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Como os Estados Unidos arruinaram suas universidades públicas

por Pedro Fiori Arantes

Enquanto no Brasil o governo federal pretende que as universidades terceirizem sua gestão e mesmo as atividades-fim sob comando de organizações privadas (OS), passem a depender cada vez mais de fundos de mercado, dirijam seus esforços para o empreendedorismo e ampliem a arrecadação própria com doações, cobranças de taxas e, futuramente, de mensalidades (como já demanda o Banco Mundial em seu último documento sobre o país), nos Estados Unidos, onde tudo isso já foi feito, o resultado foi amplamente negativo. A avaliação é de Christopher Newfield, professor da Universidade da Califórnia (a maior e mais prestigiosa universidade pública norte-americana) que lançou recentemente o livro The Great Mistake: How We Wrecked Public Universities and How We Can Fix Them (“O grande erro: como arruinamos as universidades públicas e como podemos recuperá-las”, Johns Hopkins University Press, 2016). Na entrevista a seguir, ele demonstra que a política neoliberal para as universidades norte-americanas foi também lá, no modelo original, um desastre.

LE MONDE DIPLOMATIQUE BRASIL – Nas últimas décadas, enfrentamos um discurso dominante que colonizou o senso comum ao afirmar que as universidades devem fazer “entregas rápidas”, focadas em “resultados”, ser cada vez mais concebidas de acordo com modelos de negócios, produzir conhecimento como mercadoria e educar profissionais para ganhos privados. Alguma parte da ideia de “universidade” se perdeu ao longo do caminho?

CHRISTOPHER NEWFIELD – Isso não se perdeu, foi deliberadamente enterrado. As universidades fazem várias coisas que nenhuma outra instituição faz. Elas criam conhecimento como parte do mesmo processo pelo qual o espalham – a pesquisa é tão importante quanto o ensino. A pesquisa e o ensino universitário são autodirecionados e, quando as universidades estão funcionando corretamente, são exemplos de uma autogestão que é muito difícil de alcançar em um local de trabalho comum. O resultado desejado é triplo: o desenvolvimento pessoal-intelectual combinado do aluno (o que a tradição teórica prussiana chamou de Bildung); um novo conhecimento sobre todos os tópicos do planeta; e a prática do conhecimento como um processo totalmente social. Esta última não é bem compreendida, mas coloca o aprendizado e a pesquisa fora das estruturas de mercado. Nos últimos cinquenta anos, as empresas e seus aliados políticos tentaram controlar as universidades, por razões que não são tão diferentes das da Igreja Católica ou do Estado bonapartista em outras épocas.

Você apresenta uma imagem impressionante do desmantelamento das universidades públicas dos Estados Unidos e sua transformação em meros prestadores de serviços, orientada para o mercado. O que motivou essa transformação e em que momento histórico o ataque às universidades públicas dos Estados Unidos e a sua missão pública fundamental começou?

O motivo, em uma frase, era bloquear as ameaças aparentes das universidades aos poderes econômicos e políticos estabelecidos. Um momento decisivo foi a campanha de Ronald Reagan para governador da Califórnia em 1966. Seu oponente, o então ocupante do cargo Pat Brown, era um progressista popular do New Deal que construía obras e serviços públicos para pessoas comuns (brancas). Eleitores gostam de escolas, rodovias, hospitais, pontes e faculdades gratuitas; Reagan decidiu que não poderia concorrer contra Brown, mas poderia concorrer contra manifestantes estudantis de esquerda na UC Berkeley, e foi isso que ele fez. Ele derrotou Brown, em parte, apresentando as universidades de Brown como lugares que encenavam ataques a norte-americanos respeitáveis e tementes a Deus, que reverenciavam o sistema de livre-comércio. Um segundo evento importante ocorreu em 1970, quando o futuro juiz da Suprema Corte, Lewis Powell, então um moderado juiz republicano da Virgínia, enviou um longo memorando à Câmara de Comércio, pedindo às empresas que lutassem contra o sentimento anticapitalista alojado nos campi das universidades. Suas sugestões para financiar pesquisadores e think tanks que criariam e difundiriam visões conservadoras ajudaram a construir as redes políticas conservadoras que ainda dominam a política local.

Em seu livro, você diz que, durante 25 anos, trabalhou em um lugar privilegiado, testemunhando o esforço contínuo de tornar a universidade pública mais parecida com uma empresa. Você pode explicar melhor como isso aconteceu e o preço social pago por essa privatização indireta?

Nas décadas de 1980 e 1990, os gerentes das universidades aceitaram o novo argumento de consenso – tanto dos conservadores de Reagan quanto dos centristas de Clinton – de que bens como o ensino superior tinham benefícios fundamentalmente privados e não públicos, devendo assim ser pagos em particular. Quando comecei a trabalhar em comitês de planejamento e orçamento depois de 2000, fiquei surpreso com a perda de confiança no modelo de financiamento público e com a fé cega de que os contratos de filantropia e pesquisa tornariam as universidades públicas bem-sucedidas como suas contrapartes privadas. Isso criou dois problemas. A primeira foi que as universidades enfraqueceram sua reivindicação pelos altos níveis de financiamento público de que desfrutavam anteriormente. Se a graduação da universidade serve para aumentar os salários individuais, em vez de promover a sociedade, o público não precisa pagar o custo da educação por meio de impostos. Essa visão está incorreta: a maioria dos efeitos do ensino superior é não pecuniária, ou social, ou ambos. O segundo problema é que as universidades não ficam realmente ricas com fundos privados. Elas se tornam dependentes da renda proveniente da mensalidade do estudante, que agora atingiu seu limite. E elas perdem dinheiro com subsídios de pesquisa patrocinados e ganham muito pouco para operações gerais da filantropia. O preço social assume várias formas: as universidades têm problemas financeiros, os estudantes pagam demais e assumem dívidas educacionais e a sociedade recebe menos benefícios não monetários porque o ensino e a pesquisa gravitam em torno de assuntos monetizáveis. Observe também que os estudantes que possuem altas dívidas educacionais desejam uma renda mais alta para pagá-las. Eles são menos capazes de seguir seus compromissos políticos ou éticos no serviço social, uma vez que os salários mais baixos desses empregos dificultam o pagamento da dívida da universidade.

A missão e o amplo espectro de capacidades humanas da universidade estão diminuindo cada vez mais para formar Homo economicus, ou seja, animais de mercado?

A pesquisa é um bem público básico. Uma nova ideia ou descoberta não tem valor de mercado. Isso ocorre apenas mais tarde, com o desenvolvimento comercial, se é que ocorrerá. Descobrir algo novo não pode ser incentivado pela expectativa de um retorno de mercado incerto, remoto ou inexistente. As universidades existem em grande parte para apoiar a exploração que não dará dinheiro. E ninguém pode ser um bom pesquisador enquanto opera como Homo economicus: o “animal de mercado” sempre busca retornos monetários, e não benefícios não monetários ou que agregam à multidão, e não ao pesquisador ou empresa. Isso vale especialmente para as disciplinas de artes e humanas, nas quais um relato melhor da relação entre escravidão e capitalismo na década de 1820 tem um valor intrínseco e provavelmente político, mas não traz dinheiro. As disciplinas de engenharia e ciências aplicadas são exceções parciais. Mesmo assim, o dinheiro real será ganho por laboratórios corporativos focados no desenvolvimento de produtos, não nas universidades que exploram conceitos fundamentais.

Ainda assim, você demonstra que é uma falácia pensar que as universidades são apoiadas por recursos corporativos. Elas ainda são amplamente subsidiadas pelo governo, mensalidades e patrocínios. Sendo assim, por que o mercado está definindo cada vez mais as premissas e os resultados do ensino e das pesquisas?

Um dos mitos da privatização a meio caminho era que, se os acadêmicos fizessem um trabalho melhor na comercialização de suas pesquisas, o dinheiro corporativo chegaria. As universidades agora divulgam incessantemente suas start-ups e objetivos comerciais, mas o dinheiro nunca chegou. Na realidade, o financiamento corporativo representa entre 5% e 7% do total das despesas de pesquisa nas universidades norte-americanas há décadas; isso nunca substituiu os fundos federais.

Você diz que as universidades públicas dos Estados Unidos eram em sua maioria gratuitas, até começarem a cobrar uma taxa simbólica, e progressivamente esse valor aumentou de modo exponencial para compensar o investimento público em queda e as políticas de austeridade. Isso levou novamente a uma elitização do acesso. Isto é, o que pagou a conta para reduzir o orçamento público, no final, foram os próprios alunos e suas famílias, e não as empresas privadas, como é propagado?

Você está certo – os estudantes e suas famílias cobriram o financiamento público que os estados retiraram. O efeito mais visível é a dívida estudantil, que atingiu US$ 1,6 trilhão nos Estados Unidos. Aumentou muito mais rapidamente do que a renda necessária para atendê-la; mais de 10% dos empréstimos estudantis estão em inadimplência. Desde 1993, o financiamento estatal diminuiu 25% (corrigido pela inflação), enquanto as mensalidades líquidas (o valor que os alunos pagam do bolso após a aplicação de toda a ajuda financeira) dobraram. Isso sugere como a privatização é ineficiente.

Nos últimos quinze anos, nos Estados Unidos, o montante transferido para as universidades privadas passou de US$ 4,6 bilhões para US$ 26 bilhões por ano. Como o lobby privado funciona para capturar fundos públicos?

As faculdades com fins lucrativos têm as taxas mais baixas de graduação e emprego do país, com o custo mais alto para os alunos. Como no Brasil, elas existem apenas porque o governo federal concede empréstimos aos estudantes para que paguem as mensalidades para frequentá-las. O governo teve de aprovar uma regra de que não mais que 90% de sua receita total deve vir de empréstimos estudantis concedidos pelo governo, ou a maioria delas teria conseguido 100% de seu dinheiro dessa maneira. São as piores instituições de ensino superior da história. Não caia na alegação de que ampliam o acesso de estudantes pobres e de primeira geração! Como no Brasil, elas transmitem dívidas às pessoas pobres, não conhecimento.

No final do livro, você refuta as afirmações de que não haveria alternativa (Tina, no jargão neoliberal de Thatcher), de que não há mais recursos públicos e de que o que aconteceu era inevitável “como as leis da física”. Você poderia resumir aqui seus conselhos para “consertar isso”, como você diz ironicamente?

Desde que eu escrevi The Great Mistake, duas de suas principais soluções se tornaram parte do debate nacional. Muitos candidatos políticos democratas, liderados por Bernie Sanders e Elizabeth Warren, estão clamando por uma faculdade gratuita e pelo alívio da dívida estudantil. Os estudantes de baixa renda precisam ter suas despesas de moradia pagas, bem como todos os gastos educacionais. Os Estados Unidos tornaram o ensino médio gratuito no século XIX. Fizemos o mesmo para as universidades no século XX. De fato, vamos reverter o modelo de alto custo para as universidades públicas. É só uma questão de tempo.

Qual mensagem você gostaria de enviar aos brasileiros, considerando que o governo Bolsonaro está reduzindo violentamente os recursos das universidades públicas e agora está apresentando um projeto para a privatização indireta?

Três mensagens: seu modelo de ensino superior para o desenvolvimento social está certo. Seu modelo de ensino gratuito está certo, porque é a única maneira de ter acesso democrático. Se você cobra mensalidades que estabelecem barreiras de custo e restringem a alocação de bens educacionais (que é o que os mercados fazem bem), seu sistema universitário não será democrático – aumentará as desigualdades sociais em vez de reduzi-las. Segundo, não acredite que as universidades privatizadas serão mais ricas e mais estáveis: elas não serão. A maioria será mais pobre e dedicará mais dinheiro para angariar fundos. Terceiro, podemos proteger e promover as universidades como locais de formas autogovernadas de produção pós-capitalista. A ciência e os estudos avançam quando ideias e recursos são amplamente compartilhados. Dessa maneira, as universidades públicas reais esperam um mundo democrático e sustentável. Elas precisam de grande apoio e amor público.

Estão crescendo no Brasil e em outros países, que formam uma nova internacional de ultradireita, um claro projeto de poder baseado na desinformação e na intolerância, contrário ao esclarecimento e às evidências científicas e históricas. Como você entende o papel das universidades nesse contexto?

As crises políticas e ecológicas do mundo também são crises de conhecimento. Líderes autocráticos destrutivos, como Trump, Putin, Modi, Erdoğan, Duterte e Bolsonaro, abrem caminho para suas políticas insistindo que não há evidências ou argumentos válidos contra suas posições e fingem provar isso com ataques a disciplinas ou pesquisadores. Eles apresentam falsamente o fundamentalismo religioso e a civilização produtora de carbono como sendo vontade do povo, enquanto lotam as instituições com seus próprios partidários. Trump nomeia juízes que se opõem categoricamente aos direitos reprodutivos e à igualdade sexual das mulheres, assim como regulamenta uma técnica predatória de extração de energia etc. Receio que nosso presidente tenha agravado os problemas, como Bolsonaro no Brasil, ao estabelecer um ataque ao conhecimento e suas instituições. Todas essas figuras percebem que as universidades oferecem análises independentes que podem expor a intencionalidade de suas posições e oferecer conhecimento para fundamentar o dissenso em relação a elas. Essas figuras neocoloniais e antidemocráticas, portanto, se opõem à liberdade acadêmica e ao conhecimento popular ou do ponto de vista, e o fazem alegando que elas incorporam a sabedoria superior das pessoas comuns. Na realidade, ao longo dos anos, a universidade, mesmo com suas falhas, fez muito mais por pessoas comuns do que esses líderes fazem. Elas fizeram isso em parte aprendendo com a própria sociedade e oferecendo a criação de conhecimento independente a serviço de todos. Por isso, são mais importantes para as sociedades democráticas do que nunca, e espero que as universidades públicas e os movimentos sociais brasileiros agora se apoiem mutuamente, com foco e determinação.

Pedro Fiori Arantes é arquiteto e urbanista, professor da Unifesp e pró-reitor de Planejamento.

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