Bolsonaro assumiu desconhecer os principais assuntos de Estado
Em 2018, chamava a atenção nas pesquisas qualitativas que os eleitores de Bolsonaro reconheciam nele o atributo da “autenticidade”, mesmo quando sabiam que ele estava mentindo.
Quando, recentemente, Bolsonaro ofendeu uma jornalista por atribuir-lhe a disseminação de vídeo convocatório de ato contra STF e Congresso, defendeu-se, dizendo que o vídeo em questão era de 2015, sem se dar conta de que as imagens eram recentes. Desmascarado, assumiu o propósito, para em seguida, sob o pretexto do coronavírus, desaconselhar o ato, não sem antes estimulá-lo, subliminarmente, e afirmar sua legitimidade.
Na mesma semana, afirmou que teria vencido as eleições no primeiro turno, não fossem as fraudes praticadas, das quais apresentaria provas. Diante do insólito caso em que o fraudado vence, a nação aguardou ansiosa nova manifestação presidencial, que se desviou da fraude para o tema da confiança.
Essas mentiras autênticas são difíceis de desconstruir, pois sua justificação não está nos falsos enunciados em si, que certamente servem de cortina de fumaça, mas nos verdadeiros comandos subjacentes. O que de fato elas dizem é: “Ataquem a imprensa! Ataquem as instituições! Ataquem a oposição!”. E as matilhas virtuais reagem com seus reflexos condicionados.
Bolsonaro, por outro lado, mesmo durante a campanha, assumiu desconhecer os principais assuntos de Estado, outra prova da sua “autenticidade”. Suas opiniões restringem-se a questões simbólicas: radares, armas etc. Sem condições de arbitrar entre opiniões divergentes em temas importantes, o pequeno grande homem contornou a situação pela criação de superministérios e concentrou poder em uma única pessoa por área: assim, por exemplo, Moro e Guedes. Diante de qualquer questão incômoda, Bolsonaro sai-se sempre com um “pergunte ao fulano”, seja um ministro de Estado, seja um humorista fantasiado de presidente-bananeiro.
A pergunta que cabe fazer, entretanto, diante desse histórico deplorável e dos recentes acontecimentos críticos, é se estamos preparados para enfrentar uma crise que pode ter proporções consideráveis.
Dispomos do SUS, um ativo extraordinário no campo da saúde pública. Dispomos de reservas cambiais e petrolíferas, que blindam nossa economia contra ataques especulativos. Contudo, dispomos de um estadista que seja sóbrio e capaz de liderar o país, coordenar ações e organizar os esforços nacionais diante dos desafios que estão colocados —como foi o caso em outros momentos?
Claramente não. E se a crise for severa, isso nos fará muita falta.Fernando Haddad é professor universitário, ex-ministro da Educação (governos Lula e Dilma) e ex-prefeito de São Paulo.*Artigo publicado originalmente na Folha de S. Paulo