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Intervenção militar é a expressão do racismo do GDF

Dentre os vários prejuízos que irá provocar na educação pública e gratuita, a intervenção militar em quatro escolas da periferia do Distrito Federal desrespeita os artigos 5º e 226 da Constituição Federal ao impor aos(às) estudantes uma padronização da sua aparência física: meninos terão de ter o cabelo cortado rente à cabeça e, meninas, um coque como padrão de aparência física.

Em reportagem veiculada no programa Fantástico, da Rede Globo, no domingo (17), a direção compartilhada foi clara a afirmar a nova regra. O repórter foi objetivo ao perguntar para a direção sobre o cabelo black power e afros e a direção compartilhada foi contundente ao dizer que todos terão de cortá-lo para se adequarem ao padrão.

Essa padronização anula identidades e provoca uma quebra pedagógica profunda na educação ministrada na rede. A padronização ressuscita o velho estereótipo europeu que prevaleceu no país por séculos e tentou eliminar da história do Brasil e do perfil físico dos brasileiros as características africanas e indígenas.

Na avaliação de professores, essa padronização irá causar vários problemas ao desconstruir a identidade de pessoas que estão em formação e ao impor, novamente, a estética europeia. A antropóloga Nilma Lino Gomes afirma que muito mais do que um sinal de estética, para a pessoa afrodescendente, manipular o cabelo significa recriar sua identidade negra, posicionar-se como negro, destacar aspectos importantes de sua história e cultura, que nos remetem a ancestralidade africana.

“A militarização das escolas não respeita as diferenças e nem as vontades das pessoas. Não respeita a Constituição Federal, nos artigos que determinam normas sobre os direitos fundamentais e direitos e deveres individuais, como o artigo 5º, inciso II, e o parágrafo 7º do artigo 226, que trata da dignidade da pessoa humana”, afirma Cláudio Antunes, coordenador de Imprensa do Sinpro-DF.

Marcos Lopes, professor de Atividades da rede pública de ensino do Distrito Federal, escritor e ativista do movimento negro, diz que a militarização é retrocesso em todos os sentidos. Autor dos livros de literatura infantil, intitulados “Lápis cor de pele” e “Tiarinha vermelha e o povo mal”, ele diz que a filha dele já sofreu racismo na escola por causa do cabelo. “Essa intervenção militar vai contra também as Leis nº 10.639/03 e 11.645/08, que instituem o ensino da história e cultura afro-brasileira e indígena na escola pública e irá prejudicar muito a formação dos(as) estudantes porque a normatização no Ensino Médio entra em contradição com aquilo que ensinamos nos anos iniciais porque a gente trabalha com a formação de identidades”.

Nos anos iniciais a escola incentiva a criança a se perceber com suas próprias características físicas e psicológicas, como com os cabelos crespos, a pele escura, advindos dos povos africanos, de reis e rainhas que vieram à força para as Américas para serem escravizados pelos brancos. “A gente trabalha muito nessas crianças essa questão estética, como o cabelo, o seu pertencimento. E, agora, tendo esse retrocesso por causa da militarização, vejo o retorno ao século XVIII nos anos finais”, assegura.

Marjorie Chaves, professora voluntária da disciplina Cultura, Poder e Relações Raciais, no Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros (Neab), do Centro de Estudos Multidisciplinares (Ceam), da Universidade de Brasília (UnB), considera extremamente pertinente falar sobre as individualidades e identidades massacradas pela intervenção militar nas escolas justamente na idade em que o ser humano busca ter sua própria personalidade.

“É uma reflexão que tenho feito nas últimas semanas, a partir do momento em que eu comecei a acompanhar essa ocupação militar de escolas públicas do Distrito Federal. Temos de tocar num ponto que é muito importante, dessa questão da ideia de gestão compartilhada: tem uma coisa que as pessoas não estão observando e que é fundamental compreender é que a militarização das escolas só é realizada em escolas de regiões periféricas ou escolas de periferia. Ou seja, isso mostra que ela tem a dimensão de classe e de raça, uma vez que são os corpos negros e pobres a serem vigiados e normatizados em sua maioria”.

A professora indaga por que são os corpos de pessoas negras e pobres que precisam ser vigiados, adestrados, normatizados? “Essa militarização é um passo atrás no que realmente importa para uma educação de qualidade que exige investimento. Até porque a gente vê que a resolução proposta nesta militarização é a resolução da violência. Só que a gente está querendo resolver o problema da violência inserindo o medo nessas comunidades. Inserindo padronização de comportamento, que não faz bem para o desenvolvimento educacional dos estudantes. Até porque existe uma diferença clara entre o que é um colégio militar, que já existe e tem seu modelo, e uma intervenção militar, ou seja, da Polícia Militar nas escolas públicas”, afirma

Marjorie observa que a intervenção da Polícia Militar nas escolas é uma mudança radical na proposta pedagógica em curso, uma mudança conceitual na educação. “A PM diz que é responsável pela gestão administrativa e que os civis continuarão com a gestão pedagógica. Mas isso não existe. Não existe diferença nesse universo porque tudo que existe dentro de uma escola é pedagógico. Com relação aos(às) educandos(as), o que mais me preocupa é o que irá acontecer com as identidades desses meninos e meninas. A gente já está num processo muito complexo do aumento do conservadorismo muito exacerbado que a gente está deixando, ou pelo menos muito complexo, falar de determinados temas nas escolas”, diz.

Piragibe Vieira da Paixão Júnior, professor de matemática no Gisno, crê que, para além das identidades, a militarização irá trazer muitos outros retrocessos para a educação e para a formação da personalidade dos(as) estudantes da escola da rede pública. “Hoje em dia ninguém faz um debate sério sobre até que ponto, por exemplo, os baixos salários dos pais desses estudantes e o sacrifício que eles fazem para sobreviver não são um dos principais motivos da violência social que adentra as escolas”, pondera.

Ele acha que, num primeiro momento, a violência dentro da escola irá diminuir, porém, voltará a explodir com muito mais força no futuro. E compara o método da militarização de escolas públicas da periferia de Brasília como desculpa para conter a violência social às intervenções militares altamente fracassadas ocorridas na cidade do Rio de Janeiro.

Élbia Pires de Almeida, coordenadora de Raça e Sexualidade do Sinpro-DF, lembra que o Brasil levou décadas para superar a europeização da juventude e conseguir fazer com que os(as) estudantes não tivessem vergonha de seu corpo, seu cabelo, sua pele, sua cor, e começassem a manifestar o seu orgulho por meio de diversos penteados que se vê hoje nas escolas.

“Padronizar as formas de se vestir e de apresentar os cabelos é, de novo, estarmos negando a identidade do povo negro, negando as nossas origens, a cultura do povo que chegou ao Brasil escravizado e desconsiderando que a grande maioria da nossa população é negra ou de origem negra. E no que diz respeito à identidade de gênero, é importante ressaltar que essa padronização de impor um único formato do que consideram correto a partir da aparência biológica. Com isso, o GDF tenta, de novo, eliminar todas as pessoas que não estão dentro desse padrão instituído nas escolas militarizadas”, afirma.

Para a diretora do Sinpro-DF, essa atitude do governo Ibaneis irá aumentar a evasão escolar de pessoas que não se adéquam à padronização. “Esse modelo diz para o menino gay e para a menina lésbica que ambos não podem se apresentar enquanto tais. Não podem ser e nem existir no espaço escolar, uma vez que eles e elas não pode fazer parte do universo normativo da escola. Isso quebra uma lógica pedagógica de libertação do ser humano com a qual a gente vem trabalhando e pela qual a gente vem lutando há décadas”.

A sindicalista informa que são nas comunidades LGBT que ocorrem os maiores índices de evasão escolar e que, nas escolas militarizadas, a evasão irá aumentar. “Nenhum adolescente permanece no espaço escolar se ele tem a sua identidade negada. Mais cedo ou mais tarde, ele ou ela irá evadir. Essa atitude do governo poderá também elevar, de forma exorbitante, o número de suicídios que já temos de forma gigantesca entre os(as) jovens LGBTQI. Temos históricos registrados, e a polícia sabe disso, que os jovens que têm sua identidade negada sempre recorrem ao suicídio”, alerta.

Crédito da foto: Getty Images

Fonte: Sinpro DF

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