Por Ana Luísa Cellular Junqueira e Joelson Dias*
Histórico brasileiro não é outro senão o de violar, regular e sistematicamente, as normas de tratados internacionais de direitos humanos
Duas graves e perigosas conclusões resultam de todo o clamor de alguns provocado pela decisão, em caráter liminar, do Comitê de Diretos Humanos do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (PIDCP) da Organização das Nações Unidas (ONU) que garantiu ao ex-presidente Lula o exercício dos seus direitos políticos: a) existe no Brasil um grave desconhecimento geral sobre o direito internacional dos direitos humanos; b) parcela da sociedade brasileira, inclusive e lamentavelmente de sua própria comunidade jurídica, no delírio de sustentar uma soberania absoluta e intangível, vem desdenhando desde sempre da responsabilidade internacional do País.
Preferindo acreditar seja apenas um cenário de desinformação, resta-nos destacar alguns pontos centrais que embasam toda a ótica de proteção e promoção dos direitos humanos, para, então, enfatizar a força vinculante das recomendações dos órgãos globais de monitoramento dos tratados internacionais de direitos humanos.
Marcados pelas atrocidades nazistas e conscientes da impossibilidade de autossuficiência, após a Segunda Guerra Mundial, nasce a convicção de que a violação à dignidade humana não deve ser concebida como questão doméstica do Estado, e sim como tema de relevância universal, como legítima preocupação da comunidade internacional. Os Estados passam, então, a adicionar a sua estrutura político-soberana elementos de abertura e de cooperação mútua no plano internacional, substituindo o modelo tradicional de Estado Westphaliano[1] pelo Estado Constitucional Cooperativo[2], que deixa de reivindicar o caráter absoluto da soberania para exercê-la de forma compartilhada, adequada ao novo cenário de interdependência entre os países.
Dada a necessidade de ação mais eficaz para garantir a integridade física e moral do indivíduo, impulsiona-se, assim, a criação sistemático-normativa de proteção e promoção global e regional de direitos humanos[3], tornando possível a responsabilização do Estado (no domínio internacional) quando as instituições nacionais se mostram falhas ou omissas na tarefa de proteger a dignidade humana. A ambição passou a ser de garantir e implementar coletivamente as obrigações internacionais dos Países, que, por sua natureza, transcendem os interesses exclusivos dos Estados contratantes. O Direito Internacional passa, dessa forma, a ser mais próximo do Direito das Gentes (jus gentium), afastando-se, definitivamente, de um simples Direito entre Estados.
Sobre a relação entre as normas de direitos humanos dos sistemas global/regional, o Direito Internacional dos Direitos Humanos, com seus inúmeros instrumentos, não pretende substituir o sistema nacional. Ao revés, situa-se como Direito subsidiário e suplementar ao Direito nacional, no sentido de permitir que sejam superadas suas omissões e falhas.[4]
Diante do universo de instrumentos internacionais e nacionais de proteção dos direitos humanos, cabe ao indivíduo escolher o aparato mais favorável, tendo em vista que, eventualmente, direitos idênticos são tutelados por dois ou mais instrumentos internacionais ou pela própria constituição nacional. O propósito da coexistência de distintos instrumentos é, pois, ampliar e fortalecer a proteção e promoção dos direitos humanos. É o critério de primazia da norma mais favorável ou benéfica às pessoas protegidas.[5]
Para Cançado Trindade, a subjetividade internacional do indivíduo constitui, em última análise, a grande revolução jurídica operada pelo Direito Internacional dos Direitos Humanos ao longo da segunda metade do século XX e hoje consolidada de modo irreversível.[6]
Muito se tem discutido sobre a existência ou não de força vinculante das decisões dos órgãos internacionais que compõem o sistema global da ONU e regional da Organização dos Estados Americanos (OEA) de proteção e promoção dos direitos humanos. Alguns sustentam que haveria uma ingerência indevida em assuntos nacionais quando acatamos manifestação desses órgãos, ferindo o princípio da soberania nacional. Mas o que é o Comitê de Diretos Humanos do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos da ONU? Suas manifestações têm força cogente ou são soft laws?
Após o depósito do respectivo instrumento de ratificação ou adesão do pacto, tratado ou convenção internacional de direitos humanos, os Estados obrigam-se formalmente perante a comunidade internacional a adotarem medidas legislativas, administrativas e judiciais necessárias à realização dos direitos reconhecidos no referido documento jurídico e se comprometem a cumprir as recomendações dos órgãos que supervisionam a implementação de tais normas. O compromisso assumido perante a comunidade internacional já é suficiente para suscitar responsabilidade em caso de descumprimento, pouco importando para o órgão ou comitê que supervisiona a sua implementação e para os outros países signatários se (e de que forma) o país internalizou e recepcionou ou não as normas do tratado, preocupando-se apenas com sua execução.[7] É isso que preceitua o art. 26 da Convenção de Viena de 1969: “Todo tratado em vigor obriga as partes e deve ser cumprido por elas de boa fé”. O princípio pacta sunt servanda deve também e principalmente ser aplicado na ordem internacional. Se o Estado soberano ratificou o tratado internacional voluntariamente, tem de cumpri-lo! Qualquer movimento em sentido contrário poderá resultar em mora ou inadimplência do país signatário do tratado perante a comunidade internacional.
Nesse sentido, o Comentário Geral n° 31 do próprio Comitê de Direitos Humanos estabelece ser vinculante a aplicação do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (PIDCP), estabelecendo que “as obrigações estipuladas (…) têm força vinculante para os Estados Partes e, nestas condições, não têm um efeito horizontal direto como elemento do direito internacional. Não se pode considerar que o Pacto seja suplementar ao direito civil criminal ou civil.”[8]
É também importante ressaltar que, por força do disposto no art. 5°, § 2°, da Constituição, “os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”. Nos casos de tratados internacionais de direitos humanos, como é o caso do PIDCP, sua validade é supralegal, como inclusive já decidiu o Supremo Tribunal Federal.[9] Vale, por isso, o PIDCP, mais do que a lei das eleições, a lei das inelegibilidades ou a lei de execução penal. Assim, desrespeitar os tratados de direitos humanos e as recomendações emanadas dos órgãos que supervisionam a sua implementação é violar direito e garantia também assegurados pela Constituição.
Para a doutrina majoritária, não há mais dúvidas sobre o caráter cogente/vinculativo das manifestações e pronunciamentos de órgãos internacionais judiciais, como os proferidos por tribunais, tais como a Corte Internacional de Justiça e a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH). Nesse caso, do descumprimento das obrigações contraídas por força de um tratado, resultam inadimplência e responsabilidade internacional, podendo o Estado ser condenado a reparar o dano, obrigado a garantir que não se repita a inadimplência e a cessar qualquer violação de deveres inerentes. As sentenças da Corte IDH, por exemplo, são obrigatórias para os Estados que reconheceram sua competência em matéria contenciosa. Uma vez identificada a violação, exige-se de imediato a reparação do dano e, às vezes, impõe-se também o pagamento de justa indenização a quem de direito. Pela redação do art. 68, §§ 1º e 2º da Convenção Americana de Direitos Humanos, os Estados-membros comprometem-se a cumprir as decisões emanadas da Corte (sentenças internacionais), podendo ser executadas no respectivo País.
Vale ressaltar que, na grande maioria dos países da Europa ocidental, já há muito é aceito sem controvérsia o controle de convencionalidade (que se baseia no controle de compatibilidade das normas nacionais com os tratados internacionais ratificados e em vigor no país). No contra fluxo, aqui, ainda se levanta a bandeira retumbante da soberania impermeável, onde se admite que o Estado fulmine tudo o que não lhe agrade, incluindo as decisões de órgãos internacionais vigilantes do resguardo da dignidade humana, que protege o indivíduo justamente dos arbítrios do poder estatal soberano! É o que todos devem compreender: os sistemas globais da ONU e regionais em cada continente de proteção e promoção dos direitos humanos servem para assegurar a todos os indivíduos a qualidade de “sujeitos de direito internacional”, protegendo-os principalmente do poder do Estado aos quais estão vinculados. A controvérsia surge quanto ao poder vinculante das manifestações dos órgãos quase-judiciais, como, por exemplo, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) da OEA e o próprio Comitê de Direitos Humanos (CDH) do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (PIDCP) da ONU.
No sistema global de proteção dos direitos humanos, além dos direitos e garantias previstos nos tratados adotados pelas Nações Unidas, na tentativa de assegurar a sua efetivação, criou-se também sistemática internacional de monitoramento e controle — a chamada international accountability. Dessa forma, foram estabelecidos órgãos de supervisão que controlam a implementação dos tratados internacionais (como, por exemplo, o Comitê de Direitos Humanos da ONU para o cumprimento do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos) e mecanismos de monitoramento voltados à sua efetivação, como, por exemplo, as comunicações (direito de petição) provenientes de indivíduos que se considerem vítimas de violação de qualquer dos direitos enunciados no Pacto. Assim, o Comitê de Direitos Humanos é um órgão do PIDCP, responsável por velar pelo cumprimento das obrigações que os Estados Partes assumiram ao se vincularem voluntariamente ao tratado.
Na Comunicação n° 2.841/2016, apresentada em favor de Luiz Inácio Lula da Silva, o Comitê deferiu medida de natureza cautelar (ou interim measure), impondo ao Estado brasileiro a adoção de determinadas ações emergenciais destinadas a evitar o perecimento de direitos políticos do interessado, até que se chegue a uma solução final sobre a demanda.[10] A medida está prevista na Regra 92 do Regulamento do Comitê de Direitos Humanos do PIDCP: “O Comitê poderá, antes de encaminhar sua decisão sobre a comunicação ao Estado Parte interessado, informar esse Estado de sua opinião sobre a conveniência de adotar medidas provisórias para evitar danos irreparáveis à vítima da violação denunciada. Nesse caso, o Comitê informará ao Estado Parte interessado que esta sua manifestação sobre as medidas provisórias não implica qualquer decisão sobre o mérito da comunicação.”[11]
Em sua Observação Geral n° 33, o próprio Comitê advertiu: “Todo Estado parte que não adote medidas cautelares ou provisórias viola a obrigação de respeitar de boa fé o procedimento das comunicações individuais estabelecido no Protocolo Adicional ao PIDCP.” Ademais, no caso Piandiong e outros x Filipinas (2000), o próprio Comitê do PIDCP decidiu que o descumprimento de uma interim measure representava uma grave violação do direito internacional: “5.2. (…) um Estado Parte comete graves violações de suas obrigações previstas no Protocolo Facultativo se age para impedir ou frustrar o exame pelo Comitê de comunicação que alegue violação do Pacto, tornar discutível a análise do Comitê ou inúteis e fúteis a manifestação de sua opinião”.[12]
Se os comitês são estabelecidos exclusivamente para monitorar a implementação dos tratados internacionais de direitos humanos, seria um contrassenso não reconhecer a força vinculante de suas manifestações. Esses órgãos fazem parte do sistema global/regional de direitos humanos, que consagra harmonia jurisdicional na sua proteção e promoção.
Não é outro o problema senão a falta de seriedade em assumir um compromisso internacional em prol da dignidade humana. Não entendemos que o respeito perante a comunidade internacional (inclusive o que garante a credibilidade para os investimentos econômicos) advém da capacidade de nosso País demonstrar de maneira concreta sua boa-fé no cumprimento de seus compromissos. Internacionalmente, somos vistos como um país menor no quesito proteção e promoção de dignidade humana, decorrente, na maioria das vezes, de uma compreensão anacrônica da soberania nacional, capaz de não aplicar, por puro interesse ideológico, normas previstas nos tratados internacionais de direitos humanos que o Brasil, ao ratificá-los, se comprometeu a implementar.
Como bem assevera Bonavides, a noção de soberania passa por inequívoca crise existencial, ao passo que as fronteiras nacionais não se constituem como limites absolutos do Estado no que tange à proteção dos direitos humanos. Diante desta crise contemporânea do conceito de soberania, a noção de que as fronteiras seriam limites intransponíveis foi relegada a ideologias idiossincráticas, havendo premente necessidade de revisão deste conceito e do estabelecimento de uma efetiva ordem internacional em matéria de proteção e promoção dos direitos humanos, “vindo esta ordem ter um primado sobre a ordem nacional”.[13]
Na verdade, é triste, lamentável mesmo dizer, mas o histórico brasileiro no tema não é outro senão o de violar, regular e sistematicamente, as normas dos tratados internacionais de direitos humanos e o de simplesmente ignorar as decisões/recomendações de seus órgãos de supervisão. Ainda não consolidamos por aqui, nestes trópicos abaixo do Equador, uma verdadeira cultura de observância dos direitos humanos, das normas internacionais e da jurisprudência dos órgãos que supervisionam a implementação dos tratados. O Brasil tem como constitucional, por exemplo, a lei de anistia, que fez por inocentar torturadores e assassinos durante a ditadura, em desrespeito, porém, à decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA, no caso Gomes Lund e Outros x Brasil (Guerrilha do Araguaia).[14] É extensa nossa lista de situações em mora ou inadimplência para com a comunidade internacional. O Brasil já foi condenado outras seis[15] vezes pela Corte Interamericana desde que reconheceu a sua jurisdição obrigatória, mas não tem cumprido inteiramente as suas decisões.
No caso Damião Ximenes (pessoa com deficiência mental, que morreu espancada enquanto internada em hospital psiquiátrico), o Brasil não deu integral cumprimento à decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos, tendo se limitado, praticamente, ao cumprimento das sanções pecuniárias impostas em prol das vítimas do caso. Doze anos após a sentença, os responsáveis, condenados em ação cível a pagar R$ 150 mil de indenização aos familiares de Damião Ximenes, ainda não efetivaram o pagamento. Conforme o Tribunal de Justiça do Ceará (TJCE), o processo ainda está em fase de execução.
Em outro caso, o Brasil foi condenado pela Corte em razão do descumprimento da obrigação de investigar e punir o homicídio de Sétimo Garibaldi[16], ocorrido em 1998, durante o despejo de famílias de trabalhadores sem-terra em uma fazenda no Estado do Paraná. Três anos após a decisão, o órgão denunciou o seu descumprimento parcial, cobrando do País que acelerasse eficazmente o processo para identificar, julgar e, eventualmente, punir os autores da morte de Garibaldi. Depois de transitado em julgado o processo em 2016, e mantida a decisão do Tribunal de Justiça do Paraná que decidiu pelo trancamento da ação penal, o caso está hoje na fase de supervisão pela Corte Interamericana.
O que se observa é que o Brasil vem descumprindo seu próprio ordenamento jurídico e, não menos importante, também o sistema internacional de proteção de direitos humanos. Há uma legitimação praticamente institucional na falta de compliance em implementar no âmbito doméstico as decisões e recomendações que visem a harmonizar o ordenamento jurídico com a realidade de proteção aos direitos humanos existente (que é o controle de convencionalidade), a fim de promover a preservação da dignidade humana. Como ser um país civilizado, livre do descaso e pronto para enfrentar os desafios econômicos e políticos atuais, se parcela da sociedade e, inclusive, de sua própria comunidade jurídica, não levam a sério o cumprimento de decisões internacionais que tentam reestabelecer os requisitos mínimos para se garantir o exercício de direitos fundamentais consagrados nos tratados, pactos e convenções de direitos humanos? Precisamos reverter essa tendência histórica, de um país que não tem sido capaz de se submeter à ordem e aos preceitos de civilidade ocidental do mundo livre.
Notas
[1] O termo provém da chamada Paz de Westphalia (1648), que reconheceu explicitamente uma sociedade de Estados fundada no princípio da soberania absoluta territorial, não intervenção em assuntos internos dos demais e a independência dos Estados.
Fonte: PT no Senado
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