Em entrevista ao site Sul21, ex-ministro da Saúde fala sobre a volta de doenças já consideradas erradicadas, comenta a destruição do SUS promovida pelo golpe
Nos últimos meses, começaram a circular notícias de que doenças que eram consideradas erradicadas pela vacinação — como sarampo, pólio, difteria e tétano — voltaram a registrar um elevado número de casos no Brasil. Muitas dessas publicações atribuem ao menos parte da responsabilidade pelos índices à existência de campanhas antivacinação, que estariam se espalhando, especialmente, pelas redes sociais.
Contudo, para o ex-ministro da Saúde durante o governo Dilma Rousseff (PT), Alexandre Padilha, essa é uma leitura superficial da situação. Para ele, a verdadeira razão para o retorno dessas doenças estaria na precarização do sistema de vacinação, que viria ocorrendo desde que Michel Temer (MDB) chegou à presidência e passou a limitar os investimentos em Saúde, notadamente a partir da lei que introduziu o chamado Teto de Gastos.
“Essa história de que é o Facebook, que as pessoas pararam de vacinar, isso é residual, sempre teve. O que está acontecendo é o seguinte: teve vacina que faltou, teve interrupção de fornecimento de vacina, a vacina chega e a unidade básica não está mais lá, não teve mais investimento na estruturas das UBSs para manter a sala de vacina. Você teve um conjunto de ataques que, como o indicador é muito sensível, aparece rapidamente. Então, escancara a destruição do SUS pelo atual governo e dá essa sinalização muito grave”, diz o ex-ministro.
Padilha esteve em Porto Alegre na semana passada para participar de um evento de centrais sindicais realizado na Assembleia Legislativa. Na primeira parte da entrevista ao Sul21, ele abordou temas políticos e eleitorais envolvendo o PT e o ex-presidente Lula.
Nesta segunda parte, ele faz uma avaliação da atual situação da saúde no País. Para ele, especialmente devido à questão da imposição do limite de investimentos em saúde nos próximos anos, o Brasil está passando por uma destruição do SUS, que, em contrapartida, é acompanhada pela liberalização das regras para os planos de saúde. “Está em curso a destruição do SUS, que pode se agravar se a gente não reverter esses 20 anos de congelamento e se medidas de afrouxamento das regras dos planos de saúde vingarem no País”, afirma.
Confira a entrevista:
Quais são as perspectivas da Saúde nesse cenário de tetos de gastos?
Eu tenho dito que, pela primeira vez desde a criação do SUS, pela Constituição de 1988, se formou uma aliança nacional anti-SUS, liderada pelo governo federal, com apoio forte de vários governos estaduais e vários prefeitos que assumiram em 2017. Um segmento que acha que o Brasil não tem que ter um SUS, não tem que ter sistema público de Saúde.
Nas palavras do próprio ministro do Temer, é um segmento que acha que o SUS é ‘grande demais’. Chegou a falar que precisava rever o tamanho do SUS, que ele assumia muitos procedimentos, cirurgias, atendimentos complexos. A ideia que eles têm é que o Brasil não comporta um sistema público como o SUS, que é muito investimento na Saúde. E essa verdadeira aliança nacional anti-SUS tem no Congresso nacional um esteio muito importante.
Quais são os interesses que pressionam nesse sentido?
Acho que são dois grandes interesses. Primeiro, interesses privados, não só nacionais. O Brasil, ao construir o SUS num país de 200 milhões de habitantes, é um ponto fora da curva do que existe em vários outros países. Países dessa dimensão têm só o sistema privado como alternativa de atenção à saúde das pessoas. Na Rússia é assim, na China é assim, Índia é assim, EUA é assim.
Os grandes países do mundo não ousaram construir um sistema público de saúde, pensar a saúde como direito, como o Brasil construiu a partir de 1988 inspirado em países europeus, no sistema público canadense, no sistema público de Cuba. Então, você tem um mercado privado de saúde que sempre quis destruir o SUS. Sempre buscou entrar nesse mercado. E o grande sonho deles é que você tenha um SUS reduzido, com as pessoas com poucas expectativas sobre o SUS e recorrendo a comprar plano de saúde. O governo atual também tomou uma série de medidas que favorecem muito o setor privado dentro do SUS, quem vende equipamentos, quem vende medicamentos.
O segundo grande interesse é do mercado financeiro, que, quando defende a política da austeridade fiscal, estabelece que lógica para os governos? O Estado nacional não deve gastar, não deve investir em saúde, educação, habitação, investimento público, aquilo que pode ser economizado para comprar títulos, ações, pagar juros.
Uma demonstração disso foi a ação imediata do Temer de inverter em um ano o maior bolo do orçamento. Sair de 46% para despesas financeiras para 55% no primeiro de mandato. Ou seja, tira dinheiro da saúde e da educação para dar garantias ao setor financeiro. E, ao congelar por 20 anos os investimentos na saúde, ele sinalizou ao mercado financeiro que pode acontecer tudo no Brasil: crescer, nascer mais gente, ficar gente mais idosa, que ele não vai gastar mais em saúde, exatamente para sobrar dinheiro para as despesas financeiras.
Como o senhor vê o cenário sem SUS, com mais de 100 milhões de pessoas que certamente não teriam condições de pagar planos privados?
Hoje, no Brasil, a gente tem 150 milhões de brasileiros que dependem exclusivamente do SUS, não têm outra alternativa para obter vacina, medicamento. E você tem 43 milhões de brasileiros que têm plano de saúde, sendo que desses, quase 80% quando precisa de atendimentos de mais complexidade, é do SUS que eles dependem. Então, eu vejo um cenário trágico para o Brasil e um dos primeiros sinais dessa tragédia foi a retomada da mortalidade infantil.
Era impensável no Brasil – que tem uma rede de saúde montada como nós montamos, agentes comunitários de saúde, da atenção básica, o programa Mais Médicos, que atinge a cobertura que a gente atingiu – voltar a ter aumento de mortalidade infantil. Pois teve, de 2016 para cá, por causa do desmonte das ações da atenção básica. O governo Temer puxou o freio de mão e fez com que pelo menos 8 milhões de pessoas deixassem de ser atendidas pelo Mais Médicos. Atrasa reposição dos profissionais. Destruiu a atenção básica de saúde. Esse congelamento leva o prefeito a questionar o porquê de ele aumentar serviços, contratar mais gente, se ele não tem a garantia de ampliação de recursos do Ministério da Saúde pelos próximos 20 anos. Então, eu vejo um cenário trágico.
Estamos falando disso num cenário como SUS ainda. E sem o SUS?
Nós vamos voltar ao que foi o Brasil antes do SUS, que era você ter 60 milhões, já naquela época, que não tinham qualquer atendimento de saúde. As pessoas tinham atendimento quando eram cadastradas como indigentes. Por isso que eu digo que a população brasileira não suporta isso. E o povo brasileiro ainda tem o poder do voto, por isso que eu tenho a esperança que, nessas eleições, nós ainda vamos ter um trunfo importante. Uma resposta da população brasileira a esses setores dizendo que não suporta um projeto de país como esse, de total exclusão de parcelas da população brasileira.
A gente estava falando dos interesses. Qual é a lógica do setor privado internacional de plano de saúde? Oferecer um produto para uma parcela só da população brasileira. Porque o Brasil, como é muito grande, se tiver 30 milhões envolvidos nisso, já é o suficiente para eles ganharem dinheiro. Então, a lógica deles é oferecer um produto que só uma parcela da população possa aceitar. Nos anos 1970, a gente tinha uma situação de total exclusão, não tinha SUS, mas era um momento em que o Brasil não tinha ainda um grau de envelhecimento como temos hoje.
Aumentam as doenças características de um processo de urbanização, o crescimento da incidência de câncer no Brasil ano a ano tem sido altíssimo. Com essa medida do Congresso Nacional de liberar os agrotóxicos sem a liberação da área da Saúde, vai aumentar o risco de câncer no nosso País. Então, eu vejo um cenário de profunda convulsão social.
Como o senhor vê os impactos na saúde dessas medidas que vêm sendo tomadas para a liberalização do mercado de agrotóxicos?
É muito grave. O brasileiro já ingere, em média, 7 litros de agrotóxicos por ano. Isso foi uma pesquisa que nós fizemos em parceria com a Fiocruz, o resultado saiu em 2014. Quando você pega cidades que estão mais próximas da produção do agronegócio, como Lucas do Rio Verde, no Mato Grosso, chega a 110 litros por ano, em média, de agrotóxicos. Nós já temos vários estudos que mostram a relação direta dessa exposição com aumento de doenças cancerígenas e má formação genética no País.
O que o Congresso nacional fez é um crime absurdo, porque não é só a quantidade de agrotóxicos, ele passa a dizer que você pode comercializar um agrotóxico sem a avaliação prévia do Ministério da Saúde sobre o impacto desse agrotóxico na saúde. Eu, quando era ministro, mais de uma vez o ministério da Agricultura ou o Congresso Nacional tentaram liberar a entrada de alguns agrotóxicos que estavam banidos na Europa, banidos na América do Norte, por conta da relação direta com o câncer. Naquela época, a gente usou a prerrogativa que o Ministério tinha de avaliar esse produto antes de introduzi-lo para barrar.
O Congresso Nacional disse que ia aprovar um decreto legislativo para revogar a decisão do Ministério, tentaram revogar essa lei, a gente não permitiu. Agora, o Temer não só permitiu, como fez um acordo com essa bancada ruralista em troca de apoio nas votações para evitar o impeachment dele. Então, eu vejo um risco real de aumento de casos de câncer no País e de casos de má formação genética. E o Congresso não só tirou do Ministério a prerrogativa de avaliar os impactos na saúde, como tirou do ministério do Meio Ambiente e do Ibama a prerrogativa de fazer a avaliação do impacto ambiental. A gente pode ter alguns desastres ambientais causados pelo uso de agrotóxicos.
Voltando aos planos de saúde. Hoje, muitas cirurgias, muitos tratamentos, por exemplo de câncer, são financiados pelo SUS mesmo para quem paga planos de saúde. Ao mesmo tempo, os planos têm aumentando drasticamente seus valores, o que também faz com que pessoas retornem ao SUS. As perspectivas para os planos também não seriam desfavoráveis? [na segunda-feira (16), após a entrevista com Padinha, a ministra do STF Cármen Lúcia suspendeu uma resolução da Agência Nacional de Saúde Suplementar que alterava regras de coparticipação e franquias dos planos de saúde]
O que está acontecendo: o atual governo e o Congresso, de um lado, estrangulam o SUS, cortam recursos, fazem mudanças nas políticas, como o Mais Médicos, desvalorizam os agentes comunitários de saúde. De outro, para sustentar os planos de saúde, liberam as regras. O Brasil hoje tem cerca de 43 milhões de usuários de planos, já chegou a 50 milhões — 95% dos usuários são vinculados aos acordos coletivos, no trabalho. Então, tem relação direta com a situação do desemprego.
O que as empresas estão conseguindo do atual governo? Afrouxar as medidas de controle em relação a eles para que possam obter cada vez mais lucro, mesmo perdendo pessoas. Ou podem criar produtos, que sejam teoricamente mais baratos, mas que oferecem menos serviços. Qual é a grande aposta dos planos de saúde no atual governo? Eles já conquistaram algumas coisas, como poder cobrar franquia igual tem no seguro de carro, que, se você bater, antes de consertar, paga uma franquia para acionar o seguro. Eles acabaram de criar a mesma situação para o seguro de saúde.
Então, a pessoa paga seguro de saúde a vida inteira, ou desconta do trabalho, e quando for utilizar, vai ter que pagar de novo, o que é uma forma de os planos inibirem o usuário de utilizar o serviço. Aprovaram agora o chamado aumento da coparticipação, que é o plano de saúde cobrar do usuário até 40% do valor do procedimento na hora que ele for utilizar. E o grande sonho deles é autorizar, no Brasil, a chamada segmentação dos planos de saúde. O que é isso? É poder oferecer um plano para uma doença específica, que é aquilo que o ministro do Temer chamava de planos populares, planos acessíveis, mas na verdade é um plano de saúde em que o compromisso com a pessoa é de oferecer só alguns procedimentos, uma parte só do atendimento, não é obrigado a oferecer tudo.
Hoje, pela lei, se você tem um plano hospitalar, tudo que você precisar dentro do hospital, o plano tem que cobrir. O que eles querem criar é que o plano não seja obrigado a oferecer atendimento integral, segmentar o serviço. Então, teria um plano de saúde para o hipertenso. Se essa pessoa tiver um infarto, um derrame, uma isquemia cerebral, não teria compromisso em continuar a cobertura disso. Essa é a grande aposta dos planos de saúde mesmo as pessoas perdendo emprego, oferecer um serviço teoricamente mais barato, mas que não cobriria nada, e com isso ter uma rentabilidade no mercado. O atual governo patrocinando isso.
O PT deve propor a reversão desse quadro. Mas como financiar essas medidas?
O País tem reservas para isso, que não são utilizadas. O País tem reservas para poder bancar isso. O País pode rediscutir, acho um tema fundamental, a distribuição tributária. O sistema tributário do País é muito injusto, cobra dos trabalhadores o que não cobra dos mais ricos. Então, um dos temas centrais no próximo governo do PT vai ser a gente rediscutir a aprovação de imposto sobre grandes heranças. Você rediscutir a tributação sobre movimentações financeiras.
Hoje, quem paga impostos no País é trabalhadores, que é descontado na sua holerite ou a população como um todo ao consumir os produtos básicos, sobre os quais incide um ICMS bastante elevado. As pessoas que vivem no setor financeiro, de bônus, dividendos, lucros, grandes heranças, não pagam imposto nesse País. Então, uma das formas de enfrentar isso vai ser uma redistribuição tributária. Outra é fazer o Brasil voltar a crescer.
Antes do Lula assumir, em 2003, muita gente achava que era impossível ter o Bolsa Família porque não teria como pagar. Achavam que era impossível ter o FIES porque não tinha como pagar. Não tinha como o País arcar com esses custos. Achavam que não tinha como criar o Mais Médicos, o Samu. Como a gente conseguiu criar tudo isso? Primeiro, porque tinha compromisso em criar. Segundo, porque o País voltou a crescer no período do governo Lula.
O Brasil precisa voltar a crescer, e só volta se tiver um papel do Estado de indução desse crescimento, pela característica de país como Brasil, que ainda é muito desigual, desigual regionalmente, depende muito do papel do Estado, como qualquer país do mundo. Os EUA dependem muito do papel do estado na ação militar, por exemplo. A força que é a indústria militar dos EUA e o que ela faz aquele país crescer economicamente. Então, todo esse discurso de um estado mínimo é uma falácia de quem só tem interesse no rentismo, no setor financeiro, não na vida real das pessoas.
Tem um assunto que tem sido tratado até de forma anedótica, mas que é muito grave, que é a volta de doenças já erradicadas pela falta de vacinação. Como o senhor explica isso?
Em saúde pública, tem dois indicadores muito sensíveis que sinalizam muito rapidamente alterações negativas e positivas. E esses dois indicadores explodiram agora. Um é a mortalidade infantil e o outro é de doenças imunopreveníveis, como a gente fala, que podem ser erradicados pela vacinação. Esses dois indicadores apareceram rapidamente, o que demonstra a destruição do SUS. A mortalidade infantil na primeira infância voltou a crescer de 2016 para cá, coincide exatamente com as iniciativas do atual golpe e com a renovação dos prefeitos no final de 2016, porque o SUS tem uma base municipal muito importante. Elas revelam que você tem uma destruição da atenção básica no País. Tudo o que a gente fez com os Mais Médicos e agentes de saúde da família, o atual governo está destruindo.
Tem uma política atual de atenção básica aprovada pelo atual governo que diz que não precisa ter agente comunitário de saúde mais, isso dá um sinal para os municípios de que não é a mais obrigatório. Depois, teve a puxada de freio de mão do Mais Médicos e uma interrupção no programa de vacinas. Essa história de que é o Facebook, que as pessoas pararam de vacinar, isso é residual, sempre teve. O que está acontecendo é o seguinte: teve vacina que faltou, teve interrupção de fornecimento de vacina, a vacina chega e a unidade básica não está mais lá, não teve mais investimento na estruturas das UBS para manter a sala de vacina. Você teve um conjunto de ataques que, como o indicador é muito sensível, aparece rapidamente.
Então, escancara a destruição do SUS pelo atual governo e dá essa sinalização muito grave. Toda vez que você sinaliza que nos próximos 20 anos você não vai fazer uma coisa, porque os outros atores do governo municipal e estadual vão investir nisso? Param de investir.
A gente pode ter alguma consequência semelhante pela desarticulação das farmácias populares?
Da Farmácia Popular, menos, mas da assistência farmacêutica como um todo, sim. Só que são indicadores que demoram mais para aparecer. Nós conseguimos uma redução, de 2006 até 2014, 2015, das internações por hipertensão e diabetes no País.
Exatamente porque a gente criou o Farmácia Popular, colocamos medicamentos nas unidades básicas de saúde, então ampliou a assistência farmacêutica. As pessoas controlavam mais a diabetes e, com isso, se internavam menos. A aparição desse indicador demora um pouco mais, é menos sensível que a mortalidade infantil e as doenças imunopreveníveis. Mas, se continuar assim, vai acontecer. Não tem dúvida. O Samu, que era um serviço consolidado, começou a ter falhas. Quando médicos se aposentam, as prefeituras não estão contratando mais. Não estão fazendo carreira mais.
Como as prefeituras vão contratar um profissional estável sem ter a segurança de investimento do Ministério da Saúde nos próximos 20 anos? A Prefeitura começa a ter dúvidas sobre isso. Então, está em curso a destruição do SUS, que pode se agravar se a gente não reverter esses 20 anos de congelamento e se medidas de afrouxamento das regras dos planos de saúde vingarem no País.
Por Sul21
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