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A concessão da rodoviária do Plano Piloto e os equívocos

Wesley Ferro Nogueira*

É preciso reconhecer que o ano de 2020 foi bastante produtivo na discussão de temas relacionados à mobilidade urbana dentro do Distrito Federal e o GDF tem parcela importante de responsabilidade no estímulo ao debate local. Mesmo que a sociedade tenha pontuado os equívocos e apontado muitas críticas em relação à configuração defendida pelo governo nos
diversos projetos apresentados, onde se inclui o Instituto MDT, não se pode negar que a agenda da mobilidade foi movimentada durante todo o ano.
Ao longo de 2020 foram trazidos os seguintes temas para o debate público: o Projeto do VLT; o Plano de Mobilidade Ativa (PMA); a Licitação para o Sistema de Transporte Público Coletivo Complementar (STPCC/DF); o Projeto Zona Verde; o Projeto de Concessão do Metrô; a Licitação
do Serviço Básico Rodoviário do Sistema de Transporte Público Coletivo (STPC/DF); o Chamamento para o Sistema de Bicicletas e patinetes públicos compartilhados e, por último, a concessão do Complexo da Rodoviária do Plano Piloto.

Considerando que a maior parte dos temas tratados acima já foi objeto anterior de alguma forma de abordagem, seja através de artigos produzidos e/ou por intermédio de questionamentos apresentados à Semob, o objetivo aqui é o de se concentrar apenas na reflexão sobre o projeto que prevê a “concessão da gestão do Complexo da Rodoviária do Plano
Piloto e áreas adjacentes, incluindo sua recuperação, modernização, operação, manutenção, conservação e exploração”, conforme expresso no objeto da minuta do edital disponibilizado no processo de consulta pública, chamando atenção para os elementos que estejam diretamente
associados ao tema da mobilidade urbana.

Há uma enorme discrepância entre os valores propostos como investimento que serão realizados pela futura concessionária, em torno de R$ 580 milhões ao longo dos 20 anos deconcessão, e a estimativa de receita total que será arrecadada durante esse mesmo período, algo próximo de R$ 1 bilhão. Não resta dúvida de que em processo dessa proporção é o
interesse público que deveria ser o fio condutor da discussão e isso não fica evidente na proposta e no desenho que foi apresentado.
No entanto, considerando que a Rodoviária do Plano Piloto tem sido objeto de reformas e manutenções ao longo de praticamente todas as gestões, com o aporte de grande volume de recursos públicos, mas que, mesmo assim, aquele espaço físico ainda não tem atendido adequadamente a população que a utiliza dentro da mobilidade urbana ou com outras atividades, começo a desconfiar de que o processo de sua concessão ao setor privado possa não encontrar grandes resistências por parte da sociedade, muito em função desse histórico de abandono daquele equipamento e da ineficiência do estado em dar resposta adequada aos problemas.

Há experiências exitosas de concessões de terminais de transporte público, como no caso da Rodoviária de Goiânia, onde foi instalado um shopping center e houve revitalização do equipamento público. Com isso, houve a oferta de uma prestação de serviço melhor ao público que circula pelo espaço. Na cidade de São Paulo há a disposição da prefeitura em promover a concessão de todos os terminais do transporte público para a iniciativa privada, por um período de 30 anos. O que precisa ser considerado no caso do repasse de um equipamento público como esse é que os recursos arrecadados via o pagamento da outorga ao estado possam ser reinvestidos no sistema de transporte público e na mobilidade urbana e, no caso do DF, não há nenhuma garantia de que isso vá ocorrer de fato.

No projeto de concessão do Complexo da Rodoviária, a previsão de receita da futura concessionária estaria vinculada a quatro diferentes fontes: a exploração de publicidade em mobiliários e equipamentos dentro da área; a exploração comercial através do aluguel de lojas e outros espaços; a cobrança de estacionamento em três áreas públicas específicas localizadas
nas proximidades do terminal e a cobrança de uma tarifa de acostagem que incidiria sobre todas as operações de partida dos ônibus do sistema de transporte público coletivo.

A política de estacionamento é um dos instrumentos de gestão previstos na Lei Federal n° 12.587/2012, que instituiu as diretrizes e princípios gerais de mobilidade urbana, e sempre utilizada como mecanismo para desestimular o uso do transporte individual motorizado nas cidades, a partir da regulamentação do uso do espaço público, tendo como perspectiva o
incentivo à utilização do transporte público e dos modais ativos dentro do território.

Sendo assim, nada mais normal e natural que os recursos arrecadados com um instrumento de gestão de mobilidade urbana possam ser efetivamente aplicados, por exemplo, no fortalecimento do sistema de transporte público ou na implantação ou requalificação de malhas cicloviárias e de circulação a pé. No entanto, no formato em que está configurado o projeto de concessão do Complexo da Rodoviária, toda a receita arrecadada com a cobrança de estacionamento em três áreas públicas localizadas nas adjacências do terminal (plataforma superior da RPP e áreas externas de trás do Conic e do Conjunto Nacional), estimada em valor total de R$ 254 milhões durante os vinte anos, será da futura concessionária, que deverá repassar um valor mínimo de 2,5% sobre essa receita para o GDF como pagamento de outorga, ou seja, no final do contrato a transferência de
recurso ao tesouro terá sido de apenas R$ 6 milhões.

Como há uma convicção dominante dentro da sociedade de que o estacionamento de automóveis em áreas públicas é uma coisa absolutamente normal e que o disciplinamento do seu uso através da cobrança de uma tarifa seria ilegal, uma vez que há uma percepção
distorcida que o pagamento por si só do IPVA, por exemplo, geraria o direito de vaga aos veículos nas vias da cidade, o uso do instrumento da política de estacionamento tem o poder de produzir reações violentas dentro da sociedade, especificamente dos segmentos que identificam possíveis ameaças aos seus privilégios históricos adquiridos.

Então, avalia-se que há um grave equívoco em relação à proposição do direcionamento de volumosos recursos arrecadados, com um instrumento de gestão de mobilidade urbana, exclusivamente para uma futura concessionária do Complexo da Rodoviária em detrimento
daquilo que estabelece e recomenda a Política Nacional de Mobilidade Urbana (PNMU) e o Plano Diretor de Transporte Urbano e Mobilidade (PDTU), que é a destinação desses valores para investimento na qualificação do sistema de transporte público, seja em infraestrutura exclusiva
ou para a redução de tarifas, e na implantação e/ou expansão das redes cicloviárias e pedonais.

A proposta do GDF de cobrança de estacionamento dentro do processo de concessão da Rodoviária vai naturalmente criar um ponto de distensão com segmentos expressivos e representativos da sociedade. Essas zonas de conflito poderiam ser neutralizadas se os recursos arrecadados com a cobrança das tarifas retornassem para a sociedade por intermédio de
investimentos efetivos no transporte público e nos modais ativos, garantindo condições para uma melhor qualidade de vida dentro da cidade e, assim, justificando a adoção de medidas de restrição ao uso de automóveis.

No entanto, do jeito que o projeto está configurado o principal beneficiário do uso da política de estacionamento não será a sociedade, mas sim a futura concessionária da Rodoviária. A utilização de um instrumento de gestão de mobilidade urbana deixaria de atender aos objetivos a que se efetivamente destinam e contribuiria para fomentar um negócio privado e, em nome
do interesse público e de toda a coletividade, a proposta com essa formatação não pode avançar.

Outro ponto de divergência em relação à proposta da concessão está localizada em outra fonte de receita prevista para a concessionária: a instituição da Tarifa de Acostagem ou de Acostamento que, como já explicitado anteriormente, incidiria sobre todas as operações de
partida da rodoviária dos ônibus que operam no STPC/DF e no Serviço Interestadual Semiurbano que atende o Entorno.

Segundo o desenho apresentado, a cobrança da Tarifa de Acostagem se daria em função do tipo de linha e de veículo em operação dentro da Rodoviária. Pelos cálculos sugeridos, os ônibus que operam no STPC/DF iriam pagar valores individuais que variariam de R$ 3,21 (para miniônibus
da Linha Circular Urbana 2) a R$ 13,41 (para ônibus articulado do BRT ou de Linha Metropolitana 2). Por outro lado, sobre os ônibus que tem origem no Entorno a Tarifa seria fixada entre R$ 7,80 (Valparaíso de Goiás 2) e R$ 21,15 (Santo Antônio do Descoberto).

Nas projeções financeiras realizadas, a cobrança da Tarifa de Acostagem geraria uma receita anual da ordem de R$ 17,6 milhões, sendo R$ 15,1 milhões provenientes da incidência sobre a operação do STPC e R$ 2,4 milhões originários do Serviço Interestadual Semiurbano de Passageiros que opera na região do Entorno.

Os sistemas de transporte público coletivo de passageiros já enfrentavam um processo gradativo de redução da demanda, em função de uma série de variáveis, e a situação se agravou ainda mais com a pandemia, quando o modal chegou a transportar somente 10% do número de passageiros em comparação com o período anterior ao início do isolamento social.

Entretanto, mesmo com as medidas de flexibilização e o retorno presencial de diversas atividades, a demanda no transporte público coletivo no DF se mantém em patamar de apenas 5% do que era antes de março deste ano.
Com esse quadro tão devastador para o sistema de transporte público do DF, que ficou ainda mais dependente do aporte de subsídio por parte do poder público para a manutenção da sua operação em condições adequadas e em segurança para os usuários, não se consegue entender essa lógica da criação de uma nova tarifa para as concessionárias do STPC e do Entorno, o que invariavelmente vai representar o aumento dos seus custos operacionais e, por consequência, a transferência desse ônus ao usuário do sistema.

Se o GDF sinaliza que o seu interesse é o de reduzir o volume de subsídios no transporte público, conforme manifestado expressamente várias vezes em todos os projetos de mobilidade urbana que foram apresentados em 2020, a criação de uma Tarifa de Acostagem para os operadores, com certeza vai estimular as concessionárias a entrarem com pedido de revisão da suas tarifas técnicas, uma vez que esse novo custo não teria previsão legal anterior. Esse caminho contradiz o discurso de que a ideia seria a de reduzir o aporte com subsídios e retroalimenta o processo de direcionamento de mais recursos para fechar a conta do STPC/DF.
Por outro lado, se novo custo é criado e se o GDF resolve não aportar mais recursos como subsídio, como decisão estratégica da gestão, o processo vai caminhar naturalmente para a transferência do ônus ao passageiro pagante do STPC, o que acreditamos que seria a sentença de morte do Sistema na atual conjuntura. Em nenhum cenário de avaliação do governo pode
estar presente a ideia de repassar ao usuário, através do reajuste da tarifa pública, a responsabilidade por eventuais novas despesas que tornem o sistema mais caro e, por isso, a proposta de criação da Tarifa de Acostagem deve ser refutada com veemência pela sociedade e é missão do governo viabilizar outras alternativas extratarifárias para o custeio da operação do
transporte público e visando reduzir o nível de desembolso com os subsídios.

Se no DF ainda há a figura do subsídio público para o financiamento, que cobre a diferença entre os valores pagos pelo usuário e a remuneração das concessionárias, no Serviço Interestadual Semiurbano de Passageiros do Entorno a instituição da Tarifa de Acostagem seria extremamente perversa, uma vez que a remuneração das empresas de ônibus depende exclusivamente da arrecadação originária do pagamento da tarifa e, ao repassar um novo custo para as permissionárias do serviço, esse ônus com certeza será repassado ao público, que já sofre com viagens longas, com tarifas mais altas e, em muitos casos, utilizando ônibus sem
condições adequadas para circulação.

Em relatório técnico produzido, a Semob já se manifestou ser favorável à instituição da cobrança da Tarifa de Acostagem sobre cada partida de ônibus realizada na Rodoviária do Plano Piloto. Então, se há a insensibilidade do governo em relação à criação de uma despesa que vai
impactar a operação do sistema de transporte público, lembrando que a previsão é a de arrecadação de uma receita anual de R$ 17,6 milhões, cabe à sociedade se manifestar e apontar os equívocos das propostas produzidas pelo GDF, assim como acontece no projeto de cobrança do estacionamento em áreas adjacentes ao Complexo da Rodoviária do Plano Piloto,
quando se propõe a destinação dos valores sem qualquer vinculação à mobilidade urbana.

  • Wesley Ferro Nogueira é economista, atualmente é Secretário Executivo do Instituto MDT,
    colabora no Projeto “Pensar o transporte público na cidade planejada para o automóvel” e há 5
    anos que se dedica ao tema da mobilidade urbana no DF.

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