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Alberto Fernández enfrenta cerco golpista na Argentina com habilidade política e base social

Por Mariana Serafini 13/09/2020 14:23

Policiais na Quinta de Olivos (Enrique García Medina)

Créditos da foto: Policiais na Quinta de Olivos (Enrique García Medina)

 
Uma manifestação de policiais na província de Buenos Aires na semana passada deixou o governo de Alberto Fernández em alerta. As reivindicações trabalhistas são justas, claro. O tom utilizado pelos manifestantes é que foi – no mínimo – descabido e violento. Depois de um dia com a residência presidencial cercada de viaturas e policiais armados, o presidente se dirigiu à nação em um vídeo longo, de 20 minutos, rodeado de todos os prefeitos da província de Buenos Aires, inclusive os da oposição. Ao mesmo tempo, movimentos sociais se articularam para defender o governo nas ruas. Se a intenção da polícia era assustar o governo, recebeu em troca uma resposta firme de resistência. O que não significa que a tensão tenha baixado.

Como no Brasil, na Argentina as corporações policiais também não podem fazer greve, muito menos com os oficiais armados, e deixar a população desprotegida. O que aconteceu na última quarta-feira (9), foi daí pra cima. Os policiais cercaram a casa do presidente, a Quinta de Olivos (e não a Casa Rosada), com dezenas de viaturas e partiram armados para o protesto que durante todo o tempo teve um tom ameaçador.

Outro ponto “estranho” da ação é que a polícia é subordinada aos governadores de cada província, e não ao presidente. Tecnicamente não teria motivos para partir pra cima de Alberto Fernández. Ainda assim, o presidente acolheu a manifestação e respondeu às reivindicações.

Além da Quinta de Olivos, os manifestantes também fecharam uma das principais vias de Buenos Aires, e cercaram o palácio do governo da província. O governador, Axel Kicillof, assim como o presidente, recebeu as reivindicações e atendeu ao pedido de aumento salarial. Como a negociação não durou muito, uma vez que o político não demorou em atender ao protesto, a dispersão da manifestação também foi rápida.

Um dos porta-vozes do movimento, Mariano Alderete, garantiu que o protesto “não foi com intenção de gerar descontento, nem nenhum tipo de golpe. Só queríamos ser ouvidos e conseguimos. É o momento de pedir perdão à sociedade se se sentiram desprotegidos, porque essa não foi a verdadeira intenção”.

Apesar de declarações como essa que atestam as “boas intenções”, depois que os policiais voltaram para suas funções, o clima de insegurança e tensão não baixou. Afinal, sobra motivos para sentir desconforto diante de motins policiais quando se trata de América Latina. Não são raros os episódios em que as elites locais se apoiam no aparato policial, ou nas Forças Armadas, para levar adiante golpes de Estado. A polícia teve papel central no recente golpe contra Evo Morales na Bolívia, por exemplo.

No Equador, em 2010, uma manifestação de policiais terminou em tentativa de magnicídio. O então presidente, Rafael Correa, foi sequestrado e permaneceu horas preso num hospital da polícia depois de ter sofrido um ataque com bomba. Por fim, a intentona golpista arrefeceu e o governo seguiu até o fim do mandato em 2017, não sem conflitos menores. Sem sucesso no golpe, a direita equatoriana tomou o poder pelas mãos do traidor Lenín Moreno. O ex-vice-presidente de Correa, após ser eleito com a promessa de continuar a Revolução Cidadã, traiu o voto popular e se converteu num neoliberal da pior estirpe latino-americana.

Também em Buenos Aires, a manifestação não foi homogênea com policiais resignados dispostos apenas a exigir melhores condições laborais, como o exemplo de Mariano Alderete. O jornal argentino Página/12 fez um levantamento do perfil de alguns dos porta-vozes do movimento e encontrou militares ligados à direita, afastados por questões psíquicas e envolvimento com drogas.

Um dos líderes, Aldo Oscar Pagano, responsável pelo comboio que fechou uma das vias de acesso à residência presidencial, ficou afastado 11 anos da polícia por questões psiquiátricas e é ligado ao Proposta Republicana, partido de Maurício Macri. Mariano Diáz, que foi ao protesto usando o uniforme militar, foi afastado de suas funções em 2014 por fazer motim. Na frente da Quinta de Olivos, um dos líderes era o policial exonerado Sandro Adirán Amaya, de acordo com a imprensa local, ele foi afastado da corporação porque está envolvido num processo de “infração à lei de drogas”.

Dado esse histórico no continente, e esse esquadrão armado, não foi de se estranhar que a resposta de Alberto ao motim tenha sido tão enfática. Na mesma noite ele fez um pronunciamento longo na TV. No vídeo de quase 20 minutos, gravado na Quinta de Olivos, apareceu rodeado por todos os prefeitos da província bonaerense, inclusive os da oposição, além do governador, da vice-governadora, Maria Eugenia Vidal e do presidente da Câmara dos Deputados, Sergio Massa.

Em tom firme, o presidente apelou ao caminho do diálogo. Disse reconhecer as reivindicações trabalhistas, mas condenou a forma como os policiais se manifestaram. Criticou ainda o fato de que durante uma greve policial a população fica desprotegida, e argumentou que o caminho das armas não pode ser uma boa solução para conflitos.

Movimentos sociais – a luta de classes nas ruasDesde as ditaduras das décadas de 1960, 70, está claro que as ruas também são um espaço fundamental de disputa na América Latina. Quando a direita decide ocupá-las, a resposta da esquerda precisa ser também a demonstração de força com sua capilaridade e capacidade de organização social.

Na Argentina, os movimentos sociais nunca saíram das ruas, mesmo nos governos kirchneristas. Se em alguns momentos a pauta era de crítica à atuação dos progressistas na Casa Rosada, em outros os mesmos manifestantes ocupavam as praças para defender as conquistas populares.

Desta vez não é diferente. Há algumas semanas, setores da direita começaram a fazer manifestações contra a condução de Alberto da crise causada pela pandemia do coronavírus, condenam até o uso de máscaras. Mas estes negacionistas são só a ponta do iceberg de uma direita maior e mais articulada cuja principal liderança é o ex-presidente neoliberal Maurício Macri.

No mesmo dia que os policiais cercaram o governo, movimentos sociais, sindicalistas e agremiações comunitárias se colocaram em alerta para ocupar as ruas, caso fosse necessário, para enfrentar o levante golpista. Através das páginas oficiais nas redes sociais, lideranças do campo progressista pediram para a militância ficar a postos, a fim de começar uma manifestação em resposta à polícia.

Não foi preciso acionar a militância, uma vez que a negociação entre a polícia e governo durou apenas algumas horas. Mas a ação nas redes foi também uma demonstração de força. A mensagem que ficou é de que se um golpe de Estado for levado adiante, a resposta do campo progressista nas ruas será imediata e sólida.

Alberto Fernandez – a virada à esquerda do representante do centrãoPara reduzir os impactos da pandemia na vida da população mais pobre e da classe média, Alberto Fernandez vem tomando decisões que incomodam os ricos. Logo no começo da quarentena, o presidente deu uma declaração onde dizia que num momento tão delicado como este que vivemos, os super ricos não podem seguir lucrando como antes, uma vez que, com lucros menores não vão à bancarrota, apenas vão lucrar menos. Terminou o pronunciamento com a sentença “bueno, muchachos, entonces este es el momento que les toca ganar menos”. A briga foi comprada ali e desde então a oposição vem agindo para desestabilizar o governo.

Uma das medidas que vem sendo discutida é a taxação de grandes fortunas. A Argentina tem uma população de 45 milhões de pessoas. Cobrar imposto dos super ricos atingiria apenas 12 mil argentinos. Parece razoável recorrer a esse recurso no momento que a economia mais precisa.

Além de usar a fortuna dos super ricos para estruturar o país no combate à doença, Alberto também agiu em outras esferas para proteger a população da especulação desenfreada do mercado. Proibiu o aumento de tarifas de serviços essenciais, a princípio água, luz e gás. Mas com o passar dos meses, e diante de aumentos abusivos, o presidente incluiu nessa lista também as empresas de telefonia e TV por assinatura.

A Argentina é o quinto país do mundo com o maior número de assinantes de TV paga e concentra 45% dos usuários deste serviço em todo o continente. Apesar da Lei de Meios, que enfrentou os barões da mídia local e democratizou – em alguma medida – a comunicação, o monopólio ainda é escandaloso. O grupo Clarín é um cartel de empresas de comunicação que concentra TV, rádio, o maior jornal impresso do país, companhias de telefonia móvel e a maior cobertura de TV por assinatura.

Alberto não é Cristina Kirchner. A vice-presidenta, quando estava à frente da Casa Rosada, travou uma batalha de Quixote contra o Grupo Clarín, uma vez que este apostou todas as fichas na desestabilização de seu governo, para defender o projeto de poder da direita. Já Alberto é considerado um político da centro-esquerda, moderado, tem um diálogo aberto com a direita e sempre teve um bom trânsito com o Clarín, mesmo quando era chefe de Gabinete de Néstor Kirchner.

Porém, a pandemia escancarou as contradições neoliberais e forçou a presença de um Estado forte para garantir respostas eficientes às crises sanitária e econômica. Diante deste impasse, Alberto passou a tomar medidas mais duras, que atingiram a elite mais do que esperado.

Na contramão dos presidentes de direita de todo o continente, o argentino não apelou para as políticas de austeridade, tampouco fez pouco caso da doença. O problema é que para enfrentar a elite local ele está sozinho, tem apenas Andrés Manuel López Obrador como aliado, lá na outra ponta, na presidência do México. Falta a retaguarda que seus antecessores populistas de esquerda tiveram de um Mercosul estruturado, uma Unasul forte e uma Celac em pleno funcionamento.

Alberto não tem o apoio dos presidentes vizinhos, ainda assim está enfrentando o Banco Mundial e o FMI para adiar o pagamento da dívida e dos Fundos Abutres e usar esse recurso para combater o coronavírus. Agora também precisa comprar a briga com a elite local, que se recusa a lucrar menos em meio à maior crise econômica das últimas décadas. Não é possível prever o quanto esta crise vai se aprofundar, mas se a direita tem planos de, uma vez mais, não respeitar o resultado das urnas, a resposta de Alberto foi enfática: diferente do que aconteceu na Bolívia ano passado, a Casa Rosada não será entregue sem peleia – como se diz em gauchês dos pampas.

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