Apesar do silenciamento da mídia tradicional, o final do mês de outubro e o início de novembro foram marcados por uma série de manifestações, nas principais capitais do país, contra a intolerância religiosa e a favor da liberdade de culto. Organizados majoritariamente por movimentos e dirigentes de religiões de matriz africanas, as passeatas foram um grito de resistência ao crescente número dos casos de agressões contra terreiros no Brasil, que tiveram como estopim a invasão, por traficantes de drogas, a dois terreiros de candomblé na Baixada Fluminense, em setembro.
Em Brasília, os manifestantes entregaram documento intitulado “pela paz e fim da violência contra o povo de axé” a representantes da Câmara dos Deputados e do Supremo Tribunal Federal (STF). O documento reafirma a necessidade de uma ação de Estado que assegure o direito constitucional da liberdade religiosa, o respeito à diversidade e o resgate de uma cultura de paz entre os adeptos das diferentes religiões.
Além do posicionamento oficial das lideranças de religião de matriz africana frente ao poder público, essas manifestações ganham força e apelo por serem marcadas por um sentimento de resgate da solidariedade e de busca de uma identidade comum entre os terreiros. Isso é, a agressão contra alguns terreiros foi capaz de mobilizar uma massa e deflagrar passeatas de resistência por quase todo país.
Uma pequena fagulha foi acessa. Essas mobilizações emergem como um grito em favor da decisão civilizatória de que a agressão e a intolerância, contra qualquer grupo que seja, devem ser encaradas como um problema de toda a sociedade.
As manifestações também deixaram claro que a pauta da intolerância religiosa e das minorias deve sobreviver para além da agenda da mídia tradicional. O silenciamento ensurdecedor que a repercussão das passeatas teve nesse segmento midiático revelam que as agressões contra templos e adeptos de religiões de matriz africana só merecem espaço nos chamados “jornalões” em um contexto do sensacionalismo barato, com uso da violência como estratagema na busca desenfreada pela audiência.
A discussão real do problema e a proposição de políticas sérias de combate a esses abusos não interessa a elite tradicional, rançosa e preconceituosa do país. Por isso, atuam para que o tema seja silenciado, não entre na pauta. Para esses, que ainda trabalham pela manutenção de privilégios e, que de forma velada e envergonhada, defendem o modelo Casa-Grande & Senzala, o negro e o pobre, e consequentemente suas tradições e manifestações culturais, artísticas e religiosas, não devem transpassar o quintal do engenho.
Sob pena de tropeçar no ostracismo e no sectarismo, outra questão que se coloca de forma impetuosa à resistência contra a intolerância religiosa é a necessidade de expansão do discurso para além do próprio movimento. As passeatas de outubro e novembro trouxeram à tona uma massa orgânica capaz de mobilização social sobre a pauta, entretanto, o movimento não deve falar apenas para dentro, mantendo-se alheio a demandas de outros setores historicamente reprimidos, ou estará fadado ao fracasso.
O avanço do autoritarismo, da violência, do radicalismo e da falta diálogo é um retrocesso que agride a sociedade como um todo, não só os terreiros e os adeptos de religião de matriz africana. Exemplo recente da escalada dessa cultura do ódio em nossa sociedade, para além da pauta da intolerância religiosa, foi a decisão do desembargador federal Carlos Moreira Alves, referendada de forma monocrática pelo STF, que permitiu a correção e a atribuição de nota a redações do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) que desrespeitem os direitos humanos.
Os direitos humanos são valores civilizatórios consagrados em todo o mundo. A disputa pela manutenção desses valores também é, necessariamente, uma luta contra a intolerância religiosa e por um mundo que respeite a convivência pacifica entre os seres humanos, independentemente de raça, de gênero, de condição social, de crença religiosa e de orientação sexual.
Os sinais do avanço da intolerância não param por aí e são, cada vez mais, alarmantes. Nesta terça-feira (7), um grupo ateou fogo em um boneco de uma bruxa com o rosto da filósofa norte-americana Judith Butler, em frente ao local de realização do colóquio “Os Fins da Democracia”, do qual a filósofa participava. O debate foi organizado pela Universidade de São Paulo, em conjunto com a Universidade da Califórnia, onde a filósofa dá aulas.
A perversa carga simbólica da queima de bruxas na fogueira, ação típica da idade medieval e da inquisição católica, foi acompanhada de palavras de ordem em favor da “família” e pela “tradição”. Ligado ao judaísmo, Butler é uma das referências mundiais no estudo da teoria de gênero e de defesa da democracia. A filósofa tem se posicionado por um judaísmo não associado à violência do estado.
Nesse contexto, a educação exerce papel fundamental na formação de uma sociedade que respeite integralmente os direitos humanos e, consequentemente, a liberdade religiosa. Por isso, a decisão judicial referente ao Enem e os ataques contra Butler também são retrocessos que atingem todos os que sonham e lutam por uma sociedade que respeite à diversidade cultural e todas as religiões e manifestações do povo brasileiro.
As passeatas de outubro e novembro deram o pontapé inicial na resistência contra a intolerância religiosa. Entretanto, o avanço e a conquista real estão na expansão da cultura da tolerância e na formação de uma sociedade em que todos sejam respeitados, valorizados e convivam em paz. Esses conceitos são fundamentais para a consolidação da democracia e dos direitos das minorias em nosso país.
Fonte: Brasil 247
*Danilo Molina é militante do PT DF, jornalista, foi assessor do Ministério da Educação e do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) durante o governo Dilma Rousseff e servidor do Ministério durante o governo Lula
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