O Tribunal Popular da Lava Jato condenou nesta sexta-feira as irregularidades e violações constitucionais cometidas pela operação desde 2014. A sentença, que tem valor simbólico, foi lida pelo juiz Marcelo Tadeu Lemos, de Alagoas, às nove e meia da noite, após sete horas de debate público.
“Julgo procedente a acusação e condeno a Lava Jato por todas as ilegalidades que praticou ao longo de três anos no Brasil”, decretou o magistrado.
A decisão dos jurados foi unânime, e resultou na “condenação popular” das ações do Poder Judiciário, da força-tarefa, da mídia comercial e do Ministério Público no âmbito da operação Lava Jato.
O evento, organizado pelo Coletivo Advogadas e Advogados pela Democracia (CAAD), aconteceu no Sindicato dos Trabalhadores da Indústria da Construção Civil (Sitracon), em Curitiba.
A cidade é a sede da força-tarefa da Lava Jato, e tornou-se símbolo das arbitrariedades e violações de direitos por parte do Poder Judiciário no Brasil. A data também é simbólica: 11 de agosto é o Dia do Advogado e da Advogada.
Juiz sem toga
Presidente do tribunal simulado, Marcelo Tadeu Lemos mencionou, na abertura do evento, a sindicância que foi aberta em seu estado, Alagoas, para apurar a participação dele no julgamento simbólico em Curitiba. Em seguida, listou as regras do Tribunal Popular da Lava Jato e explicou porque não usaria toga durante o evento.
“A toga tem uma simbologia de neutralidade, e a Lava Jato quebrou o mito da neutralidade judicial. Ficar sem toga é uma demonstração de que precisamos olhar com muito cuidado, com muita acuidade para a neutralidade judicial”, declarou.
Um dos advogados criminalistas mais conhecidos do país, Antônio Carlos de Almeida Castro, conhecido como Kakay, assumiu a defesa simbólica da Lava Jato e adotou o sarcasmo como estratégia no Tribunal Popular.
Desde o início do julgamento, questionou a imparcialidade do juiz Marcelo Tadeu Lemos e chegou a propor a “primeira delação premiada espontânea da Lava Jato”. A ideia era ironizar os vazamentos, a seletividade e a relação temerária entre a operação e a mídia comercial.
Quando teve o pedido de delação premiada negado, Kakay mostrou-se perplexo: “A minha cliente [operação Lava Jato] não está acostumada a lidar com o contraditório”, afirmou, em tom provocativo, e arrancou risos das quase 200 pessoas presentes no auditório do sindicato.
Como representante da defesa, o advogado criminalista levantou a hipótese de que os juízes, delegados e procuradores que atuam na Lava Jato foram “seduzidos” pelo poder midiático, e que isso poderia ser usado como argumento para absolvê-los.
Os jurados admitiram essa hipótese, mas foram unânimes ao responsabilizar a força-tarefa e o Judiciário pelas arbitrariedades da operação.
Acusação
Após o sorteio dos oito jurados populares, assumiu a palavra o ex-ministro da Justiça, Eugênio Aragão, responsável pela acusação. A linha argumentativa foi baseada em treze possíveis irregularidades da operação – que tem afetado, segundo ele, a dinâmica de separação dos três poderes.
“O Ministério Público, reconhecido na Constituinte como um órgão que pudesse criar contrapeso a uma certa desproporção de poderes no Judiciário, converteu-se em uma metralhadora giratória, cuspindo balas para todos os lados, e ninguém a dominar o seu gatilho”, lamentou. “Ele confunde o princípio da independência funcional com a irresponsabilidade.”
A maior parte das irregularidades citadas por Aragão está relacionada ao uso indiscriminado de delações premiadas, prisões preventivas e conduções coercitivas pela operação. O ex-ministro recusou qualquer comparação entre a Lava Jato e a operação Mãos Limpas, na Itália.
Esse paralelo tem sido usado como forma de legitimar o uso de certos mecanismos em proporção inédita no Brasil, como a delação premiada. “O delator quer o conforto. Não é à toa que fala, preserva os seus bens, e volta ao conforto do lar. Essa é uma utilização completamente dissociada de sua finalidade histórica. Não dá para comparar esse uso, no universo brasileiro, com o universo italiano”, analisou.
Eugênio Aragão também trouxe à tona o debate sobre a crise econômica e das instituições no Brasil, propiciada pela Lava Jato e por atores estrangeiros com interesse em explorar recursos naturais no Brasil. “A quem isso interessa?”, questionou, em referência aos ataques jurídicos e midiáticos sofridos pela Petrobras, a maior empresa estatal da América Latina.
Sobre a destruição de grandes empreiteiras privadas, o ex-ministro foi taxativo: “Uma indústria não é um patrimônio individual, apenas. É um patrimônio social, porque cria empregos, permite arrecadação de impostos, acumulação de experiência em tecnologia e coloca o Brasil no mercado global”.
Crítica da mídia
O Tribunal Popular da Lava Jato foi composto por dois júris. Um de caráter popular e outro, qualificado, formado por dez juristas e um jornalista – o escritor Fernando Morais, que analisou os problemas na relação entre o Judiciário e a mídia corporativa no Brasil.
“O golpe de Estado [de 2016] e a Lava Jato são irmãos siameses”, afirmou o jornalista. “A mídia que atuou pelo golpe, defende a Lava Jato e defende o que eles chamam de reforma, é a mesma que levou Getúlio [Vargas] ao suicídio em 1954. E é a mesma que apoiou dois golpes contra Juscelino Kubitschek, não queria deixar João Goulart assumir [a Presidência da República], e agora está vestida de tucano. Essa mídia não nos surpreende, e a perseguição ao Lula é simbólica. Ele aparece na capa das revistas semanais vestido de presidiário, com o rosto ensanguentado, porque a imprensa está a serviço de quem paga as contas no fim do mês. O resto é conversa para boi dormir. Liberdade de imprensa é liberdade de empresa”.
Vera Karam de Chueiri, diretora da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná (UFPR), ressaltou que a operação, em um contexto de crise, restringiu o senso crítico no Brasil por admitir a excepcionalidade, a parcialidade e o arbítrio.
“O que a Lava Jato demonstra é um enfrentamento da crise em que se aniquila o corrupto a qualquer preço, e de qualquer maneira, mas não aniquila a corrupção. Isso porque ela assume a excepcionalidade como regra. Ela cortou na carne e fez sangrar a nossa democracia constitucional”.
Entre os demais membros do júri qualificado, que votaram pela condenação da Lava Jato, estavam juristas como Beatriz Vargas Ramos, professora da área de Direito Penal na Universidade de Brasília (UnB), Marcello Lavenère, um dos advogados que liderou o processo de impeachment de Fernando Collor, e Claudia Maria Barbosa, professora de Direito Constitucional na Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Paraná. Os integrantes do júri popular também deram parecer favorável à condenação.
Lavenère, o último jurista a se pronunciar, estendeu os debates para a necessidade contínua de efetivação dos valores democráticos, para além de uma análise técnica da Lava Jato: “Estamos em meio a uma luta muito maior. A nossa democracia política, infelizmente, não assegurou a felicidade ao povo, não foi capaz de resgatar a democracia social”, disse.
“A Lava Jato é uma manobra dedicada a desmontar o que parecia ser o início de uma construção, débil, com muitos defeitos, de um país mais justo, igualitário, com mais espírito brasileiro”.
Lava Jato em debate
Essa não foi a primeira vez que juristas se reuniram em Curitiba para discutir as consequências do avanço da operação Lava Jato. No dia 2 maio, o auditório do Sindicato dos Jornalistas (Sindijor) ficou lotado para uma aula pública.
Uma semana depois, o debate aconteceu na Praça Tiradentes, também na região central. O primeiro debate sobre a operação na periferia da cidade aconteceu em 13 de junho, no loteamento Moradias 23 de Agosto.
As próximas mobilizações devem ser convocadas para a semana do dia 13 de setembro, quando o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) volta ao Paraná para prestar depoimento ao juiz Sérgio Moro em mais uma ação penal no âmbito da Lava Jato.
Veja o julgamento na íntegra:
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