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A Malufada de Ibaneis

A doação, em agosto de 2020, de 22,5 mil equipamentos de proteção individual (EPIs), usados por profissionais de Saúde, ao município piauiense de Corrente, onde o governador Ibaneis Rocha passou a infância, e agora a alocação de R$ 7 milhões do “orçamento paralelo” para três cidades piauienses pode ter motivações que vão além de uma preocupação com municípios mais pobres do Brasil.

O nome Ibaneis é uma variação de Ibañez, termo castelhano, originário no Latim e que significa, segundo dicionários epistemológicos, o adaptado, aquele que se adaptou. Em seu primeiro mandato como político, o governador do Distrito Federal, Ibaneis Rocha, parece ter se adaptado rapidamente às regras do campeonato. Esta semana, a imprensa trouxe a público que o governador do Distrito Federal destinou a municípios do Piauí cerca de R$ 7 milhões, de R$ 15 milhões que lhe foram aquinhoados pelo Ministério da Integração Regional. Dinheiro para aplicar em melhorias de rodovias, escoamento e aquisição de maquinários. Que motivos levariam um político de um estado a deixar de investir na sua própria base e levar bens e recursos para outro Estado? Para se obter a resposta, talvez o caminho seja voltar no tempo. Afinal, o mundo da política dá voltas.

É dificil saber exatamente quantas ambulâncias Paulo Maluf distribuiu Brasil afora. Há quem fale em centenas e até em mihares. No facsimile acima, em um só decreto ele distribuiu dezenove ambulâncias para cidades de Sergipe, Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro, Pará, Pernambuco e Piauí.

Na década de 80, quando o Brasil vivia os estertores da ditadura militar, o ex-governador e ex-prefeito de São Paulo, Paulo Maluf, então filiado à Arena, o partido de sustentação dos militares, montou sua estratégia para chegar à presidência da República fazendo doações a Estados e municípios não paulistas, notadamente, de ambulâncias.

Maluf, com essa estratégia, tinha interesse em ganhar a simpatia de prefeitos e governadores para, primeiro, ser escolhido no âmbito da Arena candidato à sucessão do general João Figueiredo. Com essa tática, se sobrepôs às ambições de Hélio Beltrão, então ministro da Previdência Social, Murilo Macedo, ministro do Trabalho, o coronel Mário Andreazza, ministro do Interior e o próprio vice-presidente de Figueiredo, Aureliano Chaves. Maluf venceu a convenção situacionista e acreditava que as benesses viabilizaria o apoio dos integrantes do colégio eleitoral que iriam escolher o futuro presidente – já que a emenda das Diretas Já não vingou no Congresso.

O colégio eleitoral era formado pelos parlamentares federais e delegados de cada Assembleia Legislativa dos Estados. Daí a importância para Maluf da sua diplomacia eleitoral adoçada com ambulâncias e outros regalitos. A tática não deu certo. A Arena rachou, nasceu o PDS e o PFL, e desse racha saiu o apoio necessário à vitória de Tancredo Neves, candidato do MDB, onde hoje está Ibaneis Rocha.

Presentes para o Piauí

Em agosto de 2020, foram doados dos estoques do GDF 22,5 mil equipamentos de proteção individual (EPIs), usados por profissionais de saúde, ao município piauiense de Corrente, localizado a 860 quilômetros de Brasília e é onde o governador Ibaneis Rocha passou a infância. Foram dez mil pares de luvas, 12.560 máscaras equivalentes à N95 e 250 litros de álcool gel 70%. O valor do presente: R$ 106,2 mil.

A doação, em agosto de 2020, de 22,5 mil equipamentos de proteção individual (EPIs), dos estoques do GDF, ao município piauiense de Corrente, localizado a 860 quilômetros de Brasília e é onde o governador Ibaneis Rocha passou a infância, pode ter motivações que vão além de uma preocupação com municípios mais pobres do Brasil.

Como já demonstrado em ação popular, impetrada no Tribunal de Justiça do DF, pelo advogado Marivaldo Pereira, a doação foi materializada antes mesmo da conclusão do processo autorizando retirar material de proteção dos profissionais de Saúde da rede pública do Distrito Federal. O valor estimado não é expressivo para o nível de posses de Ibaneis.

Em finais de abril, em decisão é liminar, a juíza Sandra Cristina Candeira de Lira, Titular da 6a Vara da Fazenda Pública do Distrito Federal determinou o bloqueio de R$ 106,2 mil das contas bancárias do governador Ibaneis Rocha e de outros três gestores. O valor se refere à doação de cinco mil pares de luvas tamanho P, cinco mil pares de luvas tamanho M; 12.560 máscaras de proteção equivalente à N95 e 250 litros de álcool gel 70%. Ibaneis recorreu, no processo que apura possíveis irregularidades na doação de Equipamentos de Proteção Individual (EPIs) ao município de Corrente (PI). Em 4 de maio, a desembargadora do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT), Ana Cantarino, negou o recurso de Ibaneis que pedia a suspensão.

Ibaneis recorreu ao Superior Tribunal de Justiça e, no dia 13 de maio, em decisão monocrática, o presidente do STJ, ministro Humberto Martins, suspendeu o bloqueio. Em seu despacho, afirmou que o governador possui discricionariedade administrativa para o exercício do mandato para o qual foi eleito. “Nesse sentido, a doação de bens para outros entes federativos é legítima, desde que compatível com a legislação aplicável”, comentou.

Nesse mesmo dia, veio a público pelas páginas do jornal O Estado de São Paulo, que Ibaneis havia realizado mais uma boa ação para com municípios do Piauí.

A reportagem afirma que o governador do Distrito Federal se beneficiou do suposto “orçamento secreto” – estimado em R$ 3 bilhões pra ser operado em um esquema paralelo -, criado pelo presidente Jair Bolsonaro e apelidado no meio político de “Bolsolão”.

Segundo o noticiário, um documento do Ministério do Desenvolvimento Regional mostra que o governador pôde direcionar R$ 15 milhões da pasta para obras e compras de veículos e máquinas, e que uma parte desse dinheiro, teoricamente destinado à aplicação no DF, foi repassado por ele ao Piauí, estado onde o governador cresceu. O GDF reconheceu que os recursos deveriam ser utilizados, via Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf), em obras de pavimentação, escoamento e aquisição de carros, e para despesas administrativas. O governador justifica o repasse de parte dos R$ 15 milhões “a algumas prefeituras do Piauí” pelo fato do GDF não dispor de projetos próprios onde pudesse investir a soma.

Ao analisar a justificativa de Ibaneis, alguns analistas questionam: não faltam vias a serem pavimentadas no Distrito Federal? Todo o Distrito Federal está dotado de estrutura de escoamentos, não há alagamentos em canto algum? À frota oficial de veículos está completa, nada falta?

Mesmo se a resposta para todos esses quesitos fosse sim, o GDF ainda teria como melhor opção investir esses recursos nos municípios do Entorno do DF, onde moram cerca de dois milhões de pessoas, a grandíssima maioria trabalhadora na Capital Federal. Assim ele ajudaria a diminuir as assimetrias existentes.

R$ 7 milhões para três cidades

Segundo a Revista Fórum, dos R$ 15 milhões ofertados pelo bolsolão a Ibaneis, R$ 7 milhões ele teria alocado em municípios do interior do Piauí, em localidades do extremo sul do Estado, onde, segundo a revista, “ele tem extensas fazendas de gado”. O noticiário fala que as verbas foram usadas para a compra de máquinas agrícolas e tratores. Segundo o jornal Estado de São Paulo, de maneira geral, sem especificar essa verba destinada ao Piauí, teria se verificado superfaturamento nos preços desses tratores.

Pelo detalhamento publicado pela Fórum, Ibaneis destinou R$ 4,7 milhões para Sebastião Barros (PI), “município onde fica a sede de uma de suas fazendas. O recurso foi para recuperar estradas, comprar caminhão e trator, construir ponte e instalar poste de energia. O dinheiro chegou no ano eleitoral de 2020, quando o governador tentava reeleger um aliado para a prefeitura”.

“Já para a vizinha Corrente (PI) – continua a Revista Fórum -, município de sua família, onde passou a infância, Ibaneis enviou R$ 1,4 milhão para ‘execução de serviços de recuperação de estradas vicinais’, e para Oeiras (PI), mais no centro do Estado, R$ 428 mil para comprar tratores, roçadeiras, caminhões-tanque e batedeiras de cereais. Há, ainda, mais R$ 361 mil para a estrutura da Codevasf no Piauí com a compra de tratores e carros 4×4.”

Ainda segundo a revista, Ibaneis descartou a hipótese de ter beneficiado suas propriedades naquele estado – a revista Época revelou que ele possui 14 mil hectares de terra -, pois não teria ocorrido “qualquer benefício em áreas próximas à fazenda do governador.” O governador cria cavalos quarto de milha, gado nelore e caprinos. Ibaneis justificou seus atos, no estilo Maluf, ao dizer em entrevista que é “um político que saí da esfera do DF”, com “projeção nacional, inclusive com apoio a diversas prefeituras de diversos estados do Brasil”.

Dentre os três senadores do Distrito Federal, Izalci Lucas (PSDB) compartilhou vídeo cobrando explicações de Ibaneis Rocha. Leila do Volei (PSB) postou em suas plataformas sociais um card com a colagem das manchetes sobre Ibaneis. ” Ibaneis é governador do DF ou do Piauí? ” a pergunta que não quer calar dentre os parlamentares.

Senadores

Essa, contudo, não é bem a leitura feita por parlamentares da oposição e por analistas políticos e juristas sobre o episódio.

Toda a bancada de senadores do DF reagiu negativamente à gestão orçamentária de Ibaneis. Presidente da Comissão de Fiscalização, o senador Reguffe (Podemos) diz não entender a lógica do governador. “Com tanto problema no DF, com tanta coisa que precisa ser feita aqui, principalmente na saúde, qual a lógica de mandar recursos para o Piauí?

O senador Izalci Lucas (PSDB), que está de olho na cadeira de Ibaneis, divulgou nas redes sociais vídeo, no qual afirma que “o governador demonstrou mais uma vez a sua falta de compromisso com a população de Brasília” e que ele tratou verbas públicas como se fossem suas. “Afinal de contas, governador, sua prioridade é o DF ou o Piauí? Eu espero que nas próximas eleições o senhor possa concorrer a governador do Piauí e não do DF” – ironiza Izalci.

Mesma indagação fez a senadora Leila do Vôlei (PSB), outra potencial postulante ao GDF. “A inclusão do nome do governador Ibaneis Rocha nesse escândalo envolvendo o uso de verbas de um orçamento secreto, como moeda de troca para o governo federal angariar apoio político, tem um caráter duplamente grave. Primeiro pelo envolvimento na situação em si, que deverá provocar a atuação dos órgãos de fiscalização. Segundo, porque Ibaneis destinou R$ 7 milhões do suposto orçamento para obras em municípios do Piauí onde ele cria gado. O dinheiro de impostos não pode ser utilizado como se fosse recurso privado. O governador não tem o direito de agradar amigos usando algo que não é seu. A pergunta que não quer calar é: Ibaneis é governador do DF ou do Piauí? – disse Leila que publicou na sua conta Instagram um card com as manchetes da Imprensa com o episódio”.

Nas redes sociais, em grupos de cidades mais desfavorecidas, onde esses R$ 7 milhões poderiam fazer a diferença, populares reclamam do silêncio de alguns deputados federais. “Cadê a nota de repúdio das deputadas Celina Leão (PP), Flávia Arruda (PL), Júlio César (Republicanos) referente ao dinheiro da cota do orçamento destinado para o Piauí para compras de tratores?” – pergunta um morador da Estrutural. Paula Belmonte (Cidadania) até que mostrou indignação, mas não entendeu que o dinheiro era carimbado para infraestrutura e disse que a verba poderia ter sido investidas me vacinas.

Na Câmara Legislativa, o deputado distrital Leandro Grass (Rede) reagiu. “Esse escândalo precisa ser investigado – diz – que tipo de relação é essa entre o governador do DF e o governo federal, em que ele tem poder para indicar recursos? Esse orçamento foi fiscalizado pelos órgãos de controle? Ainda mais para áreas em que ele possui fazendas de gado. Há fortes indícios de irregularidades.”

“A promiscuidade de interesses do atual governador do DF com o uso de dinheiro público indica dois equívocos: um ético e outro legal! Ainda que distantes, as eleições de 2022 cobrarão dele a sua completa inação por Brasília e seu permanente comprometimento com pautas pessoais” – comenta o advogado e analista político, Mellilo Dinis.

Trechos da representação ao Ministério Público Federal impetrada pelo deputado distrital Fábio Félix (Psol)

Representação

Provavelmente, Ibaneis Rocha terá dor de cabeça muito antes das eleições. Em representação ao Ministério Público Federal, o distrital Fábio Félix (Psol) requer que aquele órgão verificar se, “nas negociações de recursos orçamentários federais, o Governador do Distrito Federal se pautou pela defesa do interesse público, especialmente do povo do Distrito Federal, que o elegeu”.

Para o distrital, o governador não respeitou a Lei de Improbidade Administrativa, notadamente seu artigo 10º que diz constituir ato de improbidade administrativa que causa lesão ao erário qualquer ação ou omissão, dolosa ou culposa, que enseje perda patrimonial, desvio, apropriação, malbaratamento ou dilapidação dos bens ou haveres das entidades da administração direta, indireta ou fundacional de qualquer dos Poderes da União, dos Estados e do Distrito Federal. O inciso XI do mesmo artigo também considera ato de improbidade liberar verba pública sem a estrita observância das normas pertinentes ou influir de qualquer forma para a sua aplicação irregular.

O deputado distrital pede, assim, que o MPF investigue os fatos, por meio de inquérito civil; que seja oferecida ação penal contra o Governador do Distrito Federal, pela prática dos crimes definidos nos artigos. 319, 321 e 332 do Código Penal e que seja apurada a responsabilidade do governador do Distrito Federal por ato de improbidade administrativa, nos termos da Lei nº 8.429/1992.

“Queremos saber que tanto interesse o governador tem no Piauí, pois sabemos que de povo ele não gosta” – salienta Marivaldo Pereira que já o processa pela doação de equipamentos de proteção. Nesse quadro todo, é preciso saber se Ibaneis agiu como as mesmas estratégias de Maluf que, com as benesses concedidas alhures com recursos do Distrito Federal, pretendia ampliar sua base política para voos políticos mais altos; ou, a exemplo de fraudes no orçamento identificadas, em 1993, pela CPI do Orçamento, o objetivo era valorizar suas próprias propriedades. Dúvidas que poderiam ser muito bem esclarecidas pela Comissão de Fiscalização do Senado, presidida por Reguffe, ou por uma CPI na Câmara Legislativa. Resta saber se a classe política vai querer meter o dedo nessa cumbuca.


Chico Sant’Anna

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