa com 50 máscaras, há duas semanas. Pagou R$ 16. Ontem, quando voltou na farmácia para buscar mais uma caixa, o preço tinha subido para R$ 38. Ela não comprou. E mesmo que quisesse pagar, não havia mais nenhuma à venda.
Grade
De máscara no rosto, ela mantém fechada a grade de seu mercadinho e fica sentada do lado de dentro. É mais uma forma que arranjou para manter o distanciamento das pessoas. “Chegam aqui e pedem o querem. Eu vou lá, busco e entrego. É melhor assim. Esses dias, eu tive uma gripe forte. Se Deus quiser, não foi nada. Já melhorei. Mas é melhor seguir com a máscara. Nessa semana, já cheguei até a dormir com ela”, diz.
Com a queda das vendas em seu comércio, Dilza tem pensado em fechar as portas por 30 dias e ficar completamente isolada com a filha e o marido dentro de casa. “E só sair quando tudo isso acabar.”
Fonte: Estadão