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Por que o STF tem o dever de soltar Lula hoje?

Por Marcelo Neves

Hoje, o Supremo Tribunal Federal julgará o Habeas Corpus (HC) 164493, por meio do qual a defesa de Luiz Inácio Lula da Silva alega a suspeição do ex-juiz Sérgio Moro para atuar nas ações penais abertas contra o ex-presidente da República perante a 13ª Vara Federal de Curitiba (PR) e pede a nulidade de todos os atos processuais praticados por Moro, com o restabelecimento da liberdade a Lula.

Em artigo publicado no portal GGN, em 13 de junho, sob o título “Por que Lula deve ser solto imediatamente?” (https://jornalggn.com.br/artigos/por-que-lula-deve-ser-solto-imediatamente-por-marcelo-neves/), arguí em favor da liberdade de Lula a partir dos fatos notórios publicados pelo website jornalístico Intercept em 9 de junho. Foram divulgados diálogos em que o então juiz Sérgio Moro aconselhava e dava instruções ao procurador Deltan Dallagnol para a acusação e denúncia do ex-Presidente Luiz Inácio Lula da Silva na Ação Criminal nº 0465129420164047000/PR, pela qual o ex-Presidente foi condenado penalmente e, após confirmação em 2ª instância, preso em sala da Polícia Federal na cidade de Curitiba. Naquele momento, o atual ministro Sérgio Moro e o procurador Deltan Dallagnol não negaram o conteúdo das conversas, antes o confirmaram implicitamente, apenas alegando a ilegalidade das provas e o caráter criminoso do ato de vazamento das comunicações entre eles.

Com base na nova situação, aleguei que o caso se enquadra perfeitamente no art. 254, inciso IV, do Código de Processo Penal (CPP), que estabelece a suspeição do juiz que “tiver aconselhado uma das partes”. Tratei, então, da combinação sistemática desse dispositivo com o art. 564, inciso I, do CPP, que prescreve a “nulidade” do processo por “suspeição” do juiz.

Considerei que argumentos referentes a provas obtidas ilicitamente só podem constituir razões contra a incriminação e condenação e que, no caso, trata-se antes de fatos notórios em favor do réu, que haviam sido indiretamente confirmados pelo próprio ex-juiz Sérgio Moro e pelo procurador Deltan Dallagnol. Daí por que ponderei, nos termos do art. 3º do Código de Processo Penal, sobre a possibilidade de aplicação subsidiária dos incisos I e (analogicamente) II do art. 374 do Código de Processo Civil (CPC), que determinam não dependerem de provas os fatos “notórios” e os “afirmados por uma parte e confessados pela parte contrária”.

Entrementes, apesar da publicação de novos diálogos pelo Intercept, nos quais Moro novamente dava instruções e aconselhamentos aos procuradores, ofendendo frontalmente o art. 254, inciso IV, do CPP, o juiz e os procuradores mudaram, estrategicamente, a sua posição inicial sobre os fatos, como salientou a Folha de São Paulo, na edição deste domingo, 23 de junho (https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/06/serie-de-reportagens-da-folha-explora-mensagens-obtidas-por-site-the-intercept-brasil.shtml):

Após as primeiras reportagens sobre as mensagens, publicadas pelo Intercept, no dia 9, Moro e os procuradores reagiram defendendo sua atuação na Lava Jato, mas sem contestar a autenticidade dos diálogos revelados. 

Depois de alguns dias, passaram a colocar em dúvida a integridade do material, além de criticar o vazamento das mensagens. Até agora, porém, Moro e os procuradores não apresentaram nenhum indício de que as conversas reproduzidas sejam falsas ou tenham sido modificadas.

À luz dessa nova posição, a Sra. Raquel Dodge, nomeada para o cargo de Procuradora-Geral da República por Michel Temer, emitiu seu parecer sobre o Habeas Corpus (HC) 164493, hoje na pauta de julgamento da 2ª Turma do STF.

Nesse parecer, a Sra. Raquel Dodge insiste no argumento do caráter ilícito das provas, expressando a “preocupação” de que “as supostas mensagens … tenham sido obtidas criminosamente”. Mas, como esclarecido no meu artigo anterior, o argumento da inadmissibilidade das “provas ilícitas, assim entendidas as obtidas em violação a normas constitucionais ou legais” (art. 157 do Código de Processo Penal), só serve quando é arguido pelo indiciado, denunciado, réu ou condenado em seu favor, para afastar o uso da prova in malam partem (“para o mal” da parte, em prejuízo do réu). Mas as provas obtidas ilegalmente ou inconstitucionalmente podem ser utilizadas no direito penal in bonam partem (“para o bem” da parte, em benefício do réu, condenado ou vítima).

Consideremos a mais chocante e grave das provas ilícitas, aquela obtida mediante tortura. Se um pai, com a ajuda de alguns policiais, tortura um sequestrador e esse, sob tortura, diz, com detalhes, onde está o bebê sequestrado, que corre perigo, a prova evidentemente pode ser utilizada para salvar a criança. Claro que os torturadores devem responder pelo seu crime e o sequestrador pode arguir pela inadmissibilidade da prova contra si, o que pode levar até a sua absolvição se não houver outras provas independentes. Da mesma maneira, se, mediante tortura, se conseguem as provas detalhadas sobre quem praticou um crime de latrocínio, o caráter ilícito da prova não impede que se proceda à imediata soltura do condenado que esteja cumprindo injustamente a pena pelo mesmo latrocínio. Novamente, os torturadores deverão responder pelo seu crime e o torturado poderá arguir pela inadmissibilidade do uso da prova ilícita contra si.

Portanto, repito, no Habeas Corpus (HC) 164493, não se trata de denunciar Moro e os procuradores por crimes, mas sim de decidir sobre a suspeição de Moro e a nulidade dos processos contra Lula em que o então magistrado atuou. A prova é invocada em benefício do réu e condenado. É irrelevante, sem dúvida, se foi ou não obtida por meio ilícito.

A Sra. Raquel Dodge, porém, traz outro argumento, baseado na nova posição do ex-juiz Moro e dos procuradores, questionando a “autenticidade” das mensagens. Ela sustenta: “Há fundadas dúvidas jurídicas sobre os fatos nos quais se ampara a alegação de suspeição feita neste pedido de habeas corpus” (grifei). Parece-me que, ao expressar suas “fundadas dúvidas jurídicas” sobre fatos que caracterizam a suspeição do ex-juiz Sérgio Moro nos processos que ele conduziu contra Lula e, portanto, dúvidas jurídicas sobre a nulidade dos referidos processos, a Sra. Raquel Dodge não deveria opinar pelo indeferimento do Habeas Corpus (HC) impetrado por Lula, mas, ao contrário, deveria manifestar-se pelo seu pronto deferimento. Isso porque no direito penal vale a velha máxima in dubio pro reo. Havendo “fundadas dúvidas jurídicas” não somente sobre provas do suposto crime, mas também sobre provas referentes a suspeição ensejadora de nulidade dos processos, deve-se decidir em favor do réu ou do condenado. Não há outra saída no direito penal brasileiro. A máxima in dubio pro reo apresenta-se como regra no art. 386, inciso VI, do Código de Processo Penal, que estabelece: “O juiz absolverá o réu, mencionando a causa na parte dispositiva, desde que reconheça: IV – existirem circunstâncias que excluam o crime ou isentem o réu de pena, ou mesmo se houver fundada dúvida sobre sua existência” (grifei). Essas circunstâncias são as mais diversas, e basta haver “fundadas dúvidas jurídicas” sobre a existência delas, para que se afirme essa regra legal.

É claro que a Procuradoria-Geral da República pode arguir que o Ministério Público, ao contrário do Judiciário, orienta-se primariamente pela máxima in dubio pro societate. Mas me parece que essa alegação pode valer para fins de abertura de investigações e apresentação de denúncias, mas não na dimensão dos pareceres de processos judiciais em andamento. Além disso, ao manifestar suas “fundadas dúvidas jurídicas” sobre os fatos ensejadores da suspeição do ex-juiz Sérgio Moro e, portanto, da nulidade dos processos dirigidos por ele contra Lula, a Sra. Raquel Dodge está oferecendo ao Supremo Tribunal Federal um argumento claro pela declaração de nulidade dos referidos processos, pois não há dúvida que, no Judiciário, prevalece a máxima in dubio pro reo.

Desde março de 2016, após a condução coercitiva de Lula, em 04/03, e a interceptação e o vazamento de comunicação telefônica entre Dilma e Lula, em 16/03, tenho enfatizado, em diversas oportunidades, que o ex-juiz Sérgio Moro atuou de maneira parcial, cabendo às instâncias judiciais superiores declarar-lhe a suspeição para julgar as ações penais em que Lula é ou foi réu, conforme tem arguido a sua defesa no TRF4, no STJ e no STF. A situação agora tornou-se mais grave, tendo em vista o conjunto de diálogos que vêm sendo publicados entre o então juiz e os membros do Ministério Público desde de 9 de junho. Exige-se uma imediata decisão do STF pela declaração da suspeição do ex-juiz Sérgio Moro e da nulidade dos respectivos processos, com a consequente expedição do alvará de soltura de Lula.

Hoje é o momento de o STF redimir-se decidindo, mesmo tardiamente, pela liberdade de Lula, em nome da dignidade do Poder Judiciário e da reputação internacional do Brasil. Não cabe mais um adiamento em virtude de pressões externas, supostamente por forças encasteladas no gabinete do presidente do STF. Usando ironicamente a retórica do latim jurídico, espera-se que, na tarde de hoje, o povo brasileiro possa exclamar com Lula: Tandem óbtinet iustitia (“A justiça tarda, mas não falha”).

Marcelo Neves é professor de Direito da Universidade de Brasília

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