O último Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de 2010, evidencia a evolução das relações sociais e familiares no Brasil. Segundo o levantamento, mães ou pais morando sozinhos com seus filhos; meninas e meninos criados por irmãos mais velhos, tios, avós e/ou bisavós, sem a presença de qualquer um dos pais; adultos sem laços de sangue que dividem um lar e assumem, conjuntamente, a responsabilidade pelas crianças da casa; casais que partem para uma nova união levando os filhos de casamentos anteriores; padrastos e madrastas responsáveis por enteados, entre tantos outros casos, são exemplos desse imenso mosaico de famílias que compõem a sociedade brasileira atual.
Foram listados pelo IBGE 19 diferentes expressões de famílias; no Censo de 2000, eram 11. E, pela primeira vez em nossa história, o Censo, de abrangência nacional, apontou que o modelo tradicional de família – formado por pai/mãe e filhos(as) – deixa de ser maioria no Brasil. Já há cinco anos, os novos lares – inclusive os constituídos por pessoas solteiras que moram sozinhas e por famílias homoafetivas – somavam 28.647 milhões de residências: 28.737 a mais do que as com a formação “tradicional”. Esses arranjos “não tradicionais” estavam presentes em 50,1% dos domicílios brasileiros, à época do Censo.
Os números mensuram o tamanho da transformação social em curso no nosso país. Mas aqui falamos de pessoas, hetero e homossexuais, nem sempre unidas por laços de sangue, mas necessariamente ligadas por fortes laços de afeto, e que constituíram esses novos núcleos de convívio. Juntas ou sozinhas, essas pessoas indubitavelmente formaram famílias, e devem ter sua existência e seus direitos respeitados por todas e todos os brasileiros, como assegura a nossa própria Constituição.
A Carta Magna reconhece a família como base da sociedade e lhe confere “especial proteção do Estado” (artigo 226), mas não classifica o que é família, não estabelece um modelo único como merecedor dessa proteção especial em detrimento dos demais. E não poderia ser de outra forma, uma vez que a própria Constituição define (artigo 5º) que todas e todos os brasileiros são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, e que ninguém será privado de direitos.
Esses princípios pertencem às Cláusulas Pétreas de nossa Constituição: fazem parte dos Direitos e Garantias Individuais, não podendo ser suprimidos ou alterados, sofrer emenda ou sequer deliberação pelo Parlamento, conforme também previsto na Carta Magna (artigo 60). Isso porque quiseram os constituintes garantir ao povo brasileiro direitos que não seriam ameaçados por eventuais debates, divergências ou pressões políticas, partidárias, sociais, religiosas, de opiniões ou de quaisquer outras naturezas.
Forças conservadoras, com fortes motivações religiosas, tentam, portanto, golpear de morte nossa Constituição, ao propor um Estatuto da Família que só considera como núcleo familiar aquele formado por um homem, uma mulher e seus descendentes – ou a comunidade composta por um dos pais e seus filhos –, o que retira os direitos de parte significativa de nosso povo em viver em paz, exercer sua humanidade e formar núcleos familiares que sejam expressão viva de seu afeto.
Esse estatuto é, pois, uma tentativa cruel de negar a diversidade das expressões familiares presentes em nossa sociedade. A proposta encampada por uma bancada fundamentalista religiosa, presente no Parlamento brasileiro, quer se contrapor a decisões do Supremo Tribunal Federal (STF), a quem cabe interpretar a Constituição, que já reconheceu a inafastabilidade do casamento civil homoafetivo e o direito a adoção por parte de cônjuges do mesmo sexo. Trata-se, portanto, de instrumento para institucionalizar a homofobia. Além disso, a proposta abre perigoso precedente ao prever a criação de um conselho que pode ter uma concepção fascista de perseguir todas as famílias destoantes do modelo que está sendo blindado pela proposição.
Ao restringir o conceito de família, o Estatuto legaliza e institucionaliza a ausência de políticas públicas para todos os outros arranjos familiares. O projeto leva a exclusão às escolas, uma vez que prevê a divulgação nos colégios brasileiros do modelo que elegeu como prioritário. Ora, e como ficam os filhos e as filhas dos demais arranjos familiares? Meninas e meninos com dois pais ou duas mães; criados por avós, tias e tios, irmãs e irmãos mais velhos, entre outras inúmeras possibilidades de relações? Nesse ponto, a proposta estabelece nada menos do que a discriminação oficial no âmbito escolar.
Também terá grande impacto nas políticas de saúde. A Estratégia Saúde da Família, por exemplo, age dentro da lógica da territorialidade, buscando levar atendimento médico de qualidade a todas as famílias existentes em determinada região, independentemente de como essas famílias tenham se formado. A proposta rompe com essa lógica. Com a prioridade voltada aos núcleos formados por homem/mulher/filhos(as), o atendimento pode vir a ser discriminatório, minorizando a atenção às famílias distintas daquelas definidas no projeto.
Os defensores do Estatuto se arvoram da falaciosa condição de representantes de uma maioria para defender um modelo de comportamento padrão. Ora, a “tradicional família brasileira” já não é modelo majoritário em nossa sociedade, como apontado pelo Censo 2010. Além disso, as famílias mudam de acordo com as mudanças pelas quais passam a nossa própria sociedade. Transformações sociais estas muito bem lembradas pelo antropólogo Marcelo Gruman, em artigo publicado pela Carta Maior: “até 1888, era padrão um ser humano branco com recursos possuir outro ser humano, embora preto de pele; até o fim do regime do Apartheid, era padrão considerar crime relações sexuais entre brancos e negros; nos anos 60, era padrão negros sentarem-se na parte de trás do ônibus em muitas cidades norte-americanas, proibidos de misturarem-se aos brancos; antes de 1930, era padrão mulheres não votarem no Brasil.”
Acrescento: no Brasil rural, o padrão eram as numerosas famílias, comandadas com pulso firme pelos homens chefes de família, para contribuir na produção. Hoje, grande parte das famílias brasileiras é chefiada por mulheres, muitas sozinhas por se recusar a estar subalternizada em uma relação. Desde 1977, diga-se, a Lei do Divórcio estabeleceu que uma relação conjugal sem amor e sem felicidade pode ser desconstruída, dando aos ex-cônjuges, se assim desejarem, o direito de consolidar novas relações.
Lamentável, nesse sentido, que o relatório sobre o Estatuto da Família esterilize o afeto das relações familiares, ao dizer que família é família, tendo ou não afeto, tendo ou não felicidade – inclusive afirmando haver afeto nas relações de pedofilia, que são crimes abomináveis contra nossas crianças e adolescentes. Seus autores desconhecem que houve “avanço substancial na interpretação do conceito legal e constitucional de entidade familiar, reconhecendo o valor jurídico do afeto e sua expressão face à dignidade da pessoa humana”, como bem pontuou documento sobre a proposição elaborado pelo Núcleo Especializado de Combate a Discriminação, Racismo e Preconceito, da Defensoria Pública de São Paulo.
A sociedade muda, e as famílias também. Para além do retrocesso histórico, o Estatuto da Família retroage no ponto de vista legal. Seus defensores desconsideraram, tanto na proposta original quanto no relatório final do estatuto, o arcabouço de avanços legais instituídos por leis como Maria da Penha, Estatuto do Idoso e Estatuto da Criança e do Adolescente, entre outras normas em vigor no país, ao considerar família de forma monolítica, negando os direitos individuais de cada um dos que a integram. O parágrafo 8º, do artigo 226 de nossa Constituição, reitera que é dever do Estado assegurar assistência a cada pessoa de uma família, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações. Mas os defensores do Estatuto desconhecem – ou ignoram – que as relações de subalternização e desumanização simbólica presentes na nossa sociedade também se reproduzem nas relações familiares, atingindo, principalmente, mulheres, crianças e idosos.
Família é espaço de convivência, de respeito, de amor e de afeto. É a comunidade formada por indivíduos, que são ou se consideram aparentados, unidos por laços consanguíneos, afinidade ou vontade expressa, como definido na Lei Maria da Penha (artigo 5º). A família instituição, patriarcal e monolítica, foi substituída pela família-instrumento, que “existe e contribui tanto para o desenvolvimento da personalidade de seus integrantes como para o crescimento e formação da própria sociedade, justificando, com isso, a sua proteção pelo Estado”, como bem explica a advogada especializada em Direito Homoafetivo, Direito das Famílias e Sucessões, Maria Berenice Dias, que hoje preside a Comissão de Diversidade da Ordem dos Advogados do Brasil.
Para além de inconstitucional, a proposta de um Estatuto da Família é um acinte, uma afronta aos direitos e à cidadania de milhares de brasileiras e de brasileiros, uma proposta que lança nosso país e nossa própria democracia às trevas do obscurantismo.
Erika Kokay é deputada federal pelo PT-DF. Foi titular da Comissão Especial da Câmara que apreciou o Estatuto da Família, tendo se posicionado radicalmente contra a proposta, e apresentou requerimento para que a matéria seja debatida em Plenário. Também é titular da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara Federal.