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A Constituição como referência na defesa dos movimentos sociais

Por Hudson Cunha*

A constituição como referência na defesa de entidades e militantes dos movimentos sociais: um tema que poderia abranger uma grande gama de reflexões, constatações e de exemplos, mas, por agora, dada a brevidade e a mensagem rápida que aqui se passa, apresenta-se resumido e até com algumas omissões, deixa-se assim para quem lê a possibilidade de também refletir mais acuradamente sobre o assunto.

A República Federativa do Brasil tem como seus:

· FUNDAMENTOS expressos no art. 1º, da Constituição Federal: a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, e, o pluralismo político. E, como dispõe o art. 1º, parágrafo único, todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos da Constituição.

· OBJETIVOS firmados no artigo 3º, da Constituição Federal: construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; e promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

Os movimentos sociais, em geral, visam justamente seguir estes fundamentos e alcançar estes objetivos da República, dado inclusive que surgem da necessidade sentida na busca da plena cidadania por seus e suas integrantes, cuja conquista só é possível com a materialização destes objetivos, em consonância com os fundamentos.

Assim, por vezes, a defesa das ações de militantes populares pode colidir com interpretações de leis que não observaram ou não observam o texto constitucional em sua interpretação contemporânea.

Mas, o texto constitucional, na hierarquia das leis, sobrepõe às demais normas, assume a condição de referência para avaliar a ações e omissões de participantes dos movimentos sociais.

O mestre DALMO DALLARI já apontava neste sentido norteador da Constituição nas apreciações de ações, disse ele: “Todas as atividades sociais ou individuais devem ser ajustadas às regras fixadas na Constituição, que se consagrou como um dos instrumentos de garantia da liberdade e da segurança jurídica dos indivíduos e dos grupos sociais ((O renascer do direito. 2ed. São Paulo: Saraiva, 1980, p. 7).

Por vezes, a interpretação literal de normas implica em entender como violadores atos omissivos e comissivos de militantes, principalmente quando se trata de normas ordinárias elaboradas há décadas. Mas, quando se aprofunda a análise, chega-se à conclusão que determinada norma constitucional agasalha, dá-lhe legitimidade e legalidade, justificam motivos para os atos desencadeados.

EXEMPLOS DE APLICAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO COMO REFERÊNCIA NA APREÇIAÇÃO E DEFESA DE ATOS DE MILITANTES SOCIAIS

O Ministro Vicente Cernicchiaro deu um exemplo deste aprofundamento de análise com base no texto constitucional ao relatar e proferir seu voto condutor no HC 7994 SP, onde na ementa já esclarece o conteúdo nesta parte que dispõe: “Movimento popular visando a implantar a reforma agrária não caracteriza crime contra o Patrimônio. Configura direito coletivo, expressão da cidadania, visando a implantar programa constante da constituição da República. A pressão popular é própria do Estado de Direito Democrático. ” E, do seu voto, cabe aqui destacar o seguinte trecho:

“A Constituição da República dedica o Capítulo III, do Título VII a Política Agrícola e Fundiária e à Reforma Agrária. Configura, portanto, obrigação do Estado. Correspondentemente, direito público, subjetivo de exigência de sua concretização.

No amplo arco dos Direitos de Cidadania, situa-se o direito de reivindicar a realização dos princípios e normas constitucionais.

A Carta Política não é mero conjunto de intenções. De um lado, expressa o perfil político da sociedade, de outro, gera direitos.

É, pois, direito reclamar a implantação da reforma agrária. Legítima pressão aos órgãos competentes para que aconteça, manifeste-se historicamente.

A postulação da reforma agrária, manifestei, em Habeas Corpus anterior, não pode ser confundida, identificada com esbulho possessório, ou a alteração de limites. Não se volta para usurpar a propriedade alheia. A finalidade é outra. Ajusta-se ao Direito. Sabido, dispensa prova, por notório, o Estado, há anos, vem remetendo a implantação da reforma agrária.

Os conflitos resultantes, evidente, precisam ser dimensionados na devida expressão. Insista-se. Não se está diante de crimes contra o Patrimônio. Indispensável a sensibilidade do magistrado para não colocar, no mesmo diapasão, situações jurídicas distintas.

(…)

Tenho o entendimento, e este Tribunal já o proclamou, não é de confundir-se ataque ao direito de patrimônio com o direito de reclamar a eficiência e efetivação de direitos, cujo programa está colocado na Constituição. Isto não é crime, é expressão da cidadania. ”

Há situações que a falta de uma legislação prevista na Constituição Federal, não pode ser interpretada em prejuízo aos direitos, como o caso da falta da lei de greve do servidor, como decidiu o Supremo Tribunal Federal, no seguinte acórdão da lavra do Ministro Menezes Direito:

Ementa: DIREITOS CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. DIREITO DE GREVE. SERVIDOR PÚBLICO EM ESTÁGIO PROBATÓRIO. FALTA POR MAIS DE TRINTA DIAS. DEMISSÃO. SEGURANÇA CONCEDIDA. 1. A simples circunstância de o servidor público estar em estágio probatório não é justificativa para demissão com fundamento na sua participação em movimento grevista por período superior a trinta dias. 2. A ausência de regulamentação do direito de greve não transforma os dias de paralização em movimento grevista em faltas injustificadas. 3. Recurso extraordinário a que se nega seguimento. (STF – RE: 226966 RS, Relator: Min. Menezes Direito, Data de Julgamento: 11/11/2008, Primeira Turma, Data de Publicação: DJe-157 DIVULG 20-08-2009 PUBLIC 21-08-2009 EMENT VOL-02370-05 PP-01091 RF v. 105, n. 403, 2009, p. 412-420 LEXSTF v. 31, n. 368, 2009, p. 269-283)

E, por vezes, como tese de defesa, pode-se recorrer aos princípios constitucionais, como o da isonomia, previsto no art. 5º, caput, da Constituição Federal, para comprovar a discriminação sofrida pelo integrante do movimento social, como exemplifica o seguinte acordão:

DIREITO CONSTITUCIONAL DE GREVE. LEGITIMIDADE. DISPENSA DISCRIMINATÓRIA. O direito de greve, tal como atribuído aos trabalhadores pelo art. 9º e seus parágrafos, da Constituição brasileira, afigura-se intangível, com o dizer da norma constitucional de que compete unicamente aos próprios destinatários decidir sobre como e quando exercê-lo, a par de estarem autorizados a definir por si mesmos os interesses que devam defender por essa forma reconhecida de mobilização e luta. A única limitação admitida pelo citado dispositivo constitucional é a prevista no § 1º, que remete à lei a definição dos serviços ou atividades essenciais e a disposição sobre o atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade, o que se acha regulamentado na Lei nº 7.783/89. Na hipótese vertente, o conjunto probatório produzido nos autos demonstra a legalidade do movimento grevista de que participou o reclamante, despedido de forma discriminatória. Recurso a que se nega provimento. (TRT-3 – RO: 00147201305903000 0000147-83.2013.5.03.0059, Relator: Convocado Mauro Cesar Silva, Sétima Turma, Data de Publicação: 28/01/2014,27/01/2014. DEJT. Página 236. Boletim: Sim.)

A dignidade da pessoa humana, um dos fundamentos da República, justiça a busca por soluções pacíficas para os conflitos sociais, prevalece em relação às tentativas de uso de violência e às imposições por parte de administradores públicos. Gera assim decisões judiciais mais razoáveis e de acordo com a norma constitucional, como a de intervenção federal ou não em face do eventual descumprimento de ordem judicial dura. O Acordão a seguir, que tem como relator o Desembargador Claudionor Miguel Abss Duarte, exemplifica esta recusa a medida extrema, quando há possibilidade de solução negociada:

“Intervenção federal no estado – decisão liminar de reintegração de posse – área ocupada por movimentos sociais de sem-terra – provisoriedade – possibilidade de alteração ou revogação da decisão liminar a qualquer tempo – empenho do estado para a desocupação pacífica da área rural – ausência de inércia ou descumprimento da decisão judicial – pedido de intervenção indeferido – medida extrema recusada. (TJ-MS – Pedido de Intervenção Federal no Estado: 9038 MS 2006.009038-2, Relator: Des. Claudionor Miguel Abss Duarte, Data de Julgamento: 23/08/2006, Presidência, Data de Publicação: 11/09/2006);

Ao aprofundar a análise, poderá ocorrer inclusive a inversão de posições, participante dos movimentos sociais sob a acusação de estar violando norma ser à luz da Constituição, na realidade, ser justamente quem busca o cumprimento da lei e não quem lhe acusa. Essa última pessoa, às vezes, age criando empecilhos ao cumprimento do mandamento constitucional, como normalmente se vê nos conflitos de terra. Exemplo, titular de terra improdutiva alega que teve seu direito de propriedade violado. Mas, a Constituição Federal garante a função social da propriedade, o direito de associação, direito de manifestação e a reforma agrária.

Respaldar em decisão anterior do Supremo Tribunal Federal por si só não assegura manter determinada restrição para se viabilizar determinado direito, quando confronta com a norma no tempo, pode-se vir a comprovar direito e correta então ação do movimento social, às vezes, até por um pequeno detalhe legal, como a decisão no AMS 98150, no Tribunal Federal da 5ª Região:

CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. MANDADO DE SEGURANÇA. DESAPROPRIAÇÃO PARA FINS DE REFORMA AGRÁRIA. ESBULHO POSSESSÓRIO OU INVASÃO MOTIVADA POR CONFLITO AGRÁRIO OU FUNDIÁRIO DE CARÁTER COLETIVO POSTERIOR À VISTORIA DO IMÓVEL. ART. 2º, PARÁGRAFO 6º, DA LEI N.º 8.629/93. INAPLICABILIDADE. PRECEDENTES DO STF. 1. Conforme disposto no art. 2º, parágrafo 6º, da Lei n.º 8.629/93, a vistoria, avaliação ou desapropriação no imóvel expropriado para fins de reforma agrária é vedada nos dois anos seguintes à sua desocupação, ou no dobro desse prazo, em caso de reincidência, quando houver “esbulho possessório ou invasão motivada por conflito agrário ou fundiário de caráter coletivo”. 2. Saliente-se que, na linha da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, não é todo esbulho que impede a realização de vistoria pelo ente agrário. Para que impeça a desapropriação, é necessário que o esbulho possessório seja anterior à vistoria, pela força desfiguradora que se presume ter na mensuração do grau de produtividade do imóvel e, consequentemente, na sua classificação, e que alcance área significativa, em termos de extensão e/ou função de propriedade, a ponto de refletir no grau de produtividade (MS 24484, Relator Ministro Março Aurélio, Relator p/ Acórdão Ministro Eros Grau, Tribunal Pleno, julgado em 09/02/2006, DJ 02-06-2006 PP-00005 EMENT VOL-02235-01 PP-00114 LEXSTF v. 28, n. 331, 2006, p. 173-186; MS 25360, Relator: Min. EROS GRAU, Tribunal Pleno, julgado em 27/10/2005, unânime, DJ 25-11-2005 PP-00007 EMENT VOL-02215-02 PP-00290 LEXSTF v. 28, n. 325, 2006, p. 214-219). 3. No caso em exame, a vistoria do imóvel rural foi realizada em maio de 2005, conforme documentos constantes dos autos. Por sua vez, a invasão do imóvel por integrantes de movimentos sociais ocorreu apenas em 09 de outubro de 2005, data posterior à da vistoria, pelo que é inaplicável o disposto no art. 2º, parágrafo 6º, da Lei n.º 8.629/93. 4. Apelação e remessa oficial providas. (TRF-5 – AMS: 98150 PB 0000087-08.2006.4.05.8200, Relator: Desembargador Federal Rogério Fialho Moreira, Data de Julgamento: 18/06/2009, Primeira Turma, Data de Publicação: Fonte: Diário da Justiça Eletrônico – Data: 27/11/2009 – Página: 194 – Ano: 2009).

DO RECURSO ÀS NORMAS PÉTREAS

Até para avaliar a alegação de eventual acusação de descumprimento de ordem judicial pode-se recorrer à Constituição Federal, como ocorreu no exemplo a seguir.

Inspirado no art. 5º, inciso II, da Constituição Federal, ao dispor que “Ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer algo senão em virtude de lei”, o Ex-Ministro do Supremo Tribunal Federal Maurício Correia decidiu que: “Ninguém é obrigado a cumprir ordem ilegal, ou a ela se submeter, ainda que emanada de autoridade judicial. Mais: é dever de cidadania opor-se à ordem ilegal; caso contrário, nega-se o Estado de Direito. (STF HC 73.454, rel. min. Maurício Corrêa, j. 22-4-1996, 2ª T, DJ de 7-6-1996.]

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os exemplos aqui apresentados e outros que poderão ser encontrados, sem dúvida, são esclarecedores de que muitas das aparentes dificuldades de defesa são vencidas ao se recorrer à Constituição Federal.

Cabe ainda observar que as normas constitucionais não são isoladas, mas interpretadas em conjunto, no contexto da dinâmica social e dos fundamentos e objetivos constitucionais citados no início deste artigo.

Recorrer à Constituição Federal, em diversas situações, evitará muitas injustiças, demoras e erros judiciais.

Portanto, sempre que houver alguma dificuldade de defesa, oriente-se pelo texto constitucional, mesmo que militantes e/ou entidades estejam sob acusação cerrada baseada em interpretações tendenciosas, normas ordinárias ou em mera citação de texto constitucional.

Hudson Cunha
Advogado – civil e trabalhista
Jus Brasil

Foto: Partido dos Trabalhadores

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