Por Tarso Genro
O livro do brilhante jurista Marcelo Neves, nominado “Transconstitucionalismo” (S.P. 2009, Edição do autor,312 pgs.) comentando uma decisão do STF (HC 82.424\RS) cujo julgamento “caracterizou como crime de racismo” a negação do Holocausto, mostra que tal decisão baseou-se não só na ordem jurídica nacional, mas também em precedentes do direito estrangeiro, invocando um caso específico (Jersild x.Dinamarca), julgado pelo Tribunal Europeu de Direitos Humanos, em setembro de 1994. Diz Marcelo Neves: “Em muitos outros julgamentos, o STF apresentou indicações de sua disposição para integrar-se em um diálogo transconstitucional, em um sistema de níveis múltiplos, no qual diversas ordens jurídicas são articuladas concomitantemente para a solução de problemas constitucionais de direitos humanos.”
A ordem da Constituição de 88 detém todos os os elementos formais e institucionais para a garantia dos direitos fundamentais, para independência do Poder Judiciário, para um pleno e digno funcionamento do Ministério Público e para a operação democrática da representação política. Mas as “formas” jurídicas” e os seus padrões de funcionamento, previstos na ordem, são permanentemente tensionados pelas mutações que estimulam – e às vezes se avolumam sua força no fim de um ciclo político e econômico – a emergência da “exceção”. Pode-se dizer que a ansiedade sem alma dos agentes econômicos contorce a ordem jurídica instalada em outros tempos, porque não pode mais extrair dela as suas expectativas de acumulação no terreno privado.
O galopante processo de integração do mundo, todavia, não se faz só a partir das ordens jurídicas instaladas pelos respectivos poderes constituintes, reunidos em outras épocas. Também o faz – e hoje de forma predominante- por uma força normativa superior, que molda o mundo, ajusta os Estados, forma opinião através dos oligopólios midiáticos e impões novos conceitos sobre democracia, direitos humanos, situações de “risco”. Ao mesmo tempo que esta força material reforma os estados e a legislação do trabalho, retira das agendas nacionais os direitos sociais e os direitos humanos, obriga as ordens jurídicas formalmente instituídas a se comunicarem em defesa do humano e do social. É a regra democrática universal se voltando contra a “exceção”, o direito contra os novos poderes fáticos, a internacionalização dos valores jurídicos da estabilidade humanista socialdemocrata, contra os fluxos de anomia, desordem, precariedade e exclusão.
Neste contexto, estudado de forma profunda – no terreno jurídico – por Marcelo Neves, é que se inscreve nos dias que correm os grandes debates sobre a ordem democrática no Brasil, instalada pela Constituição de 88. Em outras condições econômicos globais de estabilidade, distribuição mínima de riquezas entre os os povos do mundo e vigência material dos diplomas internacionais de proteção ao trabalho e à dignidade da pessoa humana, não seria possível aprisionar um Presidente da República, sem provas concretas de culpa. Seria impossível omitir da agenda jurídico-penal do país, a tentativa de homicídio contra este mesmo Presidente; seria impossível tornar irrelevante o assassinato impune de uma liderança comunitária de expressão de Marielle Franco e promover a destruição quase completa da esfera da política – onde se constrói a agenda democrática de qualquer país sério – substituindo-a pelo fluxo dos infantis comentários liberal-rentistas dos comentaristas da grande imprensa.
Marcelo Neves lembra Hermann Heller, combatendo a unicidade ideológica e cultural forçada “por cima” do pacto político da Constituição, que assim não reflete o “consenso”, que vem precisamente da heterogeneidade de valores que ampara o pacto democrático moderno: “Toda a forma de Estado ético elabora suas própria concepção ética em vista dos valores que defende e dos fins que tem em mira atingir, o que leva ao totalitarismo, porque erige o Estado em fonte moral, de determinados critérios éticos, onipotentes e onipresentes, que não admitem qualquer comportamento, que não seja rigorosamente de acordo com a moral oficial.”
O último ato violento da “exceção” no Brasil, que atingiu de forma dura a integridade do Sistema de Justiça, envolveu o despacho de “habeas-corpus” do Juiz Rogério Favreto, duramente atacado pela exceção. Naquela oportunidade foi formado um sistema paralelo de poder – interno a este Sistema – de clara excepcionalidade, pelo qual articuladamente com o oligopólio da mídia – um verdadeiro estado paralelo em operação no país – foi desconstruído o exercício normal das funções jurisdicionais de um Juiz, cujo despacho poderia ser reformado dentro dos mecanismos previstos pela Constituição e do devido processo legal.
Trocou-se aquele procedimento legal por uma solução rápida de “exceção”, quando foram usadas formas paralelas de convergência política – alheias ao devido processo legal – para que não fossem assumidos os “riscos” de uma soltura de Lula, que provavelmente tornaria inevitável a sua volta ao cenário político da disputa presidencial. O “Estado ético” da moral neoliberal contorceu o Direito da Constituição para ceder às ansiedades do mercado. Ao invés de proceder segundo uma dogmática concreta, de porte constitucional, o Sistema de Justiça funcionou no mercado paralelo do Direito e procedeu conforme a dogmática do mercado: este quer ver Lula preso ou morto, mas jamais na Presidência novamente. E assim se esvai o Estado de Direito e se consolida a exceção, até que consigamos não somente resistir, mas desencadear uma ofensiva unitária contra esta, que ali na esquina pode tornar-se fascismo expresso e declarado. Favreto mostrou coragem e dignidade, Raquel Dodge começa – processando-o como pretende – a integrar-se no novo sistema de poder, de forma surpreendente e dramática para o futuro da nossa democracia.
(*) Tarso Genro foi Governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, Ministro da Justiça, Ministro da Educação e Ministro das Relações Institucionais do Brasil.
+ There are no comments
Add yours