Do Sul 21
A área da segurança pública no Brasil adquiriu extrema importância no governo de Michel Temer, com a implementação de uma política que tem por trás dela uma nova doutrina de segurança nacional. Essa doutrina vê os grupos ligados ao tráfico de drogas e os movimentos sociais ligados a uma visão de esquerda como os novos inimigos internos e alvos de uma política nacional de segurança que justificaria inclusive a intervenção as forças armadas. Além disso, a polícia militar tem um salvo conduto para atuar de forma violenta e, às vezes, até contra a lei em nome de um “bem maior”. O alerta é do sociólogo Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo, professor e pesquisador da PUC-RS e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, que vê um preocupante processo de militarização da segurança pública no Brasil.
Em entrevista ao Sul21, ele identifica as origens desse processo no período que precedeu a realização da Copa do Mundo e das Olimpíadas e o seu agravamento a partir da destituição do governo de Dilma Rousseff. Apesar de não ser um consenso dentro das Forças Armadas, a utilização de militares para funções de policiamento, como está acontecendo mais uma vez no Rio de Janeiro, indica o aprofundamento dessa nova doutrina que vem sendo sustentada pelo general Sérgio Etchegoyen, chefe do Gabinete de Segurança Institucional, e por algumas pessoas ligadas ao governo Temer, assinala o professor da PUC.
Natural de Cruz Alta, de 2011 a 2012, Etchegoyen comandou a 3ª Divisão do Exército em Santa Maria. O militar gaúcho foi o primeiro general da ativa a criticar publicamente o trabalho da Comissão Nacional da Verdade, qualificado por ele como “patético” e “leviano”. Isso porque a Comissão incluiu o pai dele, general Leo Guedes Etchegoyen, entre os militares responsáveis por violações de direitos humanos durante a ditadura militar. Essa não foi a única citação envolvendo familiares do general. Um tio dele, Cyro Guedes Etchegoyen, foi apontado pelo coronel Paulo Malhães à Comissão Nacional da Verdade, como autoridade responsável pela Casa da Morte, local de tortura e morte de presos políticos da ditadura, localizada no município de Petrópolis, Rio de Janeiro.
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Sul21: A decisão de colocar as Forças Armadas para atuar no policiamento no Rio de Janeiro e as declarações de integrantes do governo federal de que essa prática pode ser ampliada para outros estados indicam que estamos vivendo um processo de militarização da segurança pública no Brasil?
Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo: Estamos vivendo um processo de mudança no contexto da segurança pública e da justiça criminal, cujo início talvez remonte à preocupação do governo Dilma de garantir a realização da Copa do Mundo e das Olimpíadas. Houve um esvaziamento de iniciativas que vinham sendo tomadas nos anos anteriores na direção de uma democratização e de uma desconexão da segurança pública das forças armadas. A Secretaria Nacional de Segurança Pública (Senasp), órgão civil que vinha sendo construído para coordenar a área da segurança em nível nacional, perde poder e o Exército volta a ocupar uma posição chave, articulando centros de comando e controle nos estados que seriam sedes da Copa e das Olimpíadas. O Exército passou a coordenar ações das polícias estaduais e da Polícia Federal voltadas à repressão da criminalidade.
Com o golpe e a destituição do governo Dilma, essa área adquiriu extrema importância, com um projeto bastante articulado de implementação de uma nova política que tem por trás dela uma nova doutrina de segurança nacional. Essa doutrina vê os grupos ligados ao tráfico de drogas e os movimentos sociais ligados a uma visão de esquerda como os novos inimigos internos e alvos de uma política nacional de segurança que justificaria inclusive a intervenção as forças armadas. Intervenções pontuais e periódicas do Exército no Rio de Janeiro já vêm acontecendo há algum tempo, mas a ideia era de que esse tipo de prática fosse sendo dispensada em nome da Força Nacional de Segurança, das UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora) e de uma política de prevenção.
O que estamos vendo agora é uma total reversão dessas políticas anteriormente implementadas, uma maior vinculação do Exército à área da segurança pública e uma tentativa de justificar essa mudança em nome da necessidade de combate ao crime e, pior, de alguma maneira justificando e legitimando a total desconsideração dos direitos e garantias individuais assegurados pelo Código de Processo Penal e pela Constituição. Segundo esse discurso, como estamos vivendo um estado de guerra, a sociedade deve abrir mão dessas garantias em nome do combate ao inimigo.
Sul21: Há algumas vozes críticas dentro do Exército, como a do próprio comandante da arma, general Villas Boas, sobre essa atuação das forças armadas na área da segurança pública. Parece que não há um consenso entre os militares sobre esse tema. É isso mesmo?
Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo: Com certeza. Não há um consenso sobre como encaminhar essa questão do papel das forças armadas em relação a essa nova doutrina que vem sendo sustentada pelo general Sérgio Etchegoyen e por algumas pessoas ligadas ao governo Temer. Dentro do Exército não há uma concordância de que esse seja o novo papel da instituição. Esse processo ainda passará por novos enfrentamentos, embates e possibilidades de reversão deste cenário. Com a tomada do poder pelo grupo ligado ao presidente Temer foi dado ao general Etchegoyen esse papel de articulador de uma política de segurança pública juntamente com o ministro da Defesa, Raul Jungmann. Essas duas figuras estão atuando de forma articulada, a partir dessa nova doutrina, tentando implementar um movimento de ocupação de espaços no âmbito das políticas de segurança.
Um dos elementos dessa nova doutrina é o esvaziamento do papel da universidade e da pesquisa como fomentadoras de inovações nesta área, algo que vinha caracterizando os governos anteriores. Esse discurso já esteve presente quando Alexandre de Moraes assumiu o ministério da Justiça e está sendo reafirmado agora. Segundo ele, pesquisa acadêmica não é interessante, não é importante e mais atrapalha do que ajuda o combate ao crime. Além disso, o processo penal brasileiro seria muito leniente contra o crime, apresentando muitas garantias que estariam atrapalhando o combate ao crime, devendo ser suspensas para determinados grupos. Há, neste sentido, uma clara desigualdade de tratamento. A gente vê filhos de desembargadores recebendo tratamento muito benéfico e moradores de favelas e periferias urbanas recebendo um tratamento que não é novo, mas que é extremamente ilegal, tanto na forma como são tratados pela polícia como no sistema carcerário.
Alguns pesquisadores vêm apontando que, neste contexto, as polícias militares vêm ganhando proeminência. No atual sistema de segurança pública e de justiça criminal, as polícias militares são responsáveis pelo policiamento ostensivo, cabendo à Polícia Civil fazer o trabalho de investigação e ao Judiciário encaminhar todo o processo visando a aplicação de uma pena. A polícia militar vem adquirindo um protagonismo crescente neste processo, agindo muitas vezes de forma violenta. Trata-se de uma violência indevida, ilegal, mas que não é coibida pelos governos. Tivemos um exemplo disso aqui no Estado, quando o governo Sartori decidiu condecorar os policiais militares envolvidos no caso do hospital Cristo Redentor. A polícia militar tem um salvo conduto hoje, no Brasil, para atuar de forma violenta e, às vezes, até contra a lei porque a sociedade aceita isso e os governos não estão preocupados com o controle da atividade policial.
As polícias civis, por sua vez, estão sendo esvaziadas. A investigação criminal está sendo dispensada muitas vezes e vista como um problema. Já que se quer prender e condenar liminarmente, a investigação criminal também se torna um entrave. Dá-se ao policial militar, na ponta, a palavra final sobre o caso. O depoimento do policial serve como prova suficiente para a condenação, não sendo necessária uma polícia investigativa com estrutura e condições inclusive de ter a possibilidade de contestar esse tipo de depoimento. Neste contexto, o processo penal acaba funcionando como um mecanismo de imposição de penas antes mesmo da condenação, mantendo pessoas encarceradas durante longo tempo através das prisões preventivas. Toda a tentativa que se fez de mudar esse quadro com audiências de custódia e com a lei das cautelares não teve muito êxito. O Judiciário acaba cumprindo o papel de manutenção dessas prisões por longo tempo.
Todos esses são elementos de uma política de segurança voltada para o endurecimento penal, para a militarização dos controles sobre determinados setores sociais e para uma situação de super encarceramento que já é uma realidade e cujos efeitos colaterais já estão muito claros, embora nada seja dito sobre eles.
Sul21: Nos últimos anos, em especial no contexto da Operação Lava Jato, ganhou força no Judiciário, na Mídia e na opinião pública de modo geral um discurso punitivista e crítico ao sistema garantidor de direitos. Na semana passada, um grupo de promotores lançou um manifesto criticando o “garantismo e a bandidolatria”, colocados pelos mesmos no mesmo patamar. Na sua avaliação, qual a dimensão e as implicações desse tipo de visão para a democracia brasileira?
Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo: Tenho procurado explicar esse fenômeno do endurecimento penal, do aumento do encarceramento e da crescente autonomia das polícias militares para atuar no combate do crime, mesmo que utilizando a violência de forma indevida, por dois motivos principais. Um deles é o efeito Lava-Jato, uma operação que articula a Polícia Federal, o Ministério Público Federal e o Judiciário em um processo onde uma série de princípios do processo penal são desvirtuados e atropelados. Isso é justificado em nome de um bem maior que é o combate à corrupção, ou seja, uma lógica na qual os fins justificam os meios. No entanto, numa democracia, os fins não justificam os meios. Numa democracia, há regras para a aplicação de penas e para a utilização do poder de punir do Estado.
O que está acontecendo na Lava-Jato e que se torna, de alguma maneira, o exemplo a ser seguido, na visão das carreiras jurídicas, é essa ideia de que, em nome do combate ao crime, é preciso inclusive agir contra a lei. Os princípios e garantias fundamentais da Constituição de 1988 são vistos como entraves, ideias lenientes e vinculadas a uma visão de direitos humanos prejudicial para a eficácia do combate ao crime. Esse discurso tem crescido muito dentro das carreiras jurídicas, especialmente dentro do Ministério Público, uma instituição que, em 1988, ampliou seu papel como garantidor dos princípios fundamentais, mas que, cada vez mais, assume um perfil punitivista talvez até como forma de legitimação da instituição perante a opinião pública.
O grupo de promotores que assinou esse manifesto contra o garantismo tem uma presença forte no Rio Grande do Sul e também no Rio de Janeiro onde, recentemente, se divulgou a realização de um seminário do Ministério Público com a participação de Kim Kataguiri, do MBL. Esse grupo, às vezes, é visto como bizarro e portador de ideias insustentáveis jurídica e academicamente, mas isso não significa que ele não deva ser acompanhado com atenção. Ele detém hoje um poder muito grande dentro do Ministério Público, ocupando inclusive postos de comando da instituição que, no caso do Rio Grande do Sul, historicamente tem sido ocupados por procuradores ligados a uma ideia de fidelidade à Constituição de 1988 e ao papel constitucional do MP, que não é só o de acusador no processo penal, mas também o de fiador dos direitos e garantias fundamentais.
Esse grupo foi afastado dos postos de comando da instituição e substituído por pessoas mais alinhadas com a visão do punitivismo. Além disso, esse grupo tem colocado a opinião pública contra a magistratura, questionando juízes que acabam liberando presos ou propondo penas que são consideradas suficientemente severas para determinados crimes. Hoje, a magistratura gaúcha está acuada e há grupos, dentro dessa magistratura, que acabam se alinhando a essa perspectiva mais punitivista por não suportar essa pressão que vem da opinião pública.
O outro vetor que nos permite entender esse processo é o aumento da insegurança pública. O medo do crime tem duas características. Por um lado, ele tem elementos que são subjetivos. As pessoas estão com medo, não importando muito se aumentou ou não o risco. Isso é uma realidade hoje no Brasil. As pessoas estão amedrontadas. Por outro, há elementos objetivos relacionados ao aumento da criminalidade. Esse aumento também é real. Estamos com patamares de 60 mil homicídios ao ano no Brasil. Esse elemento objetivo tem a ver com a falência de uma estrutura de segurança pública que vem da ditadura militar, que não foi alterado pela Constituição de 1988 e que está esgotado.
Esse cenário vem liquidando com iniciativas que vinham sendo construídas no Brasil de 1988 para cá no sentido de estabelecer políticas preventivas e controles sobre a atividade policial, com a criação de ouvidorias e maior respaldo às corregedorias. Tudo isso, hoje, está extremamente enfraquecido. O que vemos agora é o abandono de qualquer política no sentido da prevenção e o fortalecimento de vetores ligados ao punitivismo. Um exemplo disso é a nomeação do promotor Eugenio Amorim, talvez o maior porta-voz desse movimento de punitivismo exacerbado, para o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, cujos integrantes ligados ao governo anterior acabaram se demitindo alegando que o mesmo foi totalmente desvirtuado.
Sul21: Existe, na sua opinião, a possibilidade desse movimento de militarização da segurança pública se expandir também ao Rio Grande do Sul?
Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo: O governo Sartori tem dois momentos em relação à segurança pública. Em um primeiro momento, a perspectiva do ajuste fiscal foi adotada de modo radical, causando um estrago muito grande nas estruturas de policiamento. Isso vai gerar uma crise na segurança pública com o aumento da criminalidade. As classes média e alta começam a ser afetadas e esse processo leva à queda do secretário Jacini. Cézar Schirmer assumiu a secretaria com a perspectiva de que “era preciso fazer alguma coisa”, pois a crise na segurança estava levando o governo a uma situação de total inviabilidade.
Neste segundo momento, o governo Sartori pediu apoio do governo federal que enviou a Força Nacional de Segurança, uma medida que tem impacto muito mais simbólico do que efetivo. Além disso, foi reafirmado esse salvo conduto às polícias muito simbolicamente representado pela premiação dos policiais militares que atuaram no caso Cristo Redentor. Isso já caracterizava o governo Sartori há mais tempo, ou seja, a ideia de que o governo anterior era leniente, não havia autorização para a polícia atuar contra o crime e contra movimentos sociais que ocupavam ruas e locais que não deveriam ocupar. O próprio comando da Brigada adotou esse discurso dizendo que, com o novo governo, passou a ter autonomia para agir.
Mais recentemente houve alguns ensaios de atuação do Exército em patrulhamento ostensivo que foram anunciados como iniciativas piloto que acabaram não sendo adotadas e têm a contrariedade de algumas lideranças do próprio Exército.
Nos três anos de governo Sartori, apesar de toda a desestruturação da área, houve um crescimento de praticamente 30% da taxa de encarceramento. Não há nenhum estado brasileiro com esse índice de aumento. Em um sistema penitenciário onde cabem, no máximo, 20 mil presos, nós estamos com 36 mil aqui no Estado. A situação é muito grave. Quando terminou o governo Tarso Genro, o Presídio Central estava com menos de dois mil presos. Agora, voltamos a ter cerca de cinco mil presos. Novamente começam a acontecer conflitos entre facções que continuam dominando o ambiente carcerário.
Sul21: Qual sua avaliação sobre essa recente transferência de presos, apontados como líderes de facções, para presídios federais?
Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo: Ao todo, foram 27 presos transferidos. É muito questionável o impacto dessa medida. Em primeiro lugar porque não há nenhuma garantia de que esses 27 são os que, de fato, comandam a criminalidade de rua. Os grupos que comandam o crime hoje em Porto Alegre e na Grande Porto Alegre são muito fragmentados, não têm um comando centralizado e não funcionam como o PCC e ou o Comando Vermelho nos contextos de Rio e São Paulo. Em segundo lugar, é importante assinalar que colocar esses 27 presos em presídios federais significa colocá-los em contato com lideranças do PCC e do Comando Vermelho. Alguns pesquisadores têm apontado o risco desse contato e da possibilidade que ela faça com que esses grupos se conectem de uma forma articulada.
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