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O projeto de exclusão social de Guedes e Bolsonaro

Por EDUARDO BORGES*

A Coreia do Sul retratada em Round 6 e o capitalismo brasileiro

O economista coreano Há-Joon Chang, professor de Economia Política do Desenvolvimento na Universidade de Cambridge, escreveu um livro instigante intitulado 23 coisas que não nos contaram sobre o capitalismo. O professor Chang tem demonstrado em seus trabalhos uma perspectiva bastante crítica em relação ao funcionamento do sistema capitalista nos levando a relativizar alguns clichês do economês liberal que muito pouco dialoga com a vida real nas sociedades capitalistas.

O fato dele ser coreano é relevante. A Coreia do Sul e os chamados Tigres Asiáticos foram, a partir dos anos 1980 do século XX, a principal peça de propaganda do suposto triunfo de um modelo de capitalismo em alternativa ao já desgastado modelo ocidental. Mais do que isto, nos parece que a indústria cultural coreana está sendo realmente assimilada pelo mundo ocidental. A estética anime é sucesso entre os adolescentes do mundo. Desde o Oscar entregue a Parasita tornando-o o primeiro filme em língua estrangeira a ganhar o prêmio de melhor filme da Academia de Cinema americano e o sucesso do K-pop e sua mistura de gêneros, que os coreanos caíram no gosto popular. O sucesso mundial da série Round 6 é somente uma consequência lógica de uma indústria cinematográfica que vem se constituindo em uma das mais originais e vigorosas do mundo.

O que temos a aprender com os asiáticos? Seriam eles donos de uma superior inteligência estratégica, resultados de suas respectivas culturas milenares? No Brasil, a Coreia do Sul passou a ser a principal referência de um capitalismo triunfante e conquistou vigorosamente os corações e mentes dos liberais brasileiros. A burguesia brasileira encontrou no desenvolvimento industrial coreano um exemplo de primo pobre (Brasil e Coreia do Sul são periferias do Sistema Mundo Capitalista), que conseguiu triunfar apostando em mais capitalismo. Mesmo nesse caso, nossa burguesia se mostrou medíocre e desonesta. Não se preocupou em sofisticar a análise do “triunfo” coreano e tampouco buscou incorporar as ações desenvolvimentistas da burguesia coreana. Já nos lembrou Florestan Fernandes que nossa burguesia é atavicamente contrarrevolucionária. Eu complemento dizendo que ela é “patologicamente” entreguista, insensível e usurária. Muito se fala que o governo Lula aproveitou os bons ventos vindos do mercado externo, mas, no entanto, não aproveitamos suficientemente para criarmos uma Samsung ou uma Hyundai.

Por outro lado, se em algumas décadas atrás já tivemos uma economia melhor que a coreana, parte do “sucesso” do capitalismo coreano é assim explicada pelo economista Uallace Moreira: “(…) é inegável que a coesão entre Estado orientado por uma elite desenvolvimentista e oligopólios privados que aceitavam – e em certa medida influenciavam – a oferta de subsídios e a orientação estratégica estatal maximizou a oportunidade externa.”[i]

Esta é a diferença básica entre Brasil e Coreia do Sul, nunca tivemos uma elite que pudéssemos chamá-la de desenvolvimentista. Contudo, pouco importa que a elite coreana seja mais preocupada com o desenvolvimento nacional do que a brasileira, no final das contas (e isto será explicitado em Round 6) o povo será sempre um número enquanto estivermos submetidos às regras e à ética (ou falta dela) de um selvagem e excludente capitalismo seja coreano ou brasileiro.

Além disso, para o brasileiro médio, adepto da tese vulgar de que um país só se torna rico se investir em educação, a Coreia do Sul passou a ser a melhor expressão desta tese, sobre isto o citado professor Chang, para decepção de muitos, escreveu: “O que realmente importa na determinação da prosperidade nacional não é o nível de instrução das pessoas e sim a capacidade da nação de organizar pessoas em empreendimentos com uma elevada produtividade.”[ii]

          Os liberais brasileiros, a exemplo do deputado federal Kim Kataguiri, sempre muito ciosos de sua subserviência ao capital internacional, fazem questão de encobrir o fato de estarmos correndo em círculo quando insistimos no argumento de que a educação fará do Brasil um país mais rico e desenvolvido.  Com o grau de mecanização e com o uso cada vez mais indiscriminado de alta tecnologia nos meios de produção, uma boa parte da força de trabalho, seja nos países ricos ou nos periféricos, estará cada vez mais “repondo mercadorias nas prateleiras dos supermercados, fritando hambúrgueres em restaurantes fast-food e fazendo faxina em escritórios”.[iii] O “liberal” brasileiro segue obtuso e repetidor de mantras econômicos já superados até mesmo entre os liberais do centro do capitalismo mundial.

Mesmo diante de todas as evidências negativas das políticas econômicas neoliberais, criadora de pobres e miseráveis, os ultraliberais brasileiros (representados pela turma do ministro Paulo Guedes) preferem encampar uma estratégia de desenvolvimento, que insiste em reproduzir a velha lógica do surrado Consenso de Washington, e se colocam em defesa de uma gama de clichês neoliberais como o Estado mínimo, que inclui desconstruir completamente qualquer tipo de seguridade social, uma reforma trabalhista que atinge de morte as relações de trabalho precarizando a proteção social da classe trabalhadora e o forte investimento em um sistema econômico concentrador de renda e gerador de exclusão social.

Porém, não contavam nossos empedernidos liberais, eternos fãs do “triunfo coreano”, que uma obra de ficção causaria um impacto no mínimo constrangedor às suas teses econômicas. A série sul-coreana intitulada no Brasil de Round 6 (o nome original é Jogo da Lula ou Squid Game) ganhou telespectadores em todo o mundo e ao ser vista em 90 países bateu todos os recordes de audiência da famosa plataforma de streaming Netflix.

Não sei até que ponto vou dar spoilers, mas a série gira em torno de um jogo mortal jogado por indivíduos em condições de vulnerabilidade social que enxergam no prêmio bilionário ofertado pelo jogo a solução de seus problemas pessoais. A princípio poderíamos argumentar que a série se torna interessante pelo fato de que os elementos que compõem sua estrutura central configura a melhor expressão do conflito de gerações que se impôs no século XXI com a consolidação da internet e das redes sociais. É muito comum que pais criados nos anos 70 e 80 insistam, ao argumentarem com seus filhos conectados, no desgastado discurso do “no meu tempo nós brincávamos de pião e bola de gude”.

Estamos definitivamente na era da geração digital. Trata-se de uma geração que em decorrência de um estratosférico desenvolvimento tecnológico foi obrigada a ressignificar o próprio conceito de divertimento. A série faz um apelo a um visual colorido com cenários que remetem aos primeiros jogos eletrônicos. A estética retrô não deixa de ser uma estratégia de provocar certa nostalgia na audiência, ainda que se mantenha no universo da sempre atualizada diversão tecnológica. A escolha, como desafios aos participantes, de jogos que remetem a uma infância remota, certamente é proposital pela capacidade de terem uma linguagem de fácil entendimento e por sua universalidade. Isto fica mais bem caracterizado quando o roteirista opta em explicar na abertura da série as regras do “Jogo da Lula”, talvez por ser uma brincadeira restrita ao universo mental de uma criança coreana. Depois disso, o que temos é o velho cabo de guerra e a bola de gude. A série até pode ser acusada de apelar para uma violência exagerada, mas a cultura pop ocidental já foi devidamente “amaciada” pela estética lisérgica dos filmes de Quentin Tarantino.

Depois de arrebatar a “plateia” com o uso estratégico da comunicação visual, Round 6 penetra em nosso consciente crítico ao colocar a audiência em contato com um discurso explicitamente político/social sobre a Coreia do Sul do século XXI.

A história narrada pelo roteirista e diretor sul-coreano Hwang Dong-hyuk se sustenta nos pequenos ensaios críticos referentes ao funcionamento do capitalismo coreano. Seus principais personagens (ou jogadores) são responsáveis por aglutinar em cada um deles uma experiência decadente de vida. Temos um trabalhador grevista que perdeu o emprego em um processo de “reengenharia administrativa” da empresa, uma refugiada da comunista Coreia do Norte buscando sobreviver em meio à miséria da “coletividade individualista” do Sul capitalista, um estudante pobre que ousou penetrar no prestigiado universo do “meritocrático” ensino superior coreano, um paquistanês vivendo as agruras de um emigrante explorado em terra estrangeira e um bandido mafioso decadente.

São sujeitos que povoam o tão admirado (principalmente pelos liberais brasileiros) capitalismo sul-coreano. 2021 é também a conjuntura do Coronavírus e todo seu impacto desastroso sobre países tradicionalmente com baixa densidade em termos de Estado de bem estar social. A Coreia do Sul é um desses países. Destituído de um sistema público de seguridade social universal o coreano é tão vítima do capitalismo selvagem quanto um brasileiro, um boliviano ou um angolano. Duas personagens idosas da série retratam bem como um país de idosos não se preocupou em oferecer um sistema previdenciário que lhes assegurassem um fim de vida mais seguro e saudável. Um dos motivos que levou a um dos personagens a se submeter à crueldade das regras do jogo é justamente a necessidade de pagar um tratamento médico para a mãe.

O personagem Cho Sang-Woo é simbólico para demonstrar o quanto é excludente e elitista o sistema de educação superior na Coreia do Sul. Nascido e criado em um bairro periférico transformou-se em uma espécie de “herói local” só pelo fato de ter sido o único da comunidade a ter conseguido adentrar na Universidade de Seul e consequentemente furar a bolha da elite corporativa coreana. É interessante como os ministros da educação do governo Bolsonaro querem reproduzir no Brasil esta lógica excludente e elitista. Mas Cho Sang-Woo também serve a outro discurso na série, aquele do indivíduo que veio da parte baixa da pirâmide social e que ao “receber” o privilégio de ascender socialmente, não conseguiu se tornar imune à ambição desmedida presente no mundo corporativo, decepcionando a família e a própria comunidade de onde saíra. Este, inclusive, foi o grande dilema ético/social que levou Cho Sang-Woo ao jogo mortal.

A Coreia do Sul retratada em Round 6 é literalmente uma sociedade de endividados. Os indivíduos se deslocam sozinhos e desamparados em meio a um sistema cruel e insensível bem afeito ao individualismo exacerbado pregado pela lógica liberal capitalista. Eles são livres para escolher entre o inferno ou o inferno.

Round 6 é bastante direto em seu discurso político.  A crítica mordaz ao capitalismo coreano pode ser resumida, entre outros momentos, com a seguinte frase presente no roteiro: “há dois infernos, e o pior é a realidade”. Espelhando um modelo que o atual governo capitaneado pelo Sr. Paulo Offshore Guedes busca implantar no Brasil (e com o apoio de uma surreal classe média) a série coreana retrata a queda do nível de renda e o aumento da pobreza ampliados em decorrência de uma desumana reforma trabalhista neoliberal, iniciada nos anos 90 pelo governo de Kim Young-Sam, que prometeu mais emprego e entregou mais miséria e o aumento do trabalho informal precarizado.[iv]

Ainda que também seja bom divertimento, para nós brasileiros Round 6 é principalmente um alerta futuro e uma lição de vida. A realidade da sociedade coreana retratada na série é um esboço asiático do que o Brasil tem se tornado nos últimos anos. Mas não se enganem, ainda não chegamos ao fundo do poço. Com o aprofundamento das reformas, principalmente a administrativa que vai atingir em cheio o funcionalismo público, e a sanha privatista de Guedes e Jair, o selvagem capitalismo brasileiro ainda tem muita lenha para queimar. Aliás, em um rompante de “sincericídio” afirmou o próprio Bolsonaro: “Nada não está tão ruim que não possa piorar”. Vai vendo Brasil.

Mas apesar do escancarado desmascaramento do capitalismo coreano provocado pela série, um “destacado” representante do ultraliberalismo brasileiro, o Deputado Federal Kim Kataguiri, ainda encontrou espaço para exercer sua profunda desonestidade intelectual e ideológica ao comparar, através de um meme, a história retratada em Round 6 com o socialismo. O esforço hercúleo feito pelo “nobre” parlamentar em fazer a infame comparação, e ainda ter o desplante de publicar em sua rede social, somente explicita o baixo nível intelectual e ético dessa malta de direitistas que emergiram das trevas no pós 2013 e ao naturalizarem um retrocesso civilizatório estabeleceram as bases que possibilitaram a ascensão de um sujeito como Jair Bolsonaro e toda sua representatividade burlesca completamente desprovida de empatia humana. Em Round 6, definitivamente, a arte imita a vida e mostra sua face mais cruel.

*Eduardo Borges é professor de história na Universidade do Estado da Bahia.

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