O que aprendi com as mulheres da Terra, nesse 8 de Março

Depois de três horas da caminhada sob o Sol, elas voltaram a pé para o Parque da Cidade encantadas com as árvores, as sementes, as flores

Negras, a maioria quase absoluta; de 20 a 70 anos, por aí, sotaques baianos, pernambucanos, goianos, paraenses, gaúchos, paulistas – uma Babel de brasis. Mulheres pobres, do campo e da periferia das grandes cidades na Marcha de 8 de Março.

Depois de três horas de caminhada, do Parque da Cidade à Torre de TV, as mulheres sem terra refizeram o percurso, a pé, e desta vez sozinhas, sem o espetáculo dos tambores nem a companhia dos fotógrafos e dos não muitos moradores de Brasília que seguiram o cortejo. Cortaram caminho por dentro do parque que Burle Marx desenhou para conter o domínio da arquitetura.

Passava pouco da uma da tarde, o Sol estava protegido pelas nuvens de chuva, a grama levemente molhada. As mulheres já não estavam mais enfileiradas nem entoavam palavras de ordem.

Então, deu-se a epifania do meu 8 de Março. Brasileiras sem terra de todo o país iam identificando, uma a uma, as árvores do Parque da Cidade. Paravam, colhiam sementes, folhas e frutos, quebravam galhos para fazer mudas e diziam umas às outras que pé de planta era aquele: copaíba, jacarandá, jatobá. Colhiam flores de espécies a elas desconhecidas e folhas pra fazer chá.

Aquele era o lugar delas, o Brasil de onde vieram, resumido no Parque da Cidade. Já não estavam mais na estranha, desconfortável e indiferente cidade de distâncias e poderes monumentais. Estavam no meio do mato, embora ali a natureza obedecesse às ordens do urbanismo moderno, com seu paisagismo planejado.

Uma delas comentou:
– Que tanto de terra vazia!

Ousei:
– Boa pra invadir, né?

E ouvi (bem feito):
– Invadir não, ocupar. Mas aqui não é um lugar estratégico.

Fiquei lambendo minha ignorância e me apropriando da coragem, da lucidez e da sabedoria daquelas mulheres andantes.

Uma delas parou para arrancar um galho de bambu daqueles que se tem usado muito nas casas chiques. Me disse que ia levar uma muda e me ensinou que cada nó do talo era a fonte de novo bambu.

As mulheres da terra têm uma verdade que nós, urbanas, perdemos. Nas mais de três horas sob o Sol impiedoso de Brasília, a cidade sem sombra, não ouvi nenhuma reclamação – nem de sede, nem de fome, nem de calor, nem de cansaço. Sempre enfileiradas, havia nelas uma resistência de raiz somada a uma alegria de quem sabe que cada novo dia é uma vitória.

A revolução será das mulheres, é o que se tem dito por aí e foi o que pressenti na marcha desse 8 de Março. As palavras de ordem feministas, políticas, latino-americanas, gritos saindo da boca de caboclas, sertanejas, mulheres dos pampas e da floresta, do cerrado e da caatinga, me resgataram da paralisia urbana e da dimensão fictícia das redes sociais.

Havia um Brasil real ali e, dos brasis, um dos mais admiráveis, dos mais sofridos e resistentes, posto que não desistiram da terra. Sabem que a cidade grande só oferece miséria e humilhação. Que é preciso estar onde se tem a proteção uns dos outros, umas das outras, e no lugar que lhes pertence – porque dele vieram e dele sabem tirar a sobrevivência e é dele que brota a vontade de viver, um dia após o outro, uma luta após a outra.

Conceição Freitas é Jornalista
Fonte: Metrópoles

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