Por Patrícia Valim*
“A faca entrou” é o nome do novo livro publicado no Brasil de Theodore Dalrymple, pseudônimo do médico psiquiatra britânico Anthony Daniels, com larga experiência clínica em países como Zimbábue e Tanzânia, além de atuar em presídios ingleses.
Tal experiência é mobilizada pelo autor para criticar no livro os “excessos do comunismo” e aquilo que ele chama de “vitimização fomentada pelo assistencialismo governamental”, transformando-o em referência de nomes como Olavo de Carvalho e Luiz Felipe Pondé, e livro de cabeceira de onze entre dez liberais.
Não à toa, Daniels esteve em São Paulo em abril desse ano a convite do Instituto Liberal, quando proferiu palestra para um auditório lotado com 600 pessoas, entre as quais eleitores de João Dória Jr., Geraldo Alckmin, Paulo Skaf e Jair Bolsonaro. No final do evento, alguns presentes gritaram as palavras de ordem: “Fora, Petralhas” e “Fora Lula, Fora PT”.
“Petralha” é o termo usado para designar criminalmente pejorativamente membros do Partido dos Trabalhadores e para criminalizar as políticas dos governos petistas durante o período de 2003 a 2013, no qual o Estado de Bem Estar Social se consolidou por meio de planos, projetos e políticas de integração nacional, reparação social e de transferência de renda com contrapartida, tirando 40 milhões de pessoas da miséria absoluta e diminuindo as históricas desigualdades brasileiras do chamado “Brasil profundo”.
Esse mesmo Estado durante os governos petistas, no entanto, também foi responsável pelo “capitalismo de conciliação”: a melhoria substancial de todas as classes sociais, incluindo a classe dominante nas figuras de banqueiros, empresários e os responsáveis pelos chamados “campeões” nacional. Isso explica o fato de que a maioria dos políticos que vociferam o termo “petralha” tenha sido base aliada dos governos petistas desde 2003, entre eles o Deputado Federal e presidenciável, Jair Bolsonaro.
Há duas semanas, durante um comício no Acre, o mesmo presidenciável simulou descarregar um fuzil ao tempo em que gritava que “vamos fuzilar a petralhada toda aqui do Acre”. Não foi a primeira manifestação de ódio contra os membros do Partido dos Trabalhadores de Jair Bolsonaro. Também não foi a primeira vez que a imprensa e a justiça brasileiras foram lenientes com a apologia à violência escancarada pela campa nha da extrema direita e mobilizada pela grande imprensa desde 2013.
Na semana que passou, por exemplo, o PT entrou com processo contra o Deputado Federal por injúria eleitoral, incitação ao crime e ameaça, mas a Procuradora Geral da República, Rachel Dodge, não só descartou o crime de injúria eleitoral por “tratar-se de ofender alguém na campanha” (o presidenciável estava fazendo comício!), como afirmou que “o termo petralhada não personifica ninguém”.
Quando o judiciário e parte da sociedade brasileira fazem de conta que está tudo bem ameaçar de morte publicamente a oposição política e que as instituições estão funcionando mesmo com a violência e o ódio de ocasião mobilizados pela campanha da extrema direita no Brasil, todos nós perdemos, e não é pouco, com a naturalização da barbárie.
A começar pelo próprio presidenciável Jair Bolsonaro que, infelizmente, na semana que passou, foi esfaqueado durante a campanha nas ruas de Juiz de Fora em um ato violento e inadmissível, amplamente repudiado e prontamente investigado. Como o agressor foi preso em flagrante, parte da imprensa descobriu que ele foi filiado ao PSOL e tratou de buscar os vínculos entre a violência do agressor e sua militância, criminalizando mais uma vez o exercício político da esquerda brasileira.
Marina da Silva, novamente presidenciável em 2018, não demorou a declarar que o atentado a Jair Bolsonaro foi um ataque à democracia e por meio de um feminismo de ocasião conclamou as mulheres a defendê-la, mas a ex-senadora nunca repudiou publicamente as declarações de Jair Bolsonaro elogiando os feitos findos do torturador Brilhante Ustra e desejando que a ex-presidenta Dilma Rousseff morresse de câncer durante o impeachment/golpe de 2016.
O presidenciável do PSL, por sua vez, após sair da zona de risco de morte, na primeira oportunidade deixou-se fotografar simulando fuzilar outrem, respondendo com a violência que lhe é usual, e recendo o colega pastor Silas Malafaia que rapidamente atribuiu a autoria do atento aos petistas mineiros.
Após o condenável atentado, grupos de extrema direita se manifestaram pelo país: usaram verde e amarelo, cantaram o hino nacional, rezaram pela saúde de Jair Bolsonaro, pediram “direitos humanos para humanos direitos” e ameaçaram de morte “petralhas” e opositores políticos que repetem “Eu sou Lula” cuja frase foi proibida pelo ministro Luís Felipe Salomão, do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), por considerá-la uma “afronta” à decisão do colegiado pela impugnação da candidatura de Lula.
No mesmo final de semana, no jornal Valor, o cientista político estadunidense Steven Levitsky, da Universidade de Harvard, afirmou que participou de um encontro fechado com 15 empresários brasileiros que juntos concentram boa parte do nosso PIB e todos eles declararam apoiar Jair Bolsonaro (PSL) contra Fernando Haddad (PT) no segundo turno.
No domingo, dia 9, o Comandante do Exército Brasileiro, general Villas Boas, afirmou em entrevista exclusiva ao jornal O Estado de São Paulo que o atentado a Jair Bolsonaro pode questionar a legitimidade do novo governo eleito no Brasil e que as forças armadas serão mobilizadas para a manutenção da “estabilidade democrática” no país em eventual deflagração de conflito em razão do resultado das eleições de 2018.
No início dessa segunda-feira, o sítio da InfoMoney publicou o resultado de uma nova pesquisa FSB/BTG após o atentado: Jair Bolsonaro sobe de 26% para 30% das intenções de voto, conquistando consolidada posição no segundo turno enquanto os demais candidatos a segunda vaga aparecem “tecnicamente empatados” nessa nova categoria heurística criada pelos institutos de pesquisa nessas eleições de 2018.
Seja como for, “a faca entrou” no corpo de um presidenciável e na essência de nosso Estado Democrático, e explicitou aquilo que não poderá ser negado daqui a algumas décadas por desconhecimento ou distração pelos apoiadores da política da violência e do ódio: as eleições de 2018 representam a disputa entre a civilização e a barbárie. Entre o Estado Democrático de Direito e o Estado de Exceção. Entre a Democracia e o Fascismo, enfim.
*Patrícia Valim é professora de história do Brasil colonial da Universidade Federal da Bahia, conselheira do Centro de Pesquisa e Documentação da Fundação Perseu Abramo. Mãe de Ana, Bento e Maria, e avó de Maria Antônia. email: patricia.valim@ufba.br
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