Nos diversos atos que os movimentos sociais estão realizando neste período para “descomemorar” o aniversário da Globo, o DNA golpista e de agente político de um pensamento conservador, privatista e antidemocrático da emissora têm sido mais que lembrados. E não é à toa.
A emissora, nunca é demais lembrar, é um dos frutos mais “acertados” do golpe civil-militar surgido em 1964. O fundador deste, Roberto Marinho, fez de seu jornal impresso “O Globo”, um dos principais opositores do então presidente João Goulart, contra as reformas estruturais que este e a sociedade brasileira desejavam e massificando na opinião pública o incentivo a deposição do governo. Apoiando, entre outras, as “marchas com Deus e a família pela liberdade”, mobilizando os civis pelo apoio ao golpe arquitetado nos quartéis, em parte da igreja católica, por políticos direitistas, grandes empresas, etc.
Consumado o golpe pelos militares e civis apoiadores, um ano depois deste, em 1965, a emissora é fundada com concessão direta do novo governo ditatorial.
Se formos pensar no campo político de lá para cá, não tivemos nenhum fato ou momento importante no qual a emissora se alinhou as causas democráticas. Sustentáculo e sustentada pelo governo golpista – a exemplo de outros grupos econômicos e de comunicação – apoio a repressão, a tortura e todos os métodos usados para combater os movimentos pela democracia, pela Anistia e pelas eleições diretas. Perseguiu governos locais progressistas, como o de Leonel Brizola, no Estado do Rio de Janeiro, 1983-1989.
Quando as eleições presidenciais livres foram enfim convocadas, sempre se colocou ao lado mais conservador. Manipulou informações, debates, fatos, como na disputa entre Lula e Collor, editando um debate para beneficiar o segundo, fato que gerou uma “autocrítica” cínica e inútil, pois não reviram os seus métodos.
O alinhamento com o campo conservador na política é similar na área econômica, tendendo sempre no apoio ao capital estrangeiro, aos grandes oligopólios e na entrega das empresas estratégicas do país para os grupos privados nacionais e transnacionais. E, consequentemente, criminalizando movimentos sociais e sindicais.
E as posições político-econômicas da emissora são sustentadas ainda por um grande aparato cultural presente em todo o território nacional. Ao longo destes 50 anos a Globo foi galgando cada vez mais espaço, sufocando opiniões, falas, cores, diferenças e singularidades regionais. E, convencendo a sociedade de que esta era representada na “telinha da Globo”, mesmo que o sotaque majoritário da emissora seja o carioca e o paulista, e nestes estados, Rio e São Paulo, focando principalmente no ponto de vista e ideologia das áreas centrais e mais ricas.
E, vez por outra, como se fizesse uma concessão, e diante de críticas de intelectuais e movimentos, abre uma janela para as culturas regionais, mas sempre padronizadas e pasteurizadas.
O povo nordestino, rico em expressões, é sempre apontado como se fosse uma “coisa” só. E mesmo aqui, o Nordeste é uma mistura de Bahia, Pernambuco e Ceará, os outros quase nunca foram retratados. E mesmo nestes, não existem grandes aspectos locais, os sotaques são os mesmos, as vozes, as danças.
A Região Norte, só foi mostrada, como um lugar que foi “colonizado” por empreendedores vindos do “sul” ou como “refúgio” para “mocinhos” e “mocinhas” entediados com a “vida urbana”. Só para lembrar dois exemplos.
Os negros, historicamente foram relegados como personagens ficcionais subalternos ou secundários. E quando se deu o aumento da consciência social da população, fruto também das muitas lutas dos movimentos pela igualdade racial e por cotas sociais e pelo despertar da autonomia da juventude negra e/ou “periférica”, algumas portas foram abertas.
Mas convém lembrar que os negros, os mais pobres, os ‘favelados’ e ‘periferias’, cresceram como poder de consumo, e logo de ‘fogo’. Mas ainda assim devem ser retratados com um certo padrão homogeneizador.
Se os negros que são maioria da sociedade brasileira são tratados como brasileiros de segunda classe na produção da TV Globo, o que dizer de outros grupos étnicos como indígenas, ciganos, árabes de diversas origens, judeus, orientais, entre outros?
Podemos lembrar ainda do papel inicialmente reservado para as mulheres, ora submissas, ora de “adulteras”, “levianas” ou “sex-simbol”.
Os homossexuais foram migrando dos personagens caricatos dos programas de humor – nos quais contracenavam com os negros “desdentados” e “nojentos”, as “louras burras”, os “caipiras”, os “paraíbas”, entre outros – para uma cena mais emergente, mas também sempre visando a audiência, como nas polêmicas sobre ter ou não um “beijo gay” no último – e agora no primeiro – capítulo das telenovelas “modernas” e “contemporâneas”.
Tudo nesta emissora é visando o lucro. E para isso não se furtam a absorver, mesmo que deturpado e sobre um nível de controle social, os diferentes grupos culturais, etários e étnicos que insistem – mesmo contra os poderosos inimigos religiosos, políticos, econômicos e audiovisuais– em se colocarem como detentores de direitos e de repertórios culturais na sociedade brasileira.
Mais do que nos solidarizarmos, somos parte da base de movimentos socioculturais e políticos que lançaram o manifesto “50 anos da TV Globo: vamos descomemorar!”, formado por entidades como o Intervozes, o Fórum Nacional Pela Democratização da Comunicação (FNDC), o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), a Central Única dos Trabalhadores (CUT), o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), e outros.
Mas, mais do que “descomemorarmos” os 50 anos – e não o fazemos como desrespeito aos atores, músicos, roteiristas, câmeras, jornalistas e outros que trabalham assalariados na empresa, pois separamos a prática e os objetivos da direção da Rede Globo aos dos seus funcionários – precisamos de ação.
Vivemos na chamada “cultura digital”, o que leva a alguns acharem – equivocadamente – que basta um “post” em uma rede social para que as coisas mudem, ledo engano.
A nossa ação política pela democratização do meios de comunicação é também um ato contra esta cultura massificada, pragmática, e que há 50 anos vem agindo contra os direitos humanos, sociais e culturais.
Na redes sociais temos, de fato, a possibilidade de reverberar posições anti-hegemônicas e democratizantes, mas não só aí, precisamos agir nas ruas, nos palcos, nos Pontos de Cultura, nos sindicatos, nas universidades, TV´s, jornais e rádios comunitárias e no parlamento.
Não custa lembrar que cabem aos governos federal – liderado pela presidenta Dilma – estaduais e municipais a adoção de medidas econômicas e políticas que modifiquem este quadro, inclusive prestigiando e democratizando os recursos voltados para a divulgação e a publicidade oficial. É preciso mudar a rota aí também.
Sem democratização dos meios de comunicação e dos bens, produtos e serviços culturais não conseguiremos avançar nas mudanças estruturais que desejamos e estamos construindo no Brasil. E não podemos esperar mais 50 anos para isto.
Edmilson Souza é vereador licenciado, secretário Municipal de Cultura de Guarulhos (SP) e secretário nacional de Cultura do Partido dos Trabalhadores – PT