Casos mostram tolerância – e surgem novas denúncias de envolvimento – com cultura de favorecimentos e apropriações
A frase “acabou a mamata” tem servido como um misto de slogan, palavra de ordem e promessa para Jair Bolsonaro (PSL) e seus seguidores. Ao mesmo tempo – repetindo antecessores sem lastro partidário, como Fernando Collor –, o presidente afirma representar o rompimento do sistema político tradicional e o marco zero de uma nova era, a dita “nova política”.
Nos primeiros quatro meses de seu governo, porém, o receituário se contradiz com numerosas medidas e posturas do Executivo federal e de sua base no Congresso Nacional.
“Essa história da mamata, o combate à corrupção, tudo, acaba sendo uma bandeira de campanha, e que depois vai sendo esquecida”, diz o sociólogo José Antônio Moroni, membro do colegiado de gestão do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), em entrevista ao Brasil de Fato. Ele observa, por exemplo, que a proposta de acabar com cargos comissionados, um compromisso do candidato, tem se aplicado somente a posições menos importantes, atingindo sobretudo a classe trabalhadora, não a elite, e gerando uma baixíssima economia.
Além disso, seguindo na contra-mão da propagandeada “nova política”, o governo conta com “um ministro, que é o ministro do Turismo, com ‘mil’ denúncias recentes, de candidaturas laranjas, de desvio de recurso público, via fundo eleitoral, e ele continua ministro”, acrescenta Moroni.
A Polícia Federal (PF) em Minas Gerais investiga o caso que tem como pivô o ministro Marcelo Álvaro Antônio, ex-chefe do PSL no estado. Após operação deflagrada, o delegado responsável afirma ter indícios concretos de que o partido burlou a obrigação de repassar 30% do fundo partidário a candidaturas femininas, usando-as como “laranjas” para beneficiar candidatos homens ou terceiros.
A apuração começou após reportagem da Folha de S.Paulo e derrubou, antes mesmo de o governo completar dois meses, o ministro da Secretaria-Geral da Presidência da República, o comandante do PSL em 2018 Gustavo Bebianno. Há investigação em curso sobre esquema semelhante em Pernambuco, estado do atual presidente nacional da legenda, Luciano Bivar.
A deputada federal Alê Silva (PSL-MG) acusa Álvaro Antônio de tê-la ameaçado de morte. Ele nega a ameaça e o envolvimento no esquema investigado.
Toma lá, dá cá
Outro bordão repetido pelo comandante em chefe do país é “o fim do toma lá, dá cá”, ou seja, da exigência de benesses ou vantagens em troca de apoio. No fim de abril, porém, a Folha trouxe à tona a oferta de R$ 40 milhões em emendas parlamentares até 2022 a cada deputado ou deputada que votar a favor da reforma da Previdência no plenário da Câmara. O bônus acresceria em dois terços o valor anual que esses congressistas têm direito a manejar no Orçamento federal – que é de R$ 15,4 milhões (cada) – para obras e investimentos em infraestrutura, tradicionalmente empregados nos respectivos redutos eleitorais.
O acordo teria sido proposto pelo ministro-chefe da Casa Civil, Onyx Lorenzoni (DEM-RS), em reunião na casa do presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ). Bolsonaro contestou a existência do “dá cá”, afirmando que o valor corresponde à liberação de R$ 1 bilhão em emendas impositivas (que o governo não pode contingenciar ou remanejar) represadas.
O anteprojeto da reforma é radical com alguns segmentos superiores do funcionalismo – inclusive os parlamentares –, mas o mesmo rigor não é estendido ao alto oficialato, na proposta à parte que também reestrutura as carreiras nas Forças Armadas. Questionado sobre o tratamento diferenciado, o ministro da Economia, Paulo Guedes, jogou para os parlamentares a responsabilidade de mudar essas condições. “Vocês não têm que virar para um ministro e perguntar por que a gente não cortou a aposentadoria dos militares. Cortem vocês. Vocês têm medo de fazer isso?”, desafiou, em audiência pública.
Entre carrões turbo e “Bics” genéricas
Uma das providências do presidente assim que eleito foi pedir a renovação da frota de veículos à disposição de sua cúpula. O então mandatário (em fim de gestão) Michel Temer (MDB) lançou de bate-pronto edital para a compra de 30 carros, num total de até R$ 5,6 milhões. Dos 12 blindados, foram requeridos alguns no nível III, reforço à prova de AK-47 e que exige autorização especial do Exército. Na justificativa para o “redimensionamento” da proteção do presidente e do vice, o Gabinete de Segurança Institucional (GSI) mencionou o atentado sofrido por Bolsonaro durante a campanha eleitoral e alegou que ele continua a ter a integridade física ameaçada.
O GSI havia lançado pregão com esse fim em julho – antes das eleições –, com valor da licitação um pouco mais baixo (até R$ 5 milhões). Conforme o órgão respondeu à imprensa, aquela concorrência foi cancelada porque as empresas habilitadas não apresentaram os documentos exigidos. O arremate deu-se numa terceira tentativa, em que 30 Ford Fusion Titanium AWD 2.0 Ecoboost pretos foram comprados por R$ 5,8 milhões. O Supremo Tribunal Federal (STF) e o Superior Tribunal de Justiça (STJ) concretizaram aquisições parecidas, na casa dos R$ 3 milhões, nos últimos meses.
O jornal O Estado de S. Paulo descobriu que a Presidência da República aumentou em 16% os gastos com cartões corporativos, que somaram R$ 1,1 milhão, em janeiro e fevereiro. Ao se defender, Bolsonaro atribuiu a diferença a preparativos de sua posse, embora a reportagem houvesse adotado como base a média dos últimos quatro anos. A mesma reportagem identificou o gasto de R$ 500 de um servidor do Ministério da Defesa em churrascaria grã-fina.
Charges e memes exploraram o contraste com a escolha de caneta “tipo Bic” (na verdade, da marca Compactor) para assinatura dos termos de posse dos ministros – mais uma produção simbólica como promessa de simplicidade e austeridade. Durante a transição, o futuro ministro Lorenzoni defendera a extinção do recurso criado para agilizar providências administrativas pequenas e urgentes.
A nova velha política e a velha nova política
“Não existe ‘nova política’”, afirma ao Brasil de Fato o diretor executivo da Transparência Brasil, Manoel Galdino. “’Nova política’ é a velha política. Você [o candidato] está sempre tentando se manter como o diferente, como alguém que vai acrescentar coisas para a população, de acordo com o que esta quer”, argumenta.
Galdino destaca o fato de Bolsonaro ter passado 28 anos no Congresso Nacional. “Não era outsider [alguém de fora do sistema] coisa nenhuma, era do ‘baixo clero’ [conjunto dos parlamentares sem destaque] e se envolveu com coisas típicas do baixo clero – como funcionárias aparentemente fantasmas, pouca efetividade legislativa”, acrescenta.
Recentemente, a Agência Pública descobriu mais cinco ex-assessoras de Bolsonaro que nunca registraram entrada na Câmara dos Deputados. Uma denúncia que se soma a várias outras relacionando a família à contratação de funcionários-fantasma e possível apropriação de salários. O assessor especial da Presidência Tercio Arnaud Tomaz, por exemplo, editava a página do Facebook Bolsonaro Opressor 2.0 e trabalhou na pré-campanha do então presidenciável enquanto estava lotado no gabinete de seu filho vereador Carlos (PSL), na Câmara Municipal do Rio de Janeiro, segundo O Globo.
Em janeiro, o Banco Central (BC) abriu consulta pública para a proposta que flexibilizava a obrigação dos bancos de comunicar movimentações suspeitas ao Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf). A possibilidade de retirar os parentes e colaboradores de políticos de monitoramento causou polêmica. A discussão veio a público enquanto reverberavam as revelações sobre movimentações financeiras e suspeita de lavagem de dinheiro de Flávio Bolsonaro quando deputado estadual pelo PSL e seu então assessor Fabrício Queiroz, e que incluíram depósito na conta da hoje primeira-dama Michelle Bolsonaro.
O BC negou que o texto tivesse a intenção de desviar os olhos das pessoas próximas ao poder. Embora avalie que o governo está fortalecendo o Coaf, Galdino, da Transparência, pontua que os casuísmos aplicados aos episódios em torno do clã colocam em dúvida os motivos por trás da proposição. Ele lembra dos casos dos radares de velocidade e da multa do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama).
No primeiro, o capitão gabou-se de barrar 8 mil novos radares já licitados para rodovias federais e, um mês depois, jornais inventariaram a vasta pontuação nas carteiras de motorista do presidente e de seus familiares por descumprir as leis de trânsito – várias vezes, por excesso de velocidade.
No segundo, parecer da Advocacia-Geral da União (AGU) em dezembro – fim do governo Temer, já com o sucessor eleito – provocou a anulação de multa aplicada a Bolsonaro por pescar em lugar proibido quando era deputado.
Em abril, o novo governante assinou decreto que obriga os órgãos responsáveis a estimular a conciliação nos casos de infrações administrativas por danos ambientais e amplia os tipos de serviços aceitos para conversão das multas. Seu ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, está negociando transformar em “investimentos” os R$ 250 milhões que a Vale teria de pagar pelo vazamento em Brumadinho – que espalhou estimados 3 milhões de metros cúbicos de lama com rejeitos tóxicos e matou provavelmente 270 pessoas (das quais 37 ainda estão desaparecidas – leia mais). Parte do dinheiro seria usada em parques nacionais a conceder à iniciativa privada.
O que a gente vê é a reprodução de uma prática política centenária no Brasil, em que as elites econômicas, culturais e políticas se apropriam do que é do povo”, afirma Moroni, do Inesc. Ele chama a atenção também para as privatizações já realizadas, que contaram com lances iniciais muito abaixo dos estimados e posteriormente pagos pelo mercado.
“Essa é a coisa mais velha que existe no Brasil. O capitalista no Brasil adora o dinheiro público. Adora um Estado para bancar os seus negócios e bancar inclusive os seus prejuízos. E isso está se acentuando”, considera.
Filhos dignos de honrosa menção
Bolsonaro concedeu ao escritor Olavo de Carvalho – seu guru ideológico – e a dois dos próprios filhos, o agora senador Flávio e o deputado federal Eduardo, a condecoração da Ordem de Rio Branco, prevista para “distinguir serviços meritórios e virtudes cívicas, estimular a prática de ações e feitos dignos de honrosa menção”. No caso do patrono da guerra contra o “marxismo cultural”, a distinção foi no grau máximo, de Grã-Cruz.
O conjunto de homenageados incluiu governadores que têm replicado parcialmente sua receita: João Doria (SP), Romeu Zema (MG) e Wilson Witzel (RJ), além do presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), e do núcleo do Executivo federal – o vice-presidente Hamilton Mourão e os ministros Sergio Moro (Justiça) e Paulo Guedes.
Para Manoel Galdino, da Transparência, aqueles que tentam governar por rompantes e mudar as coisas “do dia para a noite” como Bolsonaro são pessoas não querem entender como funciona a máquina pública.
“A gente sabe que na nossa democracia os partidos importam, no Congresso as coisas são feitas em torno de líderes partidários”, argumenta o cientista político.
De acordo com sua análise, em todos os regimes democráticos, as legendas dão organização e estabilidade à vida política e previsibilidade ao Legislativo, além de permitir um acompanhamento mais próximo pela sociedade. “A democracia é organizar conflitos por meios institucionais. É um contrassenso você querer ser um outsider nela”, explica.
Em seu sexto mandato e hoje parlamentar mais velha do Congresso, a deputada federal Luiza Erundina (Psol-SP) também põe em questão o rótulo de “nova política”. “Isso é uma coisa que não corresponde à realidade. São os filhos, netos, sobrinhos, apaniguados dos caciques da política tradicional, na sua expressão mais perversa, de fechamento da possibilidade de exercício do poder pelos líderes populares”, disse, em entrevista à Folha de S. Paulo.
Erundina, de 84 anos, aponta uma carência de lideranças e a ligação das bancadas a interesses específicos, no lugar daqueles da República ou da sociedade. Diante de pergunta sobre o futuro dos partidos, prevê “essa substituição por novos quadros a serviço do que tem de pior na vida política brasileira, no fundamentalismo religioso, moral, a perda do caráter laico do Estado”.
Brasil de Fato
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