Por: Zezé Weiss
Uma agricultora familiar, uma assentada da Reforma Agrária, uma mulher cuja história de vida se confunde com o destino da própria terra cerratense no Planalto Central do Brasil, disputa a vaga de vice-governadora do Distrito Federal pelo Partido dos Trabalhadores neste ano da graça de 2018.
Nascida há pouco mais de quatro décadas no Hospital de Base de Brasília, Cláudia Pereira Farinha, mulher negra, feminista, orgulhosa de sua negritude, filha de lavradores, irmã mais velha de cinco meninas, dentro de um grupo de 14 irmãos, criou-se na Fazenda Cafundó, próxima a Alexânia, no estado de Goiás.
Ali, desde cedo, a menina Cláudia viveu a dicotomia de boa parte das crianças do meio rural brasileiro: Pobreza, havia, mas fome nunca passou. Porém medo sentiu e não foi pouco nas várias vezes em que teve que embrenhar-se mato adentro por conta das violentas disputas pela terra numa região tomada pela grilagem.
Para Cláudia, a memória da vida boa dos banhos de rio, da colheita de frutas no pé, da magia das brincadeiras infantis, vem sempre entremeada com a lembrança traumática das cenas fortes dos conflitos frequentes, da casa derrubada pelo trator do latifúndio, das ameaças de morte à família toda. Pior: por insegurança e medo, o pai, João Farinha (já encantado), passou a beber, e a beber muito.
A mãe, ao contrário, tomou o rumo da luta e o destino da resistência. Carmelita Santos, líder nata, optou por organizar os trabalhadores da região e, com isso, passou a viver mais tempo longe da família, fora do seu próprio roçado. Em casa, o tempo fechou. Cláudia e as irmãs vivenciaram, então, por anos seguidos, os tristes dias da violência doméstica.
Um doce com as filhas, segundo a irmã de Cláudia, Cíntia, “o melhor dos pais, super presente, super carinhoso e super cuidadoso, um pai que brincava de casinha, que levava pra lavoura, que ensinava toda filha a fazer sua hortinha,” com a mulher, era outro, totalmente diferente.
João naquele tempo não conseguiu aceitar a vida de militante sindical da feminista Carmelita, e só muito depois compreendeu a importância da luta e contribuiu para mobilizar outros trabalhadores para ter acesso a direitos, sobretudo previdenciários.
De piora em piora, a família acabou mudando para a área rural da Ponte Alta, no Gama, quando Cláudia tinha cerca de oito anos de idade. Para a menina criada no isolamento do interior goiano, aquele foi o grande momento da descoberta da escola, da TV na casa da vizinha, da convivência com outras crianças, das viagens à cidade, de carroça, com o pai, para as compras do mês.
Mas essa foi também a época em que a vida dos Farinha descontrolou total. Houve um conflito na chácara que tinham comprado, o pai deixou de pagar um pedaço, a família foi despejada, “a gente estava na escola, o oficial de justiça chegou e levou a gente pra debaixo de uma árvore, meu pai juntou uns pedaços de plástico, montou uma espécie de barraca em volta do tronco da árvore, e a a gente se virou do jeito que deu.”
Entre Carmelita e João, as coisas também não melhoravam. “Era época da campanha do Lula, meu pai tomou ódio. O mundo desabando na nossa cabeça e minha mãe mobilizando gente pra campanha, sem desviar um minuto da luta. Demorou um pouco pra eu entender o imenso esforço dela para tentar melhorar não só a nossa, mas a vida de todos os trabalhadores que passavam pelos mesmos perrengues que nós.”
Os amigos se juntaram e ajudaram a família a comprar outra chácara, com uma casinha simples, de alvenaria. Carmelita começou, então, a preparar-se para o inevitável caminho do divórcio. O jeito que encontrou para se livrar da miséria e das brigas em casa foi abrir mão da convivência com as próprias filhas. Cláudia, com apenas doze anos, foi a primeira a ser entregue para a professora, Cátia Mattiolli, uma amiga da família que, de forma solidária e familiar, os ajudava o quanto podia.
“Saí de casa chorando, passei semanas chorando, quanto mais eu me lembrava de casa, mais eu chorava, as coisas ficaram muito difíceis. Eu pensava nas minhas irmãs, todas menores e desprotegidas. Foi como me arrancar a alma…
Mas hoje vejo que essa foi a melhor solução. Cátia não foi só como uma segunda mãe, mas uma grande mentora intelectual e motivadora de sonhos. Na casa dela, minha tarefa era só cuidar da Amanda, uma menina feliz que me inspirou como mãe. Diante disso, passei a ter uma vida organizada, com estrutura para estudar com mais conforto.”
Três anos depois, mais uma ruptura. Cátia teve que mudar para Vitória, no Espírito Santo. Cláudia, ainda adolescente, foi morar com outras famílias, estudando quando dava e trabalhando como empregada doméstica.
O casamento veio logo em seguida, rendeu Fernanda (22) e Marco Túlio (19), e durou sete anos. Acabou porque Cláudia, que herdou da mãe o espírito rebelde, resolveu ser militante, e Osvaldo (falecido anos mais tarde em decorrência de um câncer de garganta), não aceitou, caiu fora, foi viver “vida normal”.
Com duas crianças para criar, Cláudia se aproximou da mãe e passou a trabalhar como secretária de Carmelita, que havia se tornado a primeira presidenta do Sindicato dos Trabalhadores Rurais do Distrito Federal. No Sindicato, ela conheceu Divino, seu segundo marido, também dirigente sindical.
Foi nessa época que a já militante da Federação dos Trabalhadores do DF e Entorno, FETADFE, filiada à CONTAG, que teve Carmelita como pioneira e criadora, conheceu a também militante Carliene Oliveira, de quem se tornou amiga e parceira de luta para as duas décadas seguintes.
“A gente se encontrou em 1998, no ano em que foi fundada a Federação. Eu, com 16 pra 17 anos, era acampada da Reforma Agrária. A Cláudia começou como secretária, depois virou diretora. Nós duas passamos a trabalhar juntas nos processos formativos de fortalecimento das novas lideranças femininas e dali pra frente seguimos juntas nas mesmas lutas…
Sempre solidária, Cláudia foi fundamental na conquista do Assentamento Santarém, onde hoje vivemos em uma comunidade de 28 famílias de agricultores familiares,” conta a amiga Carliene, orgulhosa dos vinte anos de amizade.
Com Divino Gomes do Nascimento, embora nem tudo fosse perfeito porque a relação dos dois também era permeada por cenas de machismo, as coisas pareciam ter, enfim, tomado prumo: Os dois eram militantes, os dois eram da terra, os dois compartilhavam as mesmas lutas e os mesmos ideais.
Mas o casamento durou pouco, menos de um ano. Divino faleceu de um AVC fulminante, deixando Cláudia viúva com Amanda (17), uma bebê de apenas 40 dias de vida. Em vez de sucumbir, Cláudia mergulhou de vez na militância sindical.
Militante dedicada do Movimento Sindical dos Trabalhadores e das Trabalhadoras Rurais – MSTTR, com mais empenho desde o final dos anos 90, quando assumiu a secretaria da FETADFE, a aproximação com o PT veio de forma natural, seguindo os passos da mãe, desde a adolescência.
Sua filiação partidária, entretanto, deu-se no ano de 2006, em Brasília, no mês de agosto, durante a Marcha das Margaridas, em ação conjunta com a amiga Carliene, que também se filiou no mesmo dia, mês e ano.
O amigo Hudson Cunha, advogado sindical, emprestou os R$ 5 para a primeira contribuição da nova filiada. “Penso que posso tê-la inspirado para a militância partidária, mas, no sindicalismo, o exemplo foi sua mãe, Carmelita. Só contribuí num salto de qualidade da visão sindical para a partidária, e tenho muito orgulho disso,” diz Hudson.
No meio de sua atribulada vida de dirigente, mais mudanças: Cláudia conheceu Arthur, seu terceiro marido. “Não foi fácil. Além de toda dificuldade por conta das viagens que eu tinha que fazer, ainda tivemos que enfrentar o preconceito por conta da nossa diferença de idade. Com ele tive a minha caçula, Maria Eduarda (15)…
Desde então, Arthur vem sendo um parceiro, pai não só de Duda, mas também assumiu a responsabilidade com minhas filhas e meu filho.” E complementa: “Assim como Neide e Zé Carlos, minha sogra e meu sogro, Arthur vem sendo um incrível parceiro, com um papel determinante como meu companheiro de vida e de luta”.
Militando e trabalhando em Brasília, e ficando muito tempo longe dos filhos enquanto seguia viajando por vários estados como dirigente da FETADFE, a vida em Flores de Goiás tornou-se impraticável. Foi então que Cláudia tentou e conseguir no Instituto Nacional da Reforma Agrária, INCRA, uma permuta para o Assentamento Santarém, criado em 2015, durante o governo Agnelo Queiroz, em Brasília. Cláudia, Arthur e os quatro filhos vieram então para o Santarém, onde vivem hoje da agricultora familiar, plantando milho, mandioca, e vegetais diversos, conforme a época do ano.
De volta a Brasília, além da conquista pela terra, com o apoio do FIES, programa criado no governo Lula,Cláudia conseguiu, em meio há tantas dificuldades formar-se em Direito no ano de 2017, aos 42 anos de idade. Na Faculdade, sofreu preconceito, mas sua decisão de resistir compensou, e muito. Meus filhos, motivados pelo o desejo de acesso a educação, estão na faculdade. Para nós, da terra, o acesso à universidade foi coisa do PT.”
Mesmo sendo militante orgânica e de longa data do Partido dos Trabalhadores, a candidatura a vice-governadora em um partido que se adapta aos novos tempos da participação política igualitária entre mulheres e homens, Cláudia atribui à articulação da Secretaria de Mulheres do PT, que criou o projeto Elas por Elas para incentivar a participação de mais mulheres nos espaços de poder.
“De forma efetiva, comecei a participar de todo o processo de debate da construção das candidaturas femininas. Surgiu a discussão sobre a indicação de uma mulher para o Senado. O que não se concretizou em virtude do processo político, mas culminou com a indicação para o pleito como vice-governadora do DF, através de uma construção democrática, o meu nome surgiu do querer das mulheres.”
Para Andreza Xavier, Secretária de Mulheres do PT-DF, a candidatura de Cláudia representa uma grande conquista das mulheres petistas. “Ter uma mulher com a trajetória de Cláudia Farinha para ocupar esse posto é muito representativo para nós, pois significa que as mulheres de forma coletiva e organizada, tiveram vez e voz nesse processo eleitoral de 2018.”
Assim, é com a vermelha convicção da militante forjada na luta, com a coragem da menina que teve que morar debaixo de uma árvore, da estudante discriminada na faculdade por ser feminista, negra e pobre, da aguerrida dirigente que enfrentou o fogo nos barracos do Assentamento Santarém, que Cláudia Farinha faz história tornando-se a primeira militante do movimento sindical dos trabalhadores e das trabalhadoras rurais a tornar-se candidata a vice-governadora do DF, na chapa com o economista Júlio Miragaya, ele também militante histórico do Partido dos Trabalhadores.
Da revista Xapuri Sociambiental
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