A terra no Brasil sempre foi fonte de privilégios e conflitos sociais. A concentração fundiária, as desigualdades e os acampamentos são traços presentes de um passado colonial-escravista. Ainda que as condições objetivas sejam desfavoráveis a uma ampla reforma agrária, o escopo e os contornos das possibilidades reais estão expressos no nosso ordenamento jurídico. Gostemos dele ou não, o que foi institucionalmente inserido na Carta Magna pode e deve ter a sua aplicação efetivada e potencializada.
Deve-se rever, por exemplo, a cobrança dos juros compensatórios nos processos judiciais de desapropriação por interesse social que tornam exorbitantes os custos da reforma agrária. A excepcionalidade da propriedade produtiva prevista na Constituição não desobriga a propriedade produtiva do cumprimento da função social; apenas garante tratamento especial para o seu cumprimento a ser fixado em lei. Aliás, sobre isso se referiu, na sabatina a que foi submetido, o novo ministro do STF, Edson Fachin.
A Lei nº 8.629, de 1993, regulamentou a Constituição definindo o conceito de propriedade produtiva com base no Grau de Utilização da Terra (GUT), medido pela relação entre a área efetivamente utilizada e a área aproveitável do imóvel, e no Grau de Eficiência na Exploração (GEE), medido pela relação ponderada entre os índices observados e exigidos de produtividade por hectare para os diferentes produtos e explorações do imóvel. Entretanto, os atuais índices agrícolas, pecuários e extrativos, fixados pelo Incra, que aferem estes parâmetros, estão defasados 40 anos!
Segundo a legislação agrária, a função social da propriedade é cumprida quando a propriedade atende simultaneamente aos seguintes fatores: I – aproveitamento racional e adequado; II – utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; III – observância das disposições que regulam as relações de trabalho; e IV – exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.
Sem querer polemizar sobre a prevalência da função social da propriedade sobre a propriedade produtiva a que faz referência a Constituição sem defini-la, mas com a finalidade de iniciar um debate sobre o tema da produtividade, explicitamos alguns elementos para reflexão tomando como ponto de partida a análise da produtividade da pecuária, que expressa, como se sabe, o maior estoque de terras existente no país.
No Brasil, segundo o Censo Agropecuário 2006 (IBGE), existe um efetivo pecuário de 188 milhões de unidades animais equivalentes em 160 milhões de hectares de pastagens naturais e plantadas. Deste total, 44 milhões de hectares de pastagens, com efetivo pecuário de 35 milhões de cabeças equivalentes, são utilizadas em estabelecimentos com área total acima de 2.500 hectares (0,3% do total de estabelecimentos).
Segundo o Censo, 40,3% do efetivo pecuário brasileiro, em termos de unidades animais equivalentes, está na Região Centro- Oeste. São cerca de 71.001.766 unidades animais equivalentes entre bovinos, bubalinos, equinos, asininos, muares e ¼ de caprinos e ovinos. As áreas de pastagens naturais, plantadas degradadas ou em boas condições somam 59.035.897 de hectares. Assim, a lotação animal média por hectare observada na Região Centro-Oeste é de 1,29 cabeças equivalentes por hectare de pastagem.
O Incra estabelece cinco Zonas de Pecuária, cada uma com a exigência de dois índices: um para o cálculo do GUT e outro para o cálculo do GEE. Segundo a Instrução Normativa do órgão, a Zona de Pecuária 3 predomina na Região Centro-Oeste, cujos índices de lotação exigidos, para classificar o imóvel rural como propriedade produtiva, são: 0,33 (para cálculo do GUT) e 0,46 (para cálculo do GEE).
Comparando os índices – observado e exigido pelo órgão (Zona 3) -, para efeito de cálculo do GEE, verifica-se que o índice predominante exigido corresponde a 35,7% do índice médio observado na Região Centro-Oeste. Em relação ao cálculo do GUT, verifica-se que o índice predominante exigido (Zona 3) corresponde a 25,6% do índice médio observado na Região Centro-Oeste.
Fica evidenciada, pelos dados do Censo Agropecuário 2006, a necessidade de revisão e atualização dos parâmetros adotados pelo Incra. Na Região Centro-Oeste, para o cálculo do GEE, dever-se-ia exigir na Zona 3, um índice atualizado no intervalo de 75% a 100% (entre 1 e 1,29) cabeças equivalentes por hectare da lotação média observada no Censo Agropecuário 2006. Já em relação ao cálculo do GUT, o índice exigido deveria ser entre 50% e 75% (entre 0,65 e 1) da lotação média observada.
Analisando apenas o Estado de Mato Grosso, onde todos os municípios são Zona de Pecuária 3, verifica-se a existência de 21.072.814 unidades animais equivalentes e uma área total com pastagens de 22.062.659 de hectares. Isso significa uma lotação média de 0,96 cabeças equivalentes por hectare. Os índices exigidos pelo Incra para cálculo do GEE e GUT correspondem, respectivamente, a 47,9% e 34,4% da lotação observada.
Em relação ao cultivo da soja, segundo o Censo Agropecuário 2006, a Região Centro-Oeste e o Estado de Mato Grosso lideram a produção brasileira de soja em grão. A quantidade colhida por hectare é 2,75 t/ha no Centro-Oeste e 2,81 t/ha em Mato Grosso. Comparando esses rendimentos por hectare com o índice fixado pelo Incra (1,2 t/ha), verifica-se que correspondem, respectivamente, a 43,6% e 42,7% do exigido pelo órgão.
Com base em estatísticas agropecuárias censitárias, os elementos técnicos aqui colocados são apenas para revigorar o debate, aprofundar os estudos e mostrar que o que se considera produtivo hoje pode não ser efetivamente produtivo como preconizado na Constituição e na Lei Agrária. Afora regulamentar, para além do aproveitamento racional e adequado, a exigência constitucional para cumprimento da função social pela propriedade produtiva, há necessidade de atualização dos índices aferidores da utilização da terra e da eficiência na exploração, conforme previsto em lei.
Osvaldo Russo