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Feminicídios deixaram 145 órfãos em 6 anos no DF: ‘Não consigo falar sobre ela, porque desabo’, diz irmã de vítima


Segundo a Secretaria de Segurança Pública do DF, 116 mulheres foram vítimas de feminicídio nos últimos seis anos, sendo que 85% foram mortas por alguém com quem tinham um relacionamento afetivo, antigo ou atual. Na capital do país, o feminicídio deixou órfãos 145 crianças e adolescentes.

Confira na matéria do G1:

Aos 4 anos de idade, a filha de Shirley Rúbia Gertrudes, de 39 anos, viu o pai matando a mãe, dentro de um hospital, quando o casal acompanhava a criança em uma consulta médica. Naquele dia, a menina e o irmão adolescente passaram a vivenciar o luto que impacta 145 órfãos que o feminicídio deixou nos últimos seis anos no Distrito Federal, segundo dados da Secretaria de Segurança Pública (SSP).

A tia dos meninos, Cristina Gertrudes, conta que até hoje “é difícil tocar no assunto”, até mesmo em família. “Não consigo falar sobre ela, porque desabo”, diz.

Especialistas ouvidos pelo G1 afirmam que “a morte como um assunto proibido é uma das maiores dificuldades” entre os familiares, e que os órfãos precisam de acompanhamento psicológico. Em Brasília, o serviço pode ser buscado de forma gratuita (saiba mais abaixo).

Um levantamento da pasta mostra que foram 116 vítimas de feminicídio entre março de 2015 a março de 2021, 25% delas foram mortas pelo pai de seus filhos.

Feminicídio no DF: veja registro de casos em seis anos de vigência da lei
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Feminicídio no DF: veja registro de casos em seis anos de vigência da lei

A vida após o feminicídio

Depois da morte de Shirley, o filho mais velho dela foi quem assumiu o papel de pai da irmã caçula. Aos 18 anos, ele e a menina moram em uma casa ao lado da residência da avó, que presta apoio aos netos.

“Foi uma escolha dele. Toda a vida quem cuidava da irmã era ele mesmo. Muito guerreiro”, diz a tia.

Cristina diz que Shirley é uma memória constante para a menina. “Teve um dia que ela estava aqui em casa, tomando um sorvete, e falou: ‘olha, era assim que minha mãe tomava sorvete’, imitando ela”, lembra.

Shirley Rúbia, vítima de feminicídio no DF  — Foto: Facebook/Reprodução

Shirley Rúbia, vítima de feminicídio no DF — Foto: Facebook/Reprodução

Para Cristina, a dificuldade de falar sobre a perda é maior com a sobrinha pequena. No entanto, com o adolescente isso também ocorre “às vezes”.

“Tem dia que a gente conversa. Tem dia que a gente tá mais forte, tem dia que não”, diz a tia.

Maturidade precoce

Parentes e amigos de Shirley se uniram para pagar terapia aos órfãos. A tia conta que a ajuda só é possível porque a irmã era muito querida.

A vítima participava de ações sociais e tinha muitos amigos. “Ela ajudou muita gente, tanto que o que ela plantou os filhos dela está colhendo hoje”, diz.

A família está entre os que não foram orientados sobre o programa Pró-vítima, do Governo do Distrito Federal. Um trabalho de apoio psicológico para os filhos das vítimas de feminicídio.

Um dos psicólogos que atendem crianças e adolescentes no Pró-vítima é Ailton Sousa. Segundo ele, o processo de perda da mãe, em um crime de feminicídio, carrega “dois lutos”.

“Tem o luto da perda e o da decepção, porque na maioria das vezes quem cometeu esse crime era a figura de proteção [o pai], que acaba violando essa imagem. O luto é pela falta da mãe e a revolta de saber quem foi”, diz o psicólogo.

Fotos de Shirley Rúbia Gertrudes na entrada da capela do Cemitério Campo da Esperança, da Asa Sul, em Brasília — Foto: Afonso Ferreira/G1

Fotos de Shirley Rúbia Gertrudes na entrada da capela do Cemitério Campo da Esperança, da Asa Sul, em Brasília — Foto: Afonso Ferreira/G1

Segundo a Secretaria de Segurança Pública, entre as 116 vítimas de feminicídio nos últimos seis anos, no Distrito federal, 85% foram mortas por quem tinha um relacionamento afetivo, sendo ex ou atual. Estão entre eles, homens que não eram pais biológicos, mas estavam no papel de padrasto.

“Uma criança muito nova absorve menos [a decepção], mas adolescentes têm uma revolta muito grande”, diz o psicólogo.

Ao mesmo tempo, segundo Ailton Sousa, os filhos acabam amadurecendo mais rápido. “A vida obriga eles a ter uma estrutura que foge um pouco da maturação, se sentem obrigados a proteger os irmãos, se apegam a essa responsabilidade”.

Medo de ‘monstros’

Ailton conta que uma das pacientes adolescentes que atendeu nos últimos anos, que também teve a mãe morta pelo pai, mal se referia a ele.

“Ela não conseguia falar ‘pai’, ela falava ‘monstro'”, diz o psicólogo.

“A psicoterapia entra no processo de ressignificar o que aconteceu. Um dos riscos [se não houver acompanhamento] é a pessoa crescer com problemas de relacionamento, principalmente meninas. Elas entram em um estado de alerta, têm medo de que possa acontecer novamente na vida delas”, explica.

Para o psicólogo, a melhor forma de superar o luto é “viver o luto”. Falar sobre a morte faz parte disso, ponta.

“Tem essa questão meio reprimida do luto. Quando é feminicídio, a primeira reação comum é não falar. As pessoas encaram a morte como um assunto proibido, a maior dificuldade é justamente essa. A família acha que pode ofender e a pessoa leva o luto para toda a vida”, diz Ailton.

Selo home Monitor da violência mulheres — Foto: Wagner Magalhães/Arte G1

Selo home Monitor da violência mulheres — Foto: Wagner Magalhães/Arte G1

Como falar?

Questionado sobre a melhor forma de como falar sobre a morte com as crianças, o psicólogo destaca que “cada caso é um caso”, e pode ter suas particularidades. “Tem famílias que, quando um filho é adotado, por exemplo, espera ele crescer para falar. Mas uma criança, filha de vítima de feminicídio é diferente, não dá para esperar”, diz Ailton.

“Tem gente que fala que a mãe viajou, mas vai voltar. O problema disso é deixar o sentimento de que vai voltar – e não vai”.

Ailton explica que é preciso ter cuidado, mas sempre falar a verdade. “A gente usa um tom literário. Pode dizer que ela foi para o céu, no caso de uma família religiosa, de um jeito que ela entenda que não está sendo enganada, sem omitir a informação”, orienta o psicólogo.

Direito à orientação psicológica gratuita

Atendimento em unidade do Pro-vítima, no Distrito Federal  — Foto: TV Globo/Reprodução

Atendimento em unidade do Pro-vítima, no Distrito Federal — Foto: TV Globo/Reprodução

Uma pesquisa realizada pelo Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT), com parentes de 21 mulheres mortas entre 2016 e 2017, mostrou que apenas quatro foram informados pelo sistema de Justiça sobre o direito ao acompanhamento psicológico dos dependentes das vítimas.

O promotor de Justiça Thiago Pierobom destaca que “é dever do estado promover a proteção dos familiares das vítimas”. O apoio não ocorre apenas após o feminicídio, mas também antes, quando a mulher é vítima de qualquer tipo de violência e também tem direito ao acompanhamento psicológico.

“Muitos dos familiares sabem do histórico de violência e podem ser muito úteis”, diz o promotor.

Pierobom, que acompanhou a situação de famílias após os crimes, nos últimos anos, destaca que o apoio psicológico é importante porque, em alguns casos, até os irmãos são separados. “Às vezes a criança fica com um tio que só pode ficar com um deles, o irmão fica com outro familiar. É uma perda tripla: da mãe, do pai – que na maioria das vezes é preso – e, às vezes, do irmão”, pontua.https://tpc.googlesyndication.com/safeframe/1-0-38/html/container.html

Como ter acesso ao Pró-vítima?

O Pró-vítima, programa coordenado pela Secretaria de Justiça e Cidadania do Distrito Federal (Sejus), oferece acompanhamento psicológico de 13 sessões individuais, em média, aos órfãos do feminicídio ou vítimas de violência doméstica. O prazo pode ser prorrogado, a depender da avaliação do profissional.

Para ter acesso, segundo a Sejus, basta “a vítima ou alguém de sua família procurar qualquer dos núcleos de atendimento do Programa”. Durante a pandemia do novo coronavírus, o trabalho pode ser feito remotamente, pela internet, ou pessoalmente. Veja os endereços abaixo:

  • Brasília: Estação Rodoferroviária, Ala Central, Térreo – Contato: 2104-4289 / 4288 / 99250-8975
  • Ceilândia: EQNN 5/7, área especial – Ceilândia Norte – Contato: 2104-1480/ 99245-5207
  • Guará: QELC Alpendre dos Jovens, Lúcio Costa – Contato: 99276-3453
  • Paranoá: Quadra 5, Conjunto 3, Área Especial D, Parque de Obras – Contato: 3369-0816 / 99173-2281
  • Planaltina: Fórum Desembargador Lúcio Batista Arantes, Salas 111/114 – Contato: 3103 2405/ 99276-5279
  • Taguatinga: Administração Regional, Praça do Relógio – Contato: 3451-2528 / 99168-0556

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