Nacional

A mentira sem perna curta

Por: Magnus Henry da Silva Marques*

uso da mentira como arma da política não é novidade. Em 1989, em nossa primeira eleição direta depois da barbárie da ditadura militar, Collor usou e abusou da mentira para atacar e desgastar Lula: tentou relacionar o Partidos dos Trabalhadores ao sequestro do ex-proprietário do Grupo Pão de Açúcar; e subornou uma ex-namorada de Lula para mentir sobre a relação entre o então candidato e a filha que tiveram juntos. A mentira também chegou a ser usada como justificativa para golpe de Estado, como nos relembram os fatos da década de 1930: para implantar a ditadura do Estado Novo, o governo Vargas forjou um suposto plano de comunistas, o Plano Cohen, para a tomada do poder. Contudo, ao menos desde o início da década de 2010 (com os ataques contra Maria do Rosário, Manuela D’Ávilla e Jean Wyllys), estamos assistindo a um fenômeno relativamente novo, mas não necessariamente inédito: a associação da profissionalização da mentira como tática primeira da disputa política com o domínio de um polo do espectro político, a extrema direita, dos meios de comunicação de massa de nossa época. Esse fenômeno tem impactos significativos sobre a nossa democracia e sobre a luta política de nosso tempo, e é sobre eles que este artigo tentará jogar luzes.

Mas, antes de tudo, é necessário realizar uma calibragem sobre a importância do tema. Parte do campo da esquerda tem atribuído ao fenômeno da proliferação da mentira uma função exagerada. Há quem diga que foram as fake news as principais responsáveis pela derrota que tivemos em 2018, ou, em um retrato de ainda maior superestimação do fenômeno, que são elas os motores da degradação de nossa democracia. Esse exagero no diagnóstico tende a ter como consequência a assunção de que vale tudo no combate à profissionalização da mentira como tática da política. Para quem vê as fake news como as responsáveis para a barbárie que vivemos hoje, faz sentido atribuir ao judiciário, o mesmo que prendeu Lula sem provas, o papel de decidir o que é verdade ou mentira, e também vale à pena aumentar a vigilância em aplicativos de troca de mensagens, ainda que ela traga riscos de criminalização das lutas sociais.

Esse diagnóstico é uma simplificação absurda do que vivemos desde o golpe contra Dilma até aqui. A derrota sofrida pelas forças populares em 2018 é um fenômeno complexo que envolve uma multiplicidade de fatores, dentre eles, o uso profissional da mentira. Mas esse último está longe de ter sido a variável determinante para o resultado que tivemos. Afinal, houve um movimento de muito maior impacto sobre as forças populares: a prisão ilegal e a inabilitação do líder em todas as pesquisas eleitorais da época, o presidente Lula. E essa arbitrariedade que marcou a eleição de 2018 não foi um raio em céu azul, ao contrário, foi resultado de cerca de 4 anos de uso da estrutura do sistema de justiça na perseguição e no desgaste do Partido dos Trabalhadores. Então, a profissionalização da mentira explica apenas uma parte, e até pouco significativa, da situação que vivemos hoje. O que está na raiz do impasse para a democracia e para as forças populares do nosso país é, na verdade, a agudização do conflito de classes e a decisão de alguns setores sociais por aumentar a exploração do trabalho e, para isso, por abandonar qualquer mísero compromisso com a democracia.

Explicar a ascensão do bolsonarismo e a derrota da esquerda em 2018 por meio da profissionalização da mentira e do domínio que aquele campo conquistou das redes sociais seria o mesmo que atribuir à rádio e ao cinema a responsabilidade pela chegada do nazifascismo ao poder no início do Século XX. É claro que o uso dos meios de comunicação de massa e a mentira marcaram e marcam tanto o nazifascismo do passado como o movimento neofascista que tem mobilizado a extrema-direita hoje, contudo, essas variáveis sozinhas não explicam nem a existência desses movimentos, tampouco o relativo sucesso que tiveram nas respectivas realidades nacionais. Essa calibragem é necessária para dizer que a profissionalização da mentira não é o problema da política de nosso tempo, tampouco o seu enfrentamento é o grande desafio de nosso campo.

Reconhecer isso está longe de assumir que as fake news não são um mal a ser combatido. Ao contrário, a profissionalização da mentira está a serviço de um campo da disputa política. Ela é instrumental para o espectro que não escondeu em nenhum momento o pouco apreço pela democracia ao exaltar o torturador da presidenta Dilma. A profissionalização da mentira está a serviço do projeto autoritário do bolsonarismo. Então, a disseminação da mentira e os danos causados por ela não têm um sujeito oculto, ao contrário, quem os promovem são aqueles que compõem o bolsonarismo e o grupo de empresários que decidiu financiar uma organização criminosa para garantir a ascensão da extrema-direita e a execução da agenda de aumento da exploração do trabalho.

Como a CPMI das Fake News revelou, esses atores montaram uma verdadeira organização criminosa, no sentido jurídico do termo, que conta com: a) um núcleo político, responsável por decidir a quem atacar, b) um núcleo operativo, cujo papel é o de produzir materiais de disseminação de ódio e mentira, c) um núcleo financeiro, que patrocina essa operação. E ela pode ser caracterizada como criminosa porque passou a existir para cometer crimes, afinal, esses núcleos praticam: crime de calúnia, quando alegram que uma autoridade cometeu um crime que não existiu; crime contra a saúde pública, ao mentirem sobre tratamento da COVID-19 com objetivo de legitimar a irresponsabilidade do presidente da República; crime contra o Estado Democrático de Direito, ao convocarem para atos golpistas que pedem o fechamento de poderes. Essa organização criminosa se estruturou nas eleições de 2018 com o objetivo de burlar as leis eleitorais e levar à presidência o projeto de morte do neofascismo bolsonarista. Para isso, praticaram caixa 2, como a CPMI das Fake News revelou ao constatar que uma empresa de disparo em massa, cuja contratação não consta na prestação de contas de Bolsonaro em 2018, chegou a disparar uma conhecida mentira contra a candidatura de Fernando Haddad.

Apesar das evidências de funcionamento dessa organização criminosa, o sistema de justiça foi bastante leniente com essa profissionalização da mentira e com essa estruturação de um sistema de financiamento ilegal de campanha política. O PT e diversos outros partidos impetraram no TSE algumas ações judiciais solicitando a investigação dessa operação em 2018. Essas ações passaram os anos de 2019 e 2020 praticamente sem nenhuma movimentação relevante por parte do relator do caso (corregedor eleitoral). Precisou o sistema de justiça passar a ser alvo dessa organização criminosa para ele começar a agir, e, ainda assim, de forma condescendente com os crimes praticados contra o PT.

A profissionalização da mentira e sua instrumentalização pela extrema-direita tem efeitos deletérios sobre a disputa política. O principal deles é a ocultação dos temas que realmente importam para a vida do povo. Ao invés de debatermos a piora das nossas vidas, provocada pela decisão da direita brasileira de ampliar a exploração do trabalhador e da trabalhadora, o tema passa a ser, por exemplo, se Manuela D’Ávilla usou ou não camiseta com dizeres “Jesus é trans”. Além disso, ela produz um obstáculo considerável na elaboração de políticas públicas, tendo em vista que medidas necessárias para a melhora da vida do povo, como políticas de combate à homofobia, são facilmente distorcidas pelo funcionamento dessa organização criminosa.

Não há bala de prata contra a consolidação da profissionalização da mentira como tática ordinária da extrema-direita. Uma primeira medida urgente para que a mentira volte a ter pernas curtas é melhorar a qualidade de acesso à internet do povo brasileiro. A maior parte de nosso povo tem acesso à internet por meio do celular assegurado por plano de dados com franquia que limita a navegação pelo ecossistema que permitiria algum esforço de checagem das notícias recebidas. Então, é improvável que esse cenário seja revertido se o acesso amplo à internet, e não só a alguns aplicativos (ao contrário do que boa parte dos planos ofertados hoje garante), não for colocado como um dos principais objetivos das políticas públicas.

Também é necessária uma reforma da legislação no sentido de tornar mais sofisticados os sistemas de combate a esse tipo de conduta criminosa. A solução legislativa para os problemas que temos hoje passa por dar mecanismos para assegurar a celeridade nas investigações e na atuação do sistema de justiça para impedir a intervenção da mentira na disputa política. Também é importante dar mais poder aos partidos políticos, uma das vítimas dessa organização criminosa, para atuar contra a profissionalização da mentira. Além disso, é importante uma melhor regulação sobre as plataformas, aumentando a transparência das atividades de moderação de conteúdo feitas pelas redes sociais.

Mas não resolveremos esse problema contando apenas com a atuação das instituições e das empresas de redes sociais. As organizações populares precisam se perguntar: o que aconteceu para que as mentiras pudessem ser disseminadas de forma tão fácil na classe trabalhadora? Só respondendo a essa pergunta e nos aproximando do povo será possível criar vacinas para que a classe trabalhadora não se transforme em campo fértil para a disseminação das mentiras.

Contudo, nada disso será resolvido se também não nos debruçarmos sobre o problema clássico que está no coração do tema que estamos debatendo aqui: o abuso do poder econômico na política. O que aconteceu de diferente a partir de 2018 foi que o poder econômico tinha uma certeza: não estavam dispostos a correr risco em ter um projeto popular governando mais uma vez este país! Não estavam porque tinham como projeto principal aumentar seus lucros por meio da exploração do trabalho! E, para isso, optaram por financiar e estruturar uma organização para difundir mentiras e ataques à democracia.

Isso precisa ficar bem frisado: o principal fator que tornou a desinformação um risco para a democracia foi o fato de que o poder econômico decidiu transformar ela em sua principal tática política! Por isso que precisamos ter em mente quem são esses sujeitos, quem são essas pessoas que financiam e compactuam com essa rede de mentiras, que põem em risco a vida do nosso povo de diversas formas: seja através das mentiras em si, pautadas na anticiência e no ódio aos adversários, seja por dar sustentação a esse governo federal assassino e criminoso que está acabando com o nosso país. Para a mentira voltar a ter pernas curtas, é preciso ganharmos força em um campo de batalha bem conhecido: na luta de classes.

*Magnus Henry da Silva Marques é doutorando em Direito pela UnB e professor universitário.

Edição: Vivian Virissimo

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