Culpado por ter nascido
(Ou Oficina para uma condenação anunciada)
Pedro Tierra*
Sob a toga a mão sinistra lavra
a sentença previamente redigida
a ferro e fogo desde séculos entalhada
nas tábuas invisíveis do costume:
“ – Aqui não haverá contemplação
com a rebeldia de quem
contra esta ordem se levanta,
em nome do rebanho dos malditos,
deserdados da raça e da fortuna”.
A majestade da toga
finamente recortada
pela tesoura das noites e dos dias,
perfeita para encobrir
o cadáver da Justiça
e garantir a ordem natural das coisas:
esse doce domínio erigido
sobre os ossos dos insubmissos…
Chego como um negro
ante o tribunal dos brancos
e aprendi
da vasta vida que provei:
quando um negro é posto a ferros
e conduzido ao tribunal dos brancos,
a Justiça,
silenciosa,
se afasta pela porta ao lado…
Armou-se às pressas um tribunal
para julgar
o destino dos invisíveis.
Porque ergui diante do país
um espelho enterrado.
Afastei o pó e a lama
pelo tempo ali depositados
e revelei uma cara
que não queríamos conhecer.
De tanto repetir-me,
diante da luz
que cega o país,
tornei-me esse espelho
que atormenta
o sono dos escravocratas.
Sou o rosto dos invisíveis
que invadiu os espaços
dos aeroportos
mas não ocupou
o silêncio seminal
das bibliotecas…
Porque sou o rosto
da multidão dos saqueados,
estou aqui.
Porque sou a reinvenção
do arco-íris,
estou aqui.
Porque sou o rio
de esperança que espanta
o agreste e a caatinga,
estou aqui.
Porque sou o sal que sonhei
para nutrir a vida do meu povo,
estou aqui.
Porque sou a impossível tempestade
que forçou os alicerces da Casa Grande,
estou aqui.
Subo ao patíbulo
e levo comigo
os juízes que me condenam.
*Pedro Tierra é poeta.
Militante do Partido dos Trabalhadores
Brasília, véspera do 1o maio de 2018.
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