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Mourão está virando Temer

Por Helena Chagas

Nos códigos não escritos do poder, uma das recomendações a quem deseja saber se um presidente da República passou a ter chances de ser ejetado do cargo é observar o seu vice. O comportamento do inquilino do Palácio do Jaburu é um importante termômetro da conjuntura. Em dezembro de 2015, por exemplo, a carta “mi-mi-mi” de Michel Temer a Dilma Rousseff, em que se queixava de ser um vice decorativo e sem protagonismo no Planalto, não deixou margem a dúvidas de que ele, a partir de então, trabalharia incessantemente para derrubá-la – o que acabou acontecendo.

Nesses dois anos, o general Hamilton Mourão vinha alternando períodos de loquacidade e de silêncio, esses últimos quase sempre motivados por admoestações de Jair Bolsonaro. Mostrava-se um vice relativamente obediente, recuando quando necessário e fingindo não ouvir descomposturas públicas do presidente. Nos últimos tempos, engoliu até o recado de que Bolsonaro não quer mais tê-lo como vice na reeleição e andou mais calado. Até alguns dias atrás.

O agravamento da crise da Covid-19 e o desgaste crescente de Bolsonaro vêm mostrando um Mourão mais revigorado – embora ele tenha tido a doença. Mas anda esbanjando saúde, entrevistas e declarações diárias na porta do anexo do Planalto onde fica seu gabinete. Pautado pelos jornalistas, fala sobre o assunto do dia, quase sempre emitindo opiniões equilibradas. Apresenta-se como o sujeito normal, conciliador, com posições sensatas. Nas entrelinhas: estou aqui à disposição, e não sou maluco – ao contrário de vocês sabem quem.

Diferentemente de Bolsonaro, por exemplo, disse que a vacina é importante e que irá se vacinar, sim, obedecendo a fila de prioridades.  Sempre de máscara, costuma minimizar declarações infelizes de Bolsonaro, na missão impossível de tentar explicá-las em termos razoáveis, como aquela de que a democracia de um país depende de suas Forças Armadas. Prontificou-se a entrar em contato com autoridades chinesas com quem costuma conversar para ajudar na liberação dos insumos para a vacina que Pequim reluta em mandar ao Brasil. Esperou ser chamado, mas não foi ouvido nem cheirado nesse assunto, como em muitos outros.

Talvez por isso, Mourão tenha dado a entrevista publicada nesta quarta-feira, no Valor, admitindo o que todo mundo sabe: o governo cometeu erros “sobejamente conhecidos” na gestão da crise sanitária. Afastou-se deles e ainda criticou a politização da vacina “tanto do nosso lado quanto do lado do governo de São Paulo”. Fez questão de lembrar que, há três meses, já dizia que o governo iria comprar a Coronavac – enquanto Bolsonaro proibia Eduardo Pazuello de adquiri-la.

Quase num compromisso com os valores democráticos, disse, em tese, que um presidente que coloque em risco a democracia e a integridade nacional “tem que ser parado pelo sistema de freios existente”, ainda que, no caso de Bolsonaro, tenha ressalvado que é preciso olhar mais para suas ações do que para sua retórica.

Como fazem todos os vices nessas ocasiões, e como fez o vice de Dilma no dia da carta e muitas outras vezes, Hamilton Mourão preferiu se dizer contra o impeachment. Acredite quem quiser. O general está, a olhos vistos, em pleno processo de metamorfose para virar Michel Temer. Deve ser a água do Jaburu.

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