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A fome tem uma saúde de ferro

Recuperada de uma experiência de quase morte, a draga implacável volta a devorar tudo o que encontra pela frente, inclusive o futuro. E com que voracidade!
Justo quando pensávamos que um nutriente chamado justiça social havia chegado ao prato e ao estômago dos menos favorecidos e que o direito básico à alimentação digna havia enterrado de vez a tal da fome, eis que ela ressurge, forte como quem come; disposta, como só os bem nutridos, a recolocar o Brasil em um dos mapas mais crueis da existência humana: o dela própria.
O desmaio de uma criança, por fome, em uma escola pública do DF, dias atrás, não é mero acaso. Ao contrário, é o resultado do descaso deliberado, intencional, de um projeto de governo que provoca o desfalecimento, por inanição, dos serviços públicos essenciais, para manter abastada a gula – maior pecado do capital – dos já supernutridos glutões do mercado nacional e internacional, ávidos por devorar a mesa farta das riquezas naturais e humanas que o país ainda mantem na despensa.
E com os olhos maiores que a barriga, os que se refastelam com o cardápio rico e variado, servido em bandeja de prata, garantem, numa relação simbiótica, a sobrevivência – à curta rédea – dos lacaios de seu apetite quase insaciável.
Como uma praga, os gafanhotos-dos-podres-poderes consomem, até o último grão, os sonhos e as esperanças que eles sequer ajudaram a plantar; e lambem os beiços na sobremesa, saboreando o sofrimento da população desassistida, enquanto palitam os dentes com os direitos subtraídos da classe trabalhadora. Ao povo, muito menos que as batatas! Sobram-nos apenas isso: as sobras.
Ao desmaiar de fome, na escola, essa pequena criança, não apenas traz para a ordem do dia as situações de vulnerabilidade a que estão expostas, ela e todas as outras crianças, pela omissão do estado em relação ao cumprimento das políticas de proteção e assistência à infância, mas também alerta para um fato trágico e emblemático: a morte lenta, à míngua, da já combalida educação pública, decretada pelo governo local. O óbito iminente não tarda nem falha, pois já conta com o tiro de misericórdia da instância judiciária, que abriu as porteiras da terceirização da saúde, área igualmente negligenciada pelo poder público, e que sobrevive da xepa, do descarte de inservíveis dos banquetes milhonários da iniciativa privada. Brindemos a isso! Mas não com água, porque a gestão dos recursos hídricos favorece apenas a alguns, que não somos nós, o povo…
A narrativa construída pelo executivo, em torno desse trágico episódio merece destaque. Da espetacularização do caso na mídia – fato! – à culpabilização da família da criança, pela falta de alimentos em casa e – para pasmar! –, da gestão anterior, do PT, pela implementação de políticas afirmativas, como a de construção de habitações populares no Paranoá Parque, passando pela desqualificação de relatórios consistentes como os do Conselho Distrital de Promoção e Defesa dos Direitos Humanos e o do Tribunal de Contas do Distrito Federal, os argumentos para justificar uma gestão apática, desnutrida de competências, com uma dieta pobre em perspectivas, apenas confirmam as razões pelas quais a rejeição ao governo é tão alta.
A melhor defesa, definitivamente, não é o ataque. Até porque quem sempre cospe no prato em que come, acaba se tornando indigesto. Mais saudável seria esclarecer à população porque nenhuma escola foi construída em 3 anos de mandato; porque foram reduzidos os recursos destinados à merenda escolar; porque o quadro de nutricionistas não é recomposto proporcionalmente à demanda das quase 700 escolas do sistema público; porque a política de transporte escolar é tão ineficiente; porque, mesmo não sendo atendidas pelo programa de tempo integral, as crianças do Paranoá Parque não foram consideradas em suas especificidades, sobretudo em relação ao tempo de deslocamento de casa para a escola e vice-versa; porque a maioria das unidades escolares oferece um cardápio pouco variado e de baixo valor nutricional…

 

Mas essas e outras questões ficarão em aberto, reverberando no imaginário coletivo, diuturnamente bombardeado pela cantilena da privatização, até que boa parte de nós esteja convencida de que é esta a melhor alternativa. E aí veremos que a fome tem mesmo uma saúde de ferro.

Olga Freitas
Professora da SEEDF
Coordenadora do Setorial de Educação PTDF

*referência à música da Nação Zumbi, Fome de Tudo (Um viva a Nação!).

 

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