Por Marília Lomanto Veloso*
“Direitos Humanos não são um dado, mas um construído, uma invenção humana, em constante processo de construção e reconstrução. Refletem um construído axiológico, a partir de um espaço simbólico de luta e ação social” Hannah Arendt
Conta a história que a Anistia Internacional foi criada em 1961, por Peter Benenson, um advogado britânico irresignado com a prisão de estudantes portugueses que exibiam um cartaz com a palavra Liberdade. Reconhecida pela atuação na luta por direitos humanos e pelo respeito às declarações protetivas de direitos de todas as pessoas, a Anistia acumula uma das mais longas histórias nas organizações internacionais, atua em mais de 150 países e agrega mais de 2,2 milhões de membros e ativistas.
O Brasil é “cliente” das publicações da organização não governamental (ONG) e presença constante em suas abordagens. Assim é que no relatório “O Estado dos Direitos Humanos no Mundo 2017/2018”, que sistematiza modificações realizadas por diversos países e os respectivos resultados relacionados a políticas de direitos humanos, o governo de Michel Temer (MDB) foi alvo de críticas da Anistia Internacional. Entre outros recuos relatados, estão a expansão do número de homicídios, com ênfase para o Nordeste, vitimizando, de modo especial, a população negra e jovem. De modo igual, o relatório destacou os aspectos negativos das intervenções militares nas favelas.
O governo Jair Bolsonaro (sem partido), resultado de um execrável processo de engodo eleitoral virtual, tem protagonizado episódios que enodoam a imagem do Brasil perante o mundo, que acompanha, perplexo, a destituição dos valores democráticos, o retrocesso das conquistas civilizatórias, a ruptura com os princípios e garantias cravados na Constituição Federal de 1988, a reinvenção das velhas táticas colonialistas e o ataque metódico e rasteiro aos direitos humanos.
“O Brasil tem um antigoverno mergulhado no descrédito do mundo”
O elenco de violações praticadas pelo (des)governo Jair Bolsonaro e seu cortejo, da mais elevada à mais ralé das gestões, mereceu crítica da Anistia, não só em razão dos discursos avessos aos direitos humanos, como ainda pelas políticas administrativas e legislativas que sustentam as falas. Nesse sentido, relatos da organização denunciaram a ausência de estratégias políticas na perspectiva de dar fim ao desmatamento e estabelecer políticas preventivas de incêndios na Amazônia. apontando o descumprimento das obrigações de garantir a vida aos povos indígenas, alertando para a promoção de medidas ampliativas de riscos para esse povo.
Ataques e ameaças a militantes de direitos humanos, sem resposta apta a inibir tais ações também compõem o repertorio de lesões do governo Bolsonaro aos direitos humanos. A expansão da violência policial nutrida pelas manifestações de aprovação das instituições de ambas as esferas também são objeto de denúncia da Anistia.
O governo Jair Bolsonaro, nesse contexto, vai tecendo uma rede de práticas abusivas, incivilizadas, aparvalhadas e desconectadas das regras de decência postural de quem comanda uma nação, espantando o mundo civilizado pela mediocridade das representações políticas, pela parvoíce e avareza protocolar da gestão, pela ausência de destreza diplomática no trato com as relações com o mundo, suas complexidades, com as conflitualidades e os avanços na compreensão da sociedade plural, diversa e virtualizada da contemporaneidade.
O slogan “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”, de inspiração em paraquedistas da ditadura militar, já prenunciava, desde o período eleitoral, o acoplamento do candidato a um projeto externo “neotudo” de dominação, com a “inhaca” do colonialismo, aprovado por parcela de uma sociedade punitivista/capitalista, por um eleitorado seduzido pelo discurso midiático agachado ao poder, que sequestrou a soberania popular, implantando um método virulento da tecnologia substituindo a vontade e a racionalidade das urnas.
O governo que o Brasil experimenta é o antigoverno, lídimo filhote de um golpe virtual sem precedentes e sem que forças institucionais responsáveis por garantirem a ordem democrática ousassem deter. Não cabem metáforas na interpretação do governo que ostenta a faixa presidencial. Dispensa eufemismo, camuflagem linguística ou perda de tempo para diagnosticar possibilidades mágicas de recondução do país aos rumos libertários, de respeito às instituições republicanas, de escancarada cumplicidade com as táticas que arrastaram o processo eleitoral para farsa e o caos politico onde está soterrado.
O governo Jair Bolsonaro está mergulhado no descrédito aos olhares do universo civilizado. Reproduz, na íntegra, o contexto de freak shows, o circo de aberrações que sacudia o público de 1849, até 1970, que exibia, sem qualquer limite ético ou respeito humano, pessoas e animais com anomalias genéticas. Ali o que se colocava à mostra eram realidades dolorosas, aqui, a exibição patológica é do desgoverno infectado por práticas de ruptura com os direitos humanos, enquanto essência da dignidade humana, é o desprezo com o legado de dignidade política e de horizontes claros para as gerações futuras.
Um governo com essa negação de valores e afirmação da truculência, da frivolidade e do despudor político não resiste à mais elementar categorização de uma tipologia criminológica. Sofre de frequente ruptura lacunar com a ética, a justiça e a garantia da continuidade do processo civilizatório. Os direitos humanos não se ajustam aos tanques desse repertorio grotesco, deserdado de estética discursiva mínima apta a dialogar com outro canal, que não seja o metálico do equipamento que esconde o vazio argumentativo do Chefe do governo que ostenta apenas hostilidade, descontrole verbal, incivilidade, rudeza e absoluta ausência de percepção do constrangimento que causa a cada manifestação que libera, salivando raivosidade e inapetência para liderar além de sua própria alcova.
É esse governo despido de senso crítico, que debocha das instituições, que injuria a honra de pessoas e de coletivos, que se empoleirou no poder por práticas explicitas de sucesso eleitoral por vias de rapinagem tecnológica, validada pelo sistema de justiça em genuflexão diante da cena.
Até quando a sociedade se manterá acovardada, silenciosa e entorpecida diante do sepultamento dos humanos direitos que constituem sua própria essência humana?
*Marilia Lomanto Veloso é advogada da Bahia, doutora em Direito, membro da ABJD e Presidente do Juspopuli Escritório de Direitos Humanos.
Fonte: Brasil de Fato