Por Eliane Moura*
O direito ao trabalho em uma sociedade capitalista equivale para seu povo ao direito de existir, embora para uma grande parte, como no caso brasileiro, isto signifique uma existência frágil, precária, no nível de manter-se vivo, sem expectativas, sem sonhos de futuro. Em outras palavras: viver a barbárie social. Nossa reflexão e alguns desafios sobre esse tema, nesse momento histórico do Brasil, é o espírito deste texto.
Em termos históricos, ainda carregamos um conjunto de heranças mal resolvidas da sociedade escravocrata, uma delas é a degradação social, econômica e moral do trabalho braçal. Quem ganha o pão de cada dia, com o suor físico de seu corpo é uma cidadã, um cidadão de segunda classe, seus direitos valem menos, são parciais, precisam ser judicializados para serem acessados. Vejamos a luta que é para conseguir uma vaga na creche pública, remédios, exames pelo Sistema Único de Saúde (SUS), licença-saúde por lesões ou adoecimento no e pelo trabalho. É uma luta constante de mendicância por reconhecimento de direitos, por um pouco mais de existência.
A longa noite da escravidão mal havia passado quando começamos a conhecer, desde 1930 até fins dos anos de 1980, uma ideia de promessa inaugurada por Getúlio Vargas de inclusão das grandes massas de trabalhadores pobres, em uma sociedade salarial. A ideia era crer em uma nação sob a ordem, o progresso, com paciência, abnegação de seu povo. Uma nação que um dia incluiria a grande massa de sua população na divisão do bolo, mas teríamos que esperar, quietos, sem anarquia, sem lutas, até o bolo crescer, para então repartir.
Com muitas lutas, mesmo que sob uma ditadura de ódio e violência, como uma panela de pressão que explodiu na década de 1980 ao ponto de forjar um pacto social na forma da nova Constituição Cidadã de 1988, estabelecendo os marcos de um novo tempo. Acordávamos entre todas as partes, depois de décadas de conflito social, que ergueríamos uma nação, enfrentando a pobreza, retomando o desenvolvimento econômico e cerrando fileiras com a democracia.
Porém, a luta entre as forças do capital e do trabalho entraram em um novo desequilíbrio na década de 1990, a balança pendeu para o lado do capital, dos patrões e uma onda liberal varreu para debaixo do tapete as promessas da nova Constituição. Abriu-se um tempo de viver na carne o fim da promessa de inclusão das grandes massas na sociedade salarial. A promessa de cidadania, por meio da garantia de direitos, do trabalho protegido, da carteira de trabalho assinada, derreteu no rio do desemprego e da fome.
Quando atingimos o fundo do poço já era século XXI, a quarta tentativa de um operário governar este país. E ele conseguiu movimentar o terreno das esperanças e disse que se cada brasileiro e brasileira passasse a se alimentar três vezes ao dia, ele estaria satisfeito e assim se fez. Porém, não houve alterações nas estruturas, nos alicerces da senzala e da casa grande. Ainda assim foi soprada a poeira sobre os direitos sociais inscritos na Constituição, e por 14 anos iniciamos um lento movimento de erguer a cabeça, de encher panelas, assar churrascos e bebemos cerveja. As crianças com novos cadernos, os jovens desafiados a encarar a escola superior e as mulheres com algumas políticas de incentivo e proteção. Vieram novos empregos, o gosto bom de assinar pela primeira vez a carteira de trabalho e no final do ano viver a surpresa de receber o 13º salário e tirar férias remuneradas.
A velha promessa de inclusão na sociedade salarial teve seus ares da graça até cerca de três anos atrás. Uma brisa de crescimento econômico levou a classe dominante a ferver de ódio, revirar as tripas ao assistir os pobres ingressando nas universidades, circulando em restaurantes, nos aeroportos. Cega de raiva, a classe dominante não mediu nenhuma consequência em tomar num golpe o governo de Dilma e retomar o leme da história a seu favor.
A velha promessa de inclusão das grandes massas se derreteu, como gelo sob o sol.
A casa grande odeia o trabalho protegido, com direitos. Ela quer pagar o mínimo pela compra da força de trabalho, ela quer escravos e escravas, nunca cidadãos e cidadãs.
Além dessa classe mesquinha, têm as transformações do capitalismo, tem a revolução tecnológica, as mudanças na divisão mundial do modo de produzir, fazendo de novo o Brasil retroceder a uma grande lavoura exportadora, aberta ao saque de suas riquezas naturais, seu petróleo, seus minérios, sua energia e o sangue de seu povo.
Para as massas, nesse contexto de golpe, resta uma espécie de seleção em três partes. Uma parte terá de trabalhar, de cabeça baixa, com zero direitos e na máxima precarização das condições de trabalho e sociais. Outra parte, a que se revoltar, por querer participar da sociedade de consumo a qualquer preço, será encarcerada. A terceira parte será descartada, ganhando uma cova rasa e temporária em um cemitério público.
Nesse dilema, profundo, imenso, de rumo civilizatório, nos encontramos. Como o Movimento de Trabalhadoras e Trabalhadores por Direitos se coloca nessa encruzilhada, já que sua base social é o grande contingente de mulheres e homens que o atual modelo capitalista liberal cospe para o nada, humilha com uma existência miserável, sem direito a passado, sem horizonte de futuro ?
Uma parte desta pergunta passa pelo desafio destas eleições que fecha portas e grades, mas abre uma janela histórica com o brilho de esperança no rostos de Haddad, Manuela e Lula. Esperança que não é do verbo esperar, mas de esperançar a ação no sentido de mudarmos os rumos desta colônia. Mudarmos os rumos desta grande, miserável e envenenada lavoura que a classe dominante nos empurra goela abaixo.
Uma janela desafiadora, para os rumos da diversidade da vida, para os rumos de um projeto de Brasil para o povo e construída o povo, um povo novo, ainda se fazendo como tal, que precisa descobrir com urgência a força da luta organizada, sentir o sabor do conhecimento de suas próprias desgraças, com a força do conhecimento, da organização e da luta. Para que, finalmente, possamos nos fazer povo brasileiro, com direito a uma Nação, de cabeça e olhos erguidos, capazes de lutar contra todos os fantasmas da casa grande. Para que possamos realizar uma luta tão forte que desmonte as estruturas das senzalas e erga o trabalho livre em um futuro forte em dignidade.
* Eliane Moura é da coordenação nacional do MTD.
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